“Putin pode vir a ser o coveiro do seu próprio país”
Chegou a Moscovo como estudante, saiu de lá como jornalista. Nas quatro décadas que durou a aventura, viu ruir o comunismo, viu a URSS dar lugar à Rússia, chegou com Brejnev e saiu com Putin. José Milhazes fala do seu livro As Minhas Aventuras no País dos Sovietes e do que o motivou.
Naquele dia, José tinha todas as razões para estar feliz. Ia entrar num comboio rumo ao "paraíso terrestre". O comboio era ainda a carvão, e partia de um país atrasado no rumo da história, mas no destino esperava-o o modelo mais perfeito da sociedade do futuro. Ele, um estudante português nascido numa família pobre, "ia viver na sociedade quase perfeita, na transição do socialismo desenvolvida para o comunismo", a União Soviética. A bagagem que levava era reduzida: uma mala de cartão, um par de botas de couro, pouca roupa e dois livros. Mais para quê? No "paraíso terrestre" havia de tudo!
Foi assim que começou, no dia 9 de Setembro de 1977, na Póvoa de Varzim, uma saga que duraria quase quatro décadas. E é assim também, na ânsia deste embarque, que começa o livro As Minhas Aventuras no País dos Sovietes - A União Soviética tal como eu a vivi, de José Milhazes, agora lançado pela Oficina do Livro. Quando deu início àquela viagem, a um mês de fazer 19 anos, ele não tinha a mínima ideia do que o esperava, mesmo logo à chegada. Foi a vontade de olhar criticamente esse passado, na primeira pessoa (título e subtítulo do livro sublinham-no), que quis rever o caminho que fez de estudante até tradutor e jornalista, como correspondente da TSF e do PÚBLICO. Actualmente, já de regresso a Portugal, é comentador político da SIC e da RDP e colunista do jornal Observador.
Mas como lhe surgiu a ideia do "paraíso terrestre"? Nascido na Póvoa de Varzim, a 2 de Outubro de 1958, "no seio de uma numerosa família de humildes pescadores", José Manuel Milhazes Pinto acabou por escolher o apelido materno e não o paterno porque na escola já havia vários Pintos. E Milhazes era só ele. Muito novo, foi escuteiro. "O escutismo", explica ele agora, confrontado com as memórias contadas no livro, "era uma actividade que me permitia fazer coisas que até aí eu não podia fazer. Por exemplo: os meus pais não me podiam comprar uma tenda de campismo ou um bilhete de inter-rail. Se não fosse os escuteiros, se calhar até era a Mocidade, não faço ideia. Era sempre uma possibilidade de eu conhecer e participar nalguma coisa de novo. Conhecer outras pessoas, outras regiões."
E depois do escutismo veio o seminário. "Entrei pela religião, porque queria ser padre. Sou de uma família em que, durante várias gerações, os homens estavam largos períodos fora de casa. A pesca, a África, o Brasil, afastavam-nos. Desde criança que eu ouvia as histórias do bisavô que desapareceu em Manaus, ou o que arranjou uma amante brasileira. Eram sempre histórias de ausências." O impulso para ser padre veio-lhe também do que ouvia. "Histórias de países distantes e o querer ajudar aqueles desgraçados sem alma que por lá andavam. Era isso que ouvíamos desses nossos parentes ou vizinhos. Isso e as leituras que eu ia fazendo dos números velhos dos jornais Primeiro de Janeiro e Comércio do Porto. Porque em minha casa não havia livros. Eu lia os jornais velhos que a minha mãe usava para embrulhar os tachos que os pescadores levavam com as refeições quando iam para o mar."
Isto levou-o a estudar numa ordem missionária, a dos combonianos, e, depois do 25 de Abril, a trocar uma fé por outra. Foi então que entrou na UEC (União dos Estudantes Comunistas), ligada ao PCP. E foi ela que lhe garantiu o "passaporte" para ir estudar na União Soviética (URSS). "Tinha respostas fáceis para perguntas difíceis", diz hoje. "Essa fé, ou fanatismo, levava-nos a aderir de alma e coração àquelas ideias que pareciam estar perto, a pensar que através delas podíamos resolver as coisas."
O "Trump" russo e o "salvador"
A União Soviética aonde ele chegou, de comboio, às 20h40 (locais) do dia 10 Setembro de 1977, já não existe. Nesse ano, o seu homem forte era Brejnev. Hoje, recuperada a velha Rússia, há um rosto que a partir dela se impõe ao mundo: o de Vladimir Putin. José Milhazes assistiu à sua ascensão, tal como à morte de Brejnev, à sucessão de líderes a um passo da morte (Andropov, Tchernenko), à onda de esperança surgida com Gorbatchov e à irrupção do populismo de Boris Ielstin, "o Donald Trump daquela época". Foi, aliás, com Ieltsin, que a Rússia pós-comunista passou o seu período mais terrível. "A Ieltsin só interessava uma coisa: a independência da Rússia. Porque queria ser o primeiro a mandar nela. E ganhou, mas à custa de rebentar com o país." Nesse período surgiram os oligarcas, agravou-se a pobreza, tornaram-se "normais" os assaltos e o banditismo. Interrogados nas escolas sobre o que queriam ser quando crescessem, muitos alunos respondiam "bandidos" ou "prostitutas". "Porque era o que dava dinheiro! As pessoas vêem-se totalmente perdidas e tentam salvar-se de qualquer maneira."
É nessa altura que surge Putin, primeiro-ministro em Agosto de 1999 e depois Presidente interino (cargos que ocupou, alternadamente, até hoje). "Ieltsin era já um homem doente, uma marioneta na mão dos oligarcas, e aparece um jovem saído dos serviços secretos, a transpirar confiança e a dizer: nós dentro de 15 anos vamos ultrapassar Portugal." Não cumpriu essa e muitas outras promessas, sublinha Milhazes, mas isso foi irrelevante para a sua perpetuação no poder. "Aqui está o fenómeno que alguns não querem encarar e que se vê hoje com Trump ou com qualquer populista. As pessoas são levadas a um nível tal de desgraça, de humilhação, de insegurança, que quando lhes prometem o contrário, e rapidamente, elas aceitam e ‘vendem’ metade das suas liberdades ou mesmo todas."
Nesta nova fase, diz José Milhazes, "há dois períodos e o segundo ainda não acabou. O primeiro é quando Putin chega ao poder. Nessa altura, o preço do petróleo anda nas ruas da amargura, baixíssimo. E Putin tinha uma oportunidade única, modernizar o país. Não modernizou. Substituiu a oligarquia pelos amigos dele. Mas quando se tem muito dinheiro é possível fazer demagogia social. E o nível de vida dos russos subiu, a classe média aumentou (passou a ser 12 a 13%) e mesmo os mais desfavorecidos viram as suas reformas aumentar significativamente."
O que diminuiu? As liberdades. Hoje os correspondentes estrangeiros voltam a ser vistos como um incómodo ou um perigo, e a falta de condições para o exercício do jornalismo na Rússia levou Milhazes a regressar a Portugal. "O país não regressa à era do comunismo mas compete com ela no campo do absurdo", escreve ele no último capítulo do livro. Outra razão foi o próprio ambiente social. "Há um momento recente que marca uma mudança, mesmo dentro da sociedade russa: é a invasão da Crimeia. A invasão, com toda a propaganda feita à volta, transformou muita gente. Antigos colegas meus de universidade, completamente normais, que eu achava avançados ou pró-europeus, mostraram-se de súbito de um nacionalismo absolutamente incrível." Um desejo de expansionismo? "Claro! E até teve êxito."
Uma desculpa: "era a CIA"
O expansionismo russo da era soviética, dando continuidade ao dos czares mas sob a bandeira da foice e do martelo, era, para o jovem estudante acabado de chegar à URSS uma abstracção. Se alguma coisa havia, era o desejo de expandir o socialismo por amor aos povos. "Era uma ideologia que prometia o paraíso neste mundo e através da qual começamos a acreditar no determinismo histórico. Fizéssemos o que fizéssemos, nós iríamos construir o socialismo e o comunismo." Talvez por isso não era a URSS que ele tinha em mente quando quis ir para fora, mas sim a Bulgária, a RDA ou até Cuba. Ele queria assistir e ajudar à construção do socialismo, mais do que vê-lo já construído. Mas foi para a URSS que o mandaram. À chegada teve um choque. "Começaram a virar-nos as malas de pernas para o ar. Imagine-se: vamos para o paraíso, vamos para o pé dos nossos camaradas que já têm experiência de viver no paraíso, e a primeira coisa é fazerem-nos uma revista de passaportes e de malas que nos põe de boca aberta." Achou estranho, mas a ideologia ajudou-o a aceitar: "Era o combate à CIA, porque a CIA podia entrar na União Soviética e fazer coisas más. Então era uma forma de defesa do socialismo! Uma reacção quase pavloviana. Nos primeiros tempos, há desculpas para tudo: a CIA, o imperialismo, os restos das classes exploradoras que por lá andassem, embora já se tivessem passado tantos anos."
Foi em Moscovo que Milhazes passou da UEC ao PCP. "Foi uma transição bastante formal. A não ser que eu tivesse feito uma asneira muito grande, passaria sempre. Não era uma promoção, era uma fase de crescimento: eu tinha de sair da UEC para entrar no PCP." A língua, de início, não foi fácil. Mas "tive que aprender, para comunicar, ler, ir para universidade, que, no fundo, era o que eu queria". Por isso aplicou-se. "O russo, gramaticalmente, é diabólico. Mas como nós, na universidade, não tínhamos exames escritos, na realidade nunca nos dedicávamos à escrita. Era só falar e compreender."
A par dos estudos, iniciou-se nas traduções. Filmes, primeiro ("era uma coisa mais simples e de menos responsabilidade") e depois, mais tarde, já quando estava a acabar a universidade, discursos. "Só podíamos fazer traduções por escrito, nunca em simultâneo. Isso eram os soviéticos que faziam." Valia-lhe o facto de os discursos serem muito parecidos, muito repetitivos. "Quando há velhinhos de oitenta e tal anos a pronunciarem discursos com extrema dificuldade, tinham de ser muito simples".
Mas ao mesmo tempo que ia percebendo o russo, ia também percebendo os russos. E isso ajudou-o a ir pondo em causa velhas crenças. Filas crónicas para aquisição de bens essenciais, livros reservados e de acesso quase proibido, um anti-semitismo latente na população, levaram-no a questionar o estado do "paraíso". "É um processo lento, porque há um factor que o vai travando: a resistência. O edifício começa a ruir mas nós não queremos acreditar que ele vai ruir. Porque é o fim daquilo em que acreditamos. Tanto que, quando Mikhail Gorbatchov aparece e começa com as suas reformas, há uma esperança de que é possível construir o tal socialismo com rosto humano."
Ascensão e queda de Gorbatchov
Gorbatchov chega à liderança no culminar de um período de ascensão e queda de dirigentes decrépitos (Brejnev, Andropov, Tchernenko). Foi em 1985, no mesmo ano em que nascia o segundo filho de José Milhazes e de Siiri, de nacionalidade estónia, com quem casou em 10 de Maio de 1983 e com quem partilha a vida ainda hoje. "As pessoas já se riam quando era eleito um novo secretário-geral, porque já estavam todos a pensar no funeral do homem. Não é por acaso que esse período ficou conhecido como o pântano. A propaganda dizia uma coisa mas via-se que estávamos num país estagnado." Gorbatchov trouxe uma esperança. "Foi uma espécie de 25 de Abril. As pessoas discutiam, liam, uma experiência única. Ia-se de madrugada para a fila dos quiosques para comprar jornais." Não durou muito. "É minha convicção que Gorbatchov, quando chegou ao poder, julgava que tinha um país minimamente organizado e viável. E não tinha. E quando ele começa a mexer no edifício, percebe que pode ir tudo abaixo. Ele tenta desesperadamente novas vias, mas o problema estava nos alicerces."
Entretanto, a realidade ultrapassa-o. O comunismo começa a abrir brechas, os nacionalismos vêm à tona, o descontentamento popular generaliza-se. No 1.º de Maio de 1990, pela primeira vez na história soviética, os dirigentes alinhados na tribuna são apupados pelos manifestantes. Grita-se "Abaixo Gorbatchov!" e "Abaixo o Partido Comunista!" Para José Milhazes, isso foi "um sinal evidente de que Gorbatchov tinha sido ultrapassado, passava a ser conservador. O processo começou a andar mais depressa do que ele." Até aí, "era o medo e o terror que ‘colavam’ a União Soviética, não era a ideologia". Quando o medo começa a desvanecer-se, "tudo aquilo vem abaixo."
Durante a era Gorbatchov, os Estados Unidos tiveram para com a URSS uma atitude de aproximação e paternalismo. Primeiro com Reagan, depois com Bush. Ficaram célebres as coxas de frango congeladas vindas da América, para suprir as carências alimentares soviéticas, conhecidas como "as coxas de Bush". "Os meus filhos continuam a ter esse trauma quando olham para as coxas de frango", diz Milhazes. "Depois vim a saber que os americanos não gostam de comer as coxas, preferem a asas."
Mas, quando emerge Ieltsin, os EUA deixam "cair" Gorbatchov. "Os soviéticos, principalmente os russos, sentiram-se humilhados, porque no momento em que Gorbatchov precisava de apoio, tiraram-lhe o tapete e apoiaram Ieltsin, que era um político completamente imprevisível mas que já indicava que ia acabar com qualquer tipo de União. Acredito que Gorbatchov salvaria uma parte da União. O Báltico estava perdido, por razões históricas, a Geórgia também, porque tinha um grande movimento nacionalista que nunca desapareceu, talvez o Azerbaijão também se fosse embora. Mas a Ásia central podia continuar na União e até talvez a Ucrânia, transformando aquilo numa federação a sério ou até numa confederação." Mas falhou e Ieltsin substitui-o, abrindo caminho à ascensão de Putin.
José Milhazes diz que "Gorbatchov é uma personagem trágica na história, um reformador falhado. Falhado, porque não conseguiu levar a cabo as suas ideias e intenções. Claro que se virmos pelo prisma da destruição do regime comunista, acertou. Mas ele não tinha como objectivo essa destruição, ele lutou até ao último momento pela União Soviética e pelo regime que acabaria por ser, se as ideias dele fossem por diante, um regime social-democrata. Porque ele era um social-democrata."
Os perigos de Putin
Putin é bem diferente. E instalou-se no poder com uma determinação calculista. Mas não cumpriu o que prometeu aos russos, longe disso. "A Rússia não é hoje um país mais próspero nem inovador. Perdeu o comboio da modernização e perdeu-o graças a Putin. Porque a tal chuva de petrodólares desapareceu na corrupção." Será possível, agora, retomar ainda o caminho da modernização? José Milhazes mostra-se pessimista. "Teriam de ser feitos sacrifícios, com reformas profundíssimas. É preciso modernizar grande parte das infra-estruturas e é preciso fazer com que os estrangeiros queiram investir na Rússia, não apenas para ganhar dinheiro rápido mas numa perspectiva de futuro. Ora hoje acontece o que aconteceu também depois da queda da União Soviética, uma fuga de cérebros. Pessoas com formação superior foram para os Estados Unidos. Há prémios Nobel com apelidos russos mas que trabalham noutros países."
É neste cenário pouco propício, que se desenvolve o segundo período do domínio de Vladimir Putin no Kremlin: "Agora começa a outra parte, que não sabemos como vai acabar, aquela onde Putin se começa a envolver em coisas que não se sabe se o país tem capacidade de aguentar ou não. A guerra na Ucrânia, a intervenção na Síria e talvez uma próxima intervenção no Afeganistão. É que a desestabilização da Ásia Central pode ser fatal para a Rússia, é uma grande área onde a Rússia diz ter interesses especiais. E a Rússia afundando-se numa zona daquelas as coisas podem complicar-se mesmo muito. E Putin pode vir a ser o coveiro do seu próprio país."