El Khatib semeia a beleza num teatro de morte
De cada vez que Mohamed El Khatib apresenta Finir en Beauté (Acabar em Beleza) reacende o luto pela morte da sua mãe. Em estreia nacional no Teatro D. Maria II, o autor franco-marroquino apresenta o magnífico primeiro momento da sua fuga do teatro clássico.
Quando fundou o Collectif Zirlib, em Orléans, Mohamed El Khatib lançou no pequeno manifesto inaugural uma provocação em que apregoava o plano de “trabalhar sobre a morte e o luto durante os 15 anos seguintes”. Na altura, pode ter-lhe parecido que se dirigia ao exterior. Mas desde 2010 que essa profecia em causa própria tem-se cumprido com uma invejável pontualidade. A cada dois anos, o autor e encenador franco-marroquino dá por si embrulhado em criações que colocam essas temáticas no centro da sua vida artística. Em 2010, quando escreveu e estreou À L’Abri de Rien, era já com a morte da mãe que lidava, embora de uma forma indirecta, numa espécie de preâmbulo para Finir en Beauté (Acabar em Beleza), a peça que lhe valeu o Grande Prémio da Literatura Dramática francês em 2016 e que promove um primeiro contacto entre o público português, no Teatro Dona Maria II, em Lisboa, entre 18 e 25 de Fevereiro, e um dos autores mais desafiadores e fascinantes deste momento.
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Quando fundou o Collectif Zirlib, em Orléans, Mohamed El Khatib lançou no pequeno manifesto inaugural uma provocação em que apregoava o plano de “trabalhar sobre a morte e o luto durante os 15 anos seguintes”. Na altura, pode ter-lhe parecido que se dirigia ao exterior. Mas desde 2010 que essa profecia em causa própria tem-se cumprido com uma invejável pontualidade. A cada dois anos, o autor e encenador franco-marroquino dá por si embrulhado em criações que colocam essas temáticas no centro da sua vida artística. Em 2010, quando escreveu e estreou À L’Abri de Rien, era já com a morte da mãe que lidava, embora de uma forma indirecta, numa espécie de preâmbulo para Finir en Beauté (Acabar em Beleza), a peça que lhe valeu o Grande Prémio da Literatura Dramática francês em 2016 e que promove um primeiro contacto entre o público português, no Teatro Dona Maria II, em Lisboa, entre 18 e 25 de Fevereiro, e um dos autores mais desafiadores e fascinantes deste momento.
Em À L’Abri de Rien, diz Mohamed ao Ípsilon, tacteava ainda em torno da doença da mãe e da sua morte anunciada, talvez resistindo a uma derradeira barreira de pudor que acabaria por se esfarelar mais tarde. “Na altura não quis ver isso e andei ao redor da questão, tendo feito uma peça sobre a morte que trata tanto da morte de familiares como de animais. Na verdade, era estimulado pela pergunta: de que forma me posso indignar intelectualmente com a morte de milhares de chechenos e com repetidos massacres no Kosovo, e no entanto a morte do meu cão me deixar mais triste? Quis interrogar esse mecanismo que faz com que possa comover-me com algumas tragédias mas estar sempre consciente que será o meu círculo próximo que me trará mais sofrimento.”
Parte considerável do percurso artístico de El Khatib germina dessa relação com a morte da mãe. Não só porque lhe deu um ponto de partida e lhe permitiu criar esse espectáculo comovente que traz agora a Lisboa, mas por todo o movimento que gerou em volta e desembocou, por exemplo, em Renault 12, road movie da sua viagem para reclamar a herança de um terreno em Marrocos (pretexto para redescobrir a sua mãe a partir de inquéritos a tios e tias), ou na sua próxima estreia, C’est la Vie, peça protagonizada pela actriz Fanny Catel e pelo actor Daniel Kenigsberg. Catel e Kenigsberg procuraram-no no final de uma apresentação de Finir en Beauté, não apenas para expressar a sua admiração mas também para lhe dizer “Bom, é grave perder uma mãe, ficamos tristes por isso, mas é quase uma brincadeira comparado com a perda de um filho, isso é muito pior”. “Não tenho filhos e quero acreditar em vocês”, respondeu-lhes Mohamed. “Mas não se pode criar uma equação dessas, afirmar que há dores que são mais importantes do que outras.” Foi esse encontro, no entanto, a semear uma reflexão que voltou a colocá-lo no caminho da morte. Por mais que se desvie, ela nunca se afasta e a suspeita é a de que, por mais que traga outras ideias para o caminho, jamais a conseguirá despistar.
Coincidindo com o processo de escrita de Finir en Beauté, Mohamed El Khatib aterrou no México, precisamente no Dia dos Mortos. “Vi-me no meio de uma grande festa, flores por todo o lado, as pessoas a beberem imenso álcool, muita tequila, um ambiente muito exultante e em que podíamos seguir aquela gente e entrar-lhes pelas casas dentro e visitámos hotéis dos mortos, do papi, da mami, das crianças.” Esse tom de festa marcou-o pelo contraste com a forma envergonhada e encoberta com que passou a ver o correspondente tratamento ocidental. “Aqui”, diz, “a morte é um tema tabu, escondido.” Depois, a comparação com a vivência da morte entre Marrocos, o país dos pais, e França, o seu país, havia de empurrá-lo para uma outra discussão, acreditando que “em qualquer lugar há rituais que ajudam a passar por esse momento”. “Mas em França não, não há quaisquer rituais. Como há uma rejeição da religião, não apareceu nada para compensar e ocupar o lugar dos novos rituais laicos. Eu não sou crente, mas isso não me impede de ver que a religião acompanha nesse momento. É uma pena que nós, laicos, não tenhamos quaisquer rituais. Fui a um funeral num crematório há não muito tempo e foi horrível, como se se morresse uma segunda vez. Talvez tenhamos de aprender a morrer – e essa é uma responsabilidade colectiva, a que devemos responder enquanto sociedade.”
Duas categorias
Entre Maio de 2010 e Agosto de 2013, Mohamed El Khatib foi recolhendo os vários materiais que compõem Finir en Beauté. “Não me coloquei a questão do limite, da decência e do pudor”, escreve na edição em livro da peça. “Recolhi aquilo que pude e reconstruí. Tudo se passou muito rápido e sem premeditação.” A 20 de Fevereiro de 2012, a mãe de Mohamed, Yamna El Khatib, morreu no Centro Hospitalar Universitário de Orléans-La-Source e esse momento capital na vida do autor é colocado em palco de forma comovente, no meio de registos de conversas entre os dois ou com o médico que acompanhava o caso, no relato das suas inquietações sobre o que significa ser um bom filho, em SMS e emails trocados, na descrição de todo o novelo burocrático envolvendo a morte de um imigrante, no processo de repatriação do corpo, na partilha de todos os pormenores absurdos que, se emprestam um tom quase cómico a certas passagens, apenas reforçam a sua humanidade e a emoção generosa mas sem miserabilismo ou autocompaixão que El Khatib leva para palco.
O facto de se alimentar das experiências pessoais, à semelhança daquilo que vê no cinema de Alain Cavalier e nas obras de Sophie Calle, levaria à oposição de duas das suas (quatro) irmãs, para quem era e é incompreensível que Mohamed partilhe fotografias da mãe com estranhos. Tentaram demovê-lo, impedir que a peça avançasse, recusaram-se a assistir e nem o impacto e o reconhecimento público venceram a ideia de que expunha uma intimidade sem direito de o fazer. Como a mãe autorizou a gravação das suas conversas e coloca o foco no amor incondicional, Mohamed não se deteve.
Finir en Beauté, que carrega o subtítulo Pièce en un acte de decès – jogo de palavras que tanto alude a uma peça composta por um único “acto de morte” como à certidão de óbito (acte de decès) – criou uma cisão no entendimento que Mohamed El Khatib tem do mundo, passando a dividir as pessoas em duas categorias: aquelas que perderam a sua mãe e as outras. “O momento de passagem de um grupo para o outro é transformador”, defende. “O que acho curioso é que este acto de morte é, para mim, também um acto de nascimento artístico. A minha relação com o mundo alterou-se e as minhas prioridades foram atacadas, como se depois do desaparecimento da minha mãe já não pudesse mais fingir.”
Na sua prática artística, esta transformação materializa-se naquilo a que chama “uma viragem um pouco radical” na forma de encarar o teatro. Entrou em ruptura com o teatro clássico, “o teatro burguês”, deixou cair as personagens, a iluminação, todos os recursos artificiosos usados habitualmente na construção de um espectáculo. E preferiu enveredar por um teatro que não alinhe com a maioria da produção que identifica em França, em que o público chega, assiste, aplaude os desempenhos impecáveis dos actores e os cenários de magnífica execução, e segue para casa nesse confortável posto de observador mais ou menos preenchido e/ou deslumbrado com aquilo que viu. Mohamed não quer fazer parte desse jogo que, na sua opinião, se torna “um mero exercício de estilo”.
“Mais do que um espectáculo, quero levar encontros para cena”, diz. “E, portanto, tento esvaziar todos os recursos um pouco burgueses do teatro e reintroduzir elementos que sejam vivazes.” O exemplo perfeito para aquilo que nos diz chama-se Moi, Corinne Dadat, “performance documental” construída para a empregada de limpeza Corinne Dadat. Dadat limpava o palco num certo dia quando Mohamed reparou nos seus movimentos e comentou que parecia estar a interpretar uma coreografia, com uma qualidade de bailarina. Corinne, mulher de língua solta e frequentemente ácida, concordou e respondeu-lhe que a única diferença era não receber aplausos quando terminava. O encantamento de El Khatib nascido nesse momento por aquela mulher levou-o a realizar uma série de entrevistas de onde resulta uma descrição que partilha com o público: “Corinne Dadat não lê o Le Monde nem os Échos mas a sua análise da crise económica faria empalidecer quaisquer responsáveis do FMI”, “Corinne Dadat não levará os filhos à Eurodisney porque é demasiado caro e o Rato Mickey é um filho da puta” ou “Corinne Dadat já não tem sonhos: tem um quotidiano”.
Muita gente perguntou a Mohamed por que não contratava uma actriz para encarnar Corinne Dadat, mas aquilo que o encantava era partilhar o palco com alguém que não podia controlar, totalmente indomada e por natureza desrespeitadora dos códigos teatrais. “Gosto de cultivar o acidente”, justifica. “Ao escolher uma empregada de limpeza, eu sei que ela tem problemas de memória e que posso dizer-lhe aquilo que desejo que, de qualquer maneira, ela vai acabar por fazer o que lhe apetecer. Não finge. Ela tem um microfone e comanda o tempo todo. Não representa, reage imenso à sala, é franca. E agrada-me essa ideia de que tudo é possível naquele palco. Claro que é uma peça que me pode escapar do controlo, há dias em que é genial e outros que não funciona porque ela está preocupada, porque tem uma filha doente ou algo assim. Mas eu quero essa fragilidade.”
A rejeição do teatro burguês tornou-se um verdadeiro problema quando Mohamed apresentou Finir en Beauté no festival Off de Avignon. “O problema é que em Avignon somos explorados, temos quase de pagar para nos apresentarmos”, resume. Comparando o festival a um supermercado, perguntou-se repetidas vezes “Como é que posso ser um encenador que defende valores humanistas, contra a lei de mercado, e depois na prática reproduzir a mesma coisa?” Lembrou-se muito dos seus amigos de esquerda, defensores da igualdade de oportunidades e da diversidade nas escolas de um país com um vincada divisão entre bairros ricos e pobres, e que chegada a altura de fazer escolhas para o ensino dos seus filhos optavam por escolas privadas. Ao seu questionamento, respondiam: “Antes tínhamos princípios, agora temos crianças.”
Esse que acredita ser o problema crónico da esquerda francesa, de se acomodar assim que chega ao poder e arranjar maneira de se fazer melhor amiga do liberalismo económico, sentiu-o em pequena escala na sua concessão a Avignon e ao apresentar Finir en Beauté em salas com uma capacidade superior a 80 pessoas, onde a partilha da sua intimidade corre o risco de se tornar voyeurística e gritada em vez de sugerida com a delicadeza exigida. Num outro sentido, também o Grande Prémio de Literatura Dramática o confundiu. Historicamente atribuído a autores de um teatro clássico, significava o reconhecimento precisamente do meio de que Mohamed tentava afastar-se e que levou muitos a queixar-se da injustiça de uma distinção dirigida a “alguém que não faz teatro, não trabalha com actores nem adopta qualquer narrativa”. Afinal, teria ou não acertado?
Corão ou Proust
Em L’Abri de Rien, Mohamed El Khatib abordava a iminência da morte da mãe ao fantasiar sobre os últimos tempos que passaria com ela, lendo-lhe todos os livros possíveis que tinham faltado a uma vida dedicada apenas à leitura do Corão. Se essa é uma marca da geração dos seus pais – “eles sabem o Corão de cor”, comenta –, embora revele a sua admiração pela “qualidade magnífica da língua” do livro sagrado, não foi assim consigo, em parte porque Ahmed El Khatib (seu pai) desenvolveu uma obsessão com os livros depois de alguém o ter convencido de que era vital para os seus filhos crescerem rodeados desse manancial de conhecimento. Mohamed sabe ser produto desse investimento e puxa de uma história para o ilustrar: “Um dia os meus pais e uns amigos compraram uma casa que transformaram numa mesquita. Era uma velha casa de campo, com um sótão onde descobriram centenas de livros magníficos. O meu pai trouxe aqueles que conseguiu, apareceu em casa e levou-me de volta para eu escolher todos os que quisesse. Chegámos depois de jantar e vimos os amigos dele a queimar os livros. Quando lhes perguntou por que faziam aquilo, houve um que lhe respondeu ‘Compramos livros novos às crianças e elas não os lêem. Achas que vão ler livros velhos?’.”
Os livros, comenta, não são tão importantes para uma cultura que cedeu à novidade e ao materialismo quanto o são ter um carro ou uma scooter para oferecer aos filhos. A sua excepção, diz, faz com que hoje possa dizer que na sua vida “Em Busca do Tempo Perdido, de Proust, é mais importante do que o Corão”. Algo que, ironicamente, sabe não poder afirmar na presença do seu pai.
O Ípsilon viajou a convite do Teatro Nacional D. Maria II