Ambiente falhou medição de enxofre no ar em Setúbal
Não houve medições no local da Sapec feitas no dia do acidente e as medidas cautelares foram tomadas mais de 24 horas depois. O país está mal preparado para acidentes industriais graves.
O incêndio de terça-feira na Sapec Agro, em Setúbal, que libertou uma nuvem de dióxido de enxofre, revelou as fragilidades do país em matéria de segurança industrial, expondo lacunas legais e até falta de meios. As medidas cautelares, recomendadas pela Direcção-Geral de Saúde e Protecção Civil Nacional, relativamente ao acidente de Setúbal, podem ter sido adoptadas com um dia de atraso, dizem especialistas, por falta de medições adequadas da qualidade do ar e as consequências para as populações podiam ser bem piores se a substância em causa não fosse relativamente inócua.
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O incêndio de terça-feira na Sapec Agro, em Setúbal, que libertou uma nuvem de dióxido de enxofre, revelou as fragilidades do país em matéria de segurança industrial, expondo lacunas legais e até falta de meios. As medidas cautelares, recomendadas pela Direcção-Geral de Saúde e Protecção Civil Nacional, relativamente ao acidente de Setúbal, podem ter sido adoptadas com um dia de atraso, dizem especialistas, por falta de medições adequadas da qualidade do ar e as consequências para as populações podiam ser bem piores se a substância em causa não fosse relativamente inócua.
Ao que o PÚBLICO apurou, a unidade móvel de medição da qualidade do ar da Agência Portuguesa de Ambiente, utilizada nestes casos, encontrava-se avariada no dia do acidente, pelo que não se deslocou a Setúbal. O atraso na percepção do que estava a acontecer pode ter impedido a atempada intervenção da Direcção-Geral de Saúde (DGS).
A medição da qualidade do ar foi feita através das estações fixas mais próximas (estação do Quebedo, da APA, que fica já no interior da cidade, e do Outão, da Secil, que fica na Arrábida, do lado aposto ao incêndio), para onde a coluna de fumo não se deslocou.
A única medição no local foi feita por um detector do Grupo de Intervenção e Protecção de Socorro (GIPS) da GNR, mas apenas nas imediações do incêndio, para protecção dos homens envolvidos no combate ao fogo e trabalhadores do parque industrial.
No rasto da nuvem de enxofre, que passou por localidades como Praias do Sado, Faralhão, Gambia, para Norte, em direcção a Vila Franca de Xira, não foi feita qualquer medição da qualidade do ar.
Por isso, as medições da APA, nas estações fixas deram sempre níveis de qualidade do ar “bom” e apenas no dia seguinte, quarta-feira, porque os ventos mudaram, a estação do Quebedo registou 503 microgramas de dióxido de enxofre por metro cúbico de ar.
Foi este valor que levou a APA a comunicar à DGS, ao início da tarde de quarta-feira, que tinha sido atingido "um limiar de alerta para a protecção da saúde humana", definido, segundo a Lei da Qualidade do Ar, em 500 ug/m3.
Medidas ao retardador
É só a partir daí que se começam a tomar medidas e a recomendação da DGS e da Autoridade Nacional de Protecção Civil, para que as pessoas mais vulneráveis se protegessem, levou depois a que a Câmara Municipal de Setúbal determinasse o encerramento de todas as escolas do concelho durante o dia de quinta-feira. Entretanto, as crianças já tinham tido um dia de aulas depois da emissão de enxofre, que terá sido o dia de quantidades mais elevadas de dióxido no ar.
As pessoas das localidades vizinhas, por onde passou a nuvem de enxofre, poderão ter sido expostas a níveis perigosos para a saúde. “Certamente que no Faralhão as pessoas foram expostas a níveis de dióxido de enxofre de vários milhares de microgramas por metro cúbico ao longo de várias horas”, disse, ao PÚBLICO, Francisco Ferreira, ambientalista da Zero e professor da Universidade Nova de Lisboa.
Este especialista, que trabalha na medição da qualidade do ar, conclui que houve “uma sub-valorização, por parecer que o incêndio estava em vias de controlo e a qualidade do ar aparentemente boa, mas o incêndio prolongou-se e o vento mudou, trazendo a nuvem para onde havia mais pessoas”.
Francisco Ferreira defende que deveria ser feita a “avaliação de efeitos a curto e longo prazo na saúde das pessoas das localidades próximas” e que “é necessário um inquérito e inclusivamente um apuramento das responsabilidades”.
O PÚBLICO questionou a APA sobre o ocorrido mas não obteve resposta às questões colocadas.
Por sua vez, a Quercus defende a elaboração de “um plano específico” para monitorizar a qualidade do ar, solo e água, para perceber “o potencial grau de contaminação local a que o incidente poderá conduzir”. O plano deverá incidir principalmente na análise de água para consumo humano (captações de água) e na qualidade da água do estuário do Sado e das zonas balneares circundantes, refere a associação em comunicado.
Segundo o último balanço feito nesta quinta-feira pela Direcção-Geral de Saúde, um total de 20 pessoas, entre as quais dez bombeiros, sofreram lesões devido ao excesso de dióxido de enxofre. Um balanço relativamente positivo uma vez que o dióxido de enxofre, apesar de efeitos crónicos que pode provocar, acaba por ser uma das mais inócuas substâncias entre os vários produtos tóxicos, alguns letais, existentes na zona.
"Destes dez bombeiros todos tiveram alta. Os restantes dez incluíram algumas crianças. A última vítima que deu entrada no Hospital de Setúbal era também uma criança, elevando assim para dez as pessoas que poderão ter sido atingidas por esta ocorrência", disse Luís Meira, presidente do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM), durante a conferência de imprensa.
De acordo com o presidente do INEM, o nível de concentração e exposição a que as vítimas foram sujeitas não indica que sejam expectáveis lesões permanentes.
A Direcção-Geral de Saúde referiu ainda que, neste momento, não há emissão de dióxido de enxofre e que não se justificam as medidas de protecção à população, anunciadas na quarta-feira. O presidente do INEM sublinhou que “não houve uma indicação expressa da DGS para encerramento de escolas” e que essa foi “decisão e competência específica dos serviços municipais de Protecção Civil”, que “entenderam que face às condições essa decisão seriam ajuizadas e convenientes”.
O incêndio na Sapec foi dado como extinto às 09h15 desta quinta-feira e as escolas de Setúbal já estão reabertas nesta sexta-feira.
Entretanto, segundo o Expresso, o Ministério Público abriu uma investigação ao incêndio. Uma fonte da Polícia Judiciária de Setúbal revelou ao jornal que um grupo de inspectores esteve no local e concluiu que "o incêndio não tem origem criminosa".
Uma bomba-relógio num país pouco preparado
Apesar do susto, o enxofre não é o pior que pode acontecer em caso de algum acidente nesta zona. No parque industrial de Mitrena há seis empresa designadas ‘indústrias de Seveso’ – localidade em Itália que deu o nome à legislação comunitária em matéria de empresas que armazenam ou processam substâncias perigosas: a Sapec Agro (que não pertence ao Grupo Sapec), Portucel (actualmente designada Complexo Industrial de Setúbal da Navigator Company), Adubos Deiba, Sapec Química (Grupo Sapec), Tanquisado e Sopac. No total, na região há sete ‘indústrias Seveso’ uma vez que a Secil, no Outão, Arrábida, também tem este estatuto. A Secil e a Sopac, têm, no entanto, categoria ‘nível inferior’ de perigosidade, enquanto as demais são de ‘nível superior’.
Em todo o país, são um pouco menos de 200 as empresas registadas, na Agência Portuguesa do Ambiente, como indústrias perigosas (para cerca de 10 mil na Europa). Boa parte destas indústrias está localizada nos arredores de Lisboa, no Barreiro e Alverca, por exemplo. Mas Portugal até não é um país particularmente perigoso, quanto à quantidade e ao tipo de indústrias com substâncias perigosas.
O problema da situação portuguesa é essencialmente decorrente das lacunas legais, que deixam as populações mais indefesas do que noutros países porque o país está em incumprimento da directiva comunitária n.º 2012/18/UE (Direvtiva Seveso III).
A lei interna que transpõe essa directiva (DL n.º 150/2015 de 5 de agosto) não impõe zonas de segurança para as populações simplesmente porque a metodologia nunca chegou a ser definida pelas portarias governamentais previstas no próprio diploma legal.
Assim, a distância mínima deste género de indústrias relativamente a zonas urbanas não está regulamentada o que permite que a Agencia Portuguesa do Ambiente (APA), entidade competente nesta matéria, venha, ao longo dos anos, a licenciar todos os cenários quanto a distâncias de segurança.
Trata-se de matéria de complexidade científica que carece de regulamentação e que teria implicações nos planos directores municipais e no domínio dos seguros de risco para esta actividade económica.
Outra lacuna da legislação nacional é a falta de definição legal do conceito de risco aceitável. Este conceito deve definir o que é aceitável para as populações, em termos de probabilidade de acidentes ou das suas consequências, num determinado período, por exemplo, de cem anos.