Um filme deste mundo

É verdade, a música de Ry Cooder já não se ouve como em 1984, mas as histórias não desapareceram. E esta reposição vem lembrar-nos isso. Que as perdas e os reencontros, os desenlaçamentos e as reconciliações ainda são deste mundo. Como foi e é este cinema.

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Paris, Texas abre-se e fecha-se em movimento

Em 1984, era uma música que se ouvia na rua e em casa, na rádio e na televisão. Mesmo os que não tinham visto o filme, conviviam com o lamento seco e fundo de Ry Cooder. Havia, é certo, fotografias nos jornais um ou outro fragmento na televisão, mas a música vinha do filme e abria o filme. Era a verdadeira porta, ainda que invisível, para Paris, Texas. E seria pela música que muitos o reencontrariam anos depois, retomando com a modéstia dos espectadores, o mesmo gesto de Wim Wenders: imaginar a América, com fascínio e decepção, sentimento de perda e desejo de pertença. Entre o deserto e os arranha-céus, o filme mostrava pessoas que se reuniam, que se abraçavam, que se separavam. E que se salvavam.

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Em 1984, era uma música que se ouvia na rua e em casa, na rádio e na televisão. Mesmo os que não tinham visto o filme, conviviam com o lamento seco e fundo de Ry Cooder. Havia, é certo, fotografias nos jornais um ou outro fragmento na televisão, mas a música vinha do filme e abria o filme. Era a verdadeira porta, ainda que invisível, para Paris, Texas. E seria pela música que muitos o reencontrariam anos depois, retomando com a modéstia dos espectadores, o mesmo gesto de Wim Wenders: imaginar a América, com fascínio e decepção, sentimento de perda e desejo de pertença. Entre o deserto e os arranha-céus, o filme mostrava pessoas que se reuniam, que se abraçavam, que se separavam. E que se salvavam.

O Estado das Coisas (1983), o filme anterior do cineasta alemão, deambulando na impossibilidade de fazer cinema, não iluminara esses gestos. Fechara-se numa Los Angeles lúgubre, com a morte do protagonista, um realizador. Paris, Texas, abre-se e fecha-se em movimento. A cena de abertura é luz e cor, com a câmara a voar sobre esse mudo andarilho que dá pelo nome de Travis (Harry Dean Stanton), e que o filme não mais abandonará (também não abandonará a luz e as cores). Conta-se que, antes da rodagem, Wenders não teve apenas Sam Shepard como companhia literária, que andava a (re)ler a Odisseia, de Homero. É um dado coerente com a aspiração que anima o filme: a de contar histórias. Paris, Texas é um road-movie que insiste nessa acção, não para interrogar a narrativa, mas para a conservar. Quer resguardar do mundo, os sentimentos, os motivos e os actos das personagens.

E no entanto, Paris-Texas acompanha a reentrada de um homem no mundo. Resgatado pela mão de Walt, o paciente irmão, (interpretado por Dean Stockwell), Travis voltará a falar, a comer, a conduzir. E voltará a ser pai de Hunter, o filho que ele abandonou: é bonito, o plano em que, quando nos damos conta, o miúdo já está ao seu lado a ver os filmes de família. Os laços restauram-se contra a perda e com a perda – a cena em que mãe adoptiva de Hunter se deita na cama vazia da criança – por meio de olhares e gestos, mas também com auxílio de objectos (filmes antigos, fotografias envelhecidas não muito diferentes das que Wim Wenders já filmara, dez anos antes, em Alice nas Cidades) e sons. Entre as personagens, há coisas que as separam e aproximam.

A reentrada de Travis não se dá num espaço puramente ficcional, mas na América filmada por Wenders, lugar em que o artificial e o falso coexistem com aquilo que as câmaras documentam e, portanto, guardam. O arranha-céus que serve de fundo ao irmão, enquanto conversa ao telefone, é, afinal, um painel publicitário, as cores (verdes, amarelos, vermelhos) ruborescem na fotografia de Robby Müller (que trabalharia com Jim Jarmusch, William Friedkin, Lars Von Trier), mas os comboios, que aparecem e desaparecem em vários planos, são mesmo comboios, como são as auto-estradas, os viadutos, as ruas, a paisagem do deserto, os edifícios em Houston (entramos na cidade com o pai e o filho). É como se o Wenders reconhecesse, sem esconder a vertigem que o impele (depois do rock and roll, apaixonou-se pelo cinema de Hollywood: alemão de 1945, procurou na América o consolo para uma orfandade cultural), as mentiras de um imaginário, mas, ao mesmo tempo, insistisse na presença dos lugares reais para neles contar uma história. Enfrentava uma paisagem desfigurada pela tecnologia, pelas perversões do comércio, pelo capitalismo, pois acreditava que nela ainda se escondiam dramas, enredos, narrativas que mereciam ser transfiguradas pelo cinema.

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O Estado das Coisas (1983), o filme anterior de Wenders, fechara-se numa Los Angeles lúgubre

Um convite a entrar na viagem

A história de Paris, Texas é uma história de separações e reuniões, construída com outros filmes, música pop-rock, literatura, pintura. Passado nos Estados Unidos, está praticamente esvaziado de americanos, com excepção dos actores, das crianças que saem da escola e das mulheres da casa dos peep-shows onde Travis localizará finalmente Jane (Natassja Kinski). E a todos eles, junta-se, sempre, o espectador. É esse o convite que Wim Wenders nos dirige. Também vagueamos pelas estradas, entre as luzes de néon, nos quatros dos hotéis, pelas ruas que envolvem os edifícios. Em Paris, Texas, inventa-se uma América que se oferece à viagem solitária de quem entra na sala de cinema.

Uma sedução. Não o fascínio frio do pensador francês Jean Baudrillard (por uma América como mero mundo de signos e simulacros), mas uma sedução que, ferida ou sobressaltada por uma visão negativa, sabe suspender-se. Não é isso que parece sugerir a sequência que culmina com uma bandeira dos Estados Unidos da América no topo do guindaste? Numa imagem, o cineasta deixa-nos um retrato: país de edifícios que sobem ao céu, construções de cimento e vidro, nação incansável no seu desejo de fabricação, de produção, de riqueza. Mas mencione-se outra, bem mais poderosa: o desespero silencioso de Travis quando entra na casa dos peep-shows. Aí, o sonho de uma América cede lugar já não ao desapontamento, mas ao pesadelo. E mais uma vez, o espectador volta a entrar. E voltará a entrar, agora para assistir ao luto e à despedida (ele veste de negro quando volta à cabine, tal como Jane) pois Travis nunca chega a abraçar ou a beijar a ex-mulher. Estão separados por um vidro onde desfilam palavras, memórias, imagens, que nenhum poderá agora quebrar. O que está feito não pode ser refeito. Restam as imagens imortalizadas do casal (sobretudo aquela em que Jane tenta ver no escuro todos os espectadores de cinema) fisicamente tão próximo e tão distante. No fim, os laços acabam por se refazer e Travis retomará a estrada, levando o filme para longe, de novo embalado pela slide-guitar de Ry Cooder.

É verdade, a música já não se ouve como em 1984, mas as histórias não desapareceram. E esta reposição vem exactamente lembrar-nos isso. Que as perdas e os reencontros, os desenlaçamentos e as reconciliações ainda são deste mundo. Como foi e é este cinema.