No Júlio de Matos, um teatro para acalmar a dor e reorganizar a vida
Sexta e sábado, o Centro Cultural da Malaposta recebe as últimas apresentações de Torcicolo, peça do Grupo de Teatro Terapêutico. Em cena, as dores de actores que sabem que também o mundo está doente.
Na sala de ensaios do Grupo de Teatro Terapêutico do Hospital Júlio de Matos, não há uma secretária entre duas cadeiras a 45º, nada que defina uma relação terapêutica protocolada com os pacientes. “Algo que protege quem está a fazer a terapia e quem está a ser alvo disso”, defende a terapeuta Isabel Calheiros. “Aqui trabalhamos sem mediação, directamente com as pessoas, com o nosso corpo e com o delas, com as nossas palavras e com as delas.”
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Na sala de ensaios do Grupo de Teatro Terapêutico do Hospital Júlio de Matos, não há uma secretária entre duas cadeiras a 45º, nada que defina uma relação terapêutica protocolada com os pacientes. “Algo que protege quem está a fazer a terapia e quem está a ser alvo disso”, defende a terapeuta Isabel Calheiros. “Aqui trabalhamos sem mediação, directamente com as pessoas, com o nosso corpo e com o delas, com as nossas palavras e com as delas.”
Quando Isabel Calheiros começou a acompanhar o trabalho do Grupo de Teatro Terapêutico (GTT) há 25 anos, já o encenador da companhia João Silva levava atrás de si três décadas a construir peças com os doentes psiquiátricos que médicos e psicólogos encaminham para aquela sala com o propósito de lhes proporcionar uma outra via para endireitarem as suas vidas. Nos três ensaios semanais do GTT são construídos espectáculos que depois sobem ao palco, mas em paralelo é trabalhada “uma reorganização da vida, das relações, das rotinas”. Por estes dias, a companhia que em 2017 celebra 49 anos de existência volta aos palcos com Torcicolo, peça estreada no ano passado e que sexta e sábado tem as suas derradeiras apresentações no Centro Cultural da Malaposta, em Olival Basto, Odivelas.
O processo terapêutico em que os actores do GTT se encontram envolvidos resulta de “doenças graves e muito limitantes, implicando medicações, internamentos e, nalguns casos, fases muito fora da realidade”, explica a terapeuta. O teatro é parte de uma estrutura de que cada um necessita para manter o seu equilíbrio e que oferece um objectivo que se tem provado eficaz a reduzir internamentos sucessivos, descompensações frequentes e medicações muito pesadas. Por isso, as passagens pelo grupo cumprem funções diferentes, estendem-se por variáveis períodos de tempo e com intervenções distintas.
Num caso recente, lembra Isabel Calheiros, “um homem de 30 anos chegou aqui a tentar terminar um mestrado e pouco mais dizia do que bom dia e boa tarde – não conseguia dizer mais do que isto”. Tendo-se licenciado esquivando-se a trabalhos de grupo e apresentações públicas, esteve três anos com o GTT. Não chegou a subir ao palco, mas a terapêutica seguida nos ensaios permitiu-lhe terminar o mestrado e ser finalmente capaz de defender a sua tese diante de um júri. Situação bastante distinta da vivida pelo senhor Pestana, institucionalizado há 40 anos e que participou em peças de 1979 a 1981, antes de ser transferido para o Hospital Bombarda, de onde só aceitou regressar convencido pela promessa de que poderia reintegrar o GTT. Apesar da esquizofrenia paranoide e de os muitos anos de pesada medicação não lhe permitirem estar em cena, assiste aos ensaios e, arrisca João Silva, sabe o texto de Torcicolo de cor.
A máscara cai
Pascoal Barros, Olga Varanda, Maria José Santos, Rita Fernandes, Filipe Maia e Carmo, Ana Paula Bastos, Matilde Fernandes e Bernardo Moreira. Cada um tem a sua história e as suas razões para integrar e se manter no Grupo de Teatro Terapêutico. Todos eles foram fundamentais para a criação e apresentação de Torcicolo. João Silva, autor do texto, fez como em tantas outras ocasiões: reuniu-se com os seus actores e pô-los a falar sobre aquilo que gostavam de explorar em palco até chegarem a um assunto. Desta vez a escolha, depois de deitarem para fora “emoções muito dolorosas”, recaiu sobre as dores individuais e colectivas. “O processo [de criação] é quase o mesmo de outros grupos”, compara o encenador, “mas aqui é um pouco mais complicado porque envolve visitas a interiores em que temos de ter cuidado, para não se danificarem nesse trajecto”.
“Para mim o que foi importante nesta peça”, confessa Olga Varanda, “foi falarmos sobre sentimentos e emoções como a ira, a violência, a raiva, o ciúme, emoções que passam por todos nós e com as quais nem sempre sabemos lidar”. Para outra das actrizes, Ana Paula Bastos, há sete anos com o GTT, se a partilha de histórias pessoais não é uma novidade neste espaço, nunca, até hoje, tinham aprofundado tanto questões que “são incomodativas para o ser humano”. “O ser humano não gosta de tirar a máscara e aqui a máscara cai completamente. Mostram-se as imperfeições que muitas vezes estão escondidas porque estamos num mundo de perfeição.”
Há ironia e verdade nas palavras de Ana Paula. Também estes actores são capazes de diagnósticos e sabem que “o mundo está doente”, como aponta Maria José Santos. Esse lugar conturbado, carregado de coisas que, acrescenta Pascoal Barros, “causam muita dor, muito sofrimento”, é também marcado pela “não inclusão” que leva a que socialmente só a aparente perfeição seja bem-vinda e tudo o resto seja varrido para debaixo do tapete ou para longe da vista. Em Torcicolo, diz Pascoal, tentam “fazer umas massagens para não doer tanto e acalmar um pouco a dor”.
Se essa fase inicial da partilha de experiências é essencial não só à construção posterior que João Silva faz a partir das notas que tira durante os encontros, mas também ao próprio processo terapêutico, aquilo que se segue não é menos importante. Depois de entrarem em contacto com as suas dores, partilhando-as com os outros membros e percebendo que, afinal, não estão sozinhos na maioria dessas situações problemáticas, tudo se altera "a partir do momento em que aparece uma personagem”, descreve Isabel Calheiros. “Permite um distanciamento deles em relação aos seus sofrimentos e algumas coisas que eram muito difíceis de conter passam a conseguir vivê-las de outra forma.” É precisamente isso que Ana Paula faz questão de observar: “Falo em situações que me incomodaram muito na minha vida, mas já me transporto mais para a personagem, já não sou a doente que está aqui a fazer terapia.”
E, por fim, o contacto com o público, confessa Olga, culmina naquilo que dá um sentido maior a todo o percurso: quem está em palco entrega-se aos outros.