Teremos sempre Paris,Texas
Todos já ouviram a slide guitar de Ry Cooder mesmo que não tenham visto Paris, Texas, história de uma errância para concertar uma harmonia familiar. Foi a odisseia de Wenders, até se harmonizar com a América. Ry Cooder pode não ouvir-se hoje como em 1984. Mas é filme do nosso mundo.
É sob o signo da deriva que se entra em Paris, Texas, o corpo escanzelado e maltrapilho de Harry Dean Stanton recortado entre as areias e os rochedos da porosa fronteira que liga o México e o sul dos EUA (ainda sem muros, claro: como um dos primeiros diálogos sugere, aquilo sempre foi zona de trânsito e tráfico no sentido lato da palavra). A música plangente da slide guitar de Ry Cooder – que extravasou o filme, ficou como seu ex-libris sonoro, que toda a gente já ouviu mesmo que nunca tenha visto Paris, Texas – marca o tom, como se as imagens não fossem suficientes: aquele homem não é um viajante feliz, não é um aventureiro, é só um homem “perdido no cosmos”, e o filme começa numa lamentação por ele. E assim, numa terra de ninguém, como se também procurasse pontos de referência, Wim Wenders lançava-se para o “filme na América” com que há tantos anos sonhava e que ameaçava-se tornar-se num pesadelo. Paris, Texas foi, como nos conta na entrevista que se segue, uma espécie de vai ou racha depois das agruras passadas durante a produção e a rodagem de Hammett nos babélicos Zoetrope Studios de Coppola (que na altura da estreia de Paris, Texas em 1984, já estavam fechados por bancarrota).
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É sob o signo da deriva que se entra em Paris, Texas, o corpo escanzelado e maltrapilho de Harry Dean Stanton recortado entre as areias e os rochedos da porosa fronteira que liga o México e o sul dos EUA (ainda sem muros, claro: como um dos primeiros diálogos sugere, aquilo sempre foi zona de trânsito e tráfico no sentido lato da palavra). A música plangente da slide guitar de Ry Cooder – que extravasou o filme, ficou como seu ex-libris sonoro, que toda a gente já ouviu mesmo que nunca tenha visto Paris, Texas – marca o tom, como se as imagens não fossem suficientes: aquele homem não é um viajante feliz, não é um aventureiro, é só um homem “perdido no cosmos”, e o filme começa numa lamentação por ele. E assim, numa terra de ninguém, como se também procurasse pontos de referência, Wim Wenders lançava-se para o “filme na América” com que há tantos anos sonhava e que ameaçava-se tornar-se num pesadelo. Paris, Texas foi, como nos conta na entrevista que se segue, uma espécie de vai ou racha depois das agruras passadas durante a produção e a rodagem de Hammett nos babélicos Zoetrope Studios de Coppola (que na altura da estreia de Paris, Texas em 1984, já estavam fechados por bancarrota).
Histórias de errância, e de trânsitos entre a Europa e os Estados Unidos, já Wenders tinha contado por diversas vezes ao longo dos anos 70, no Ao Correr do Tempo ou no Amigo Americano. Mas aqui a errância era para acabar, chegar a um fim, a um ponto definido – é a história de Travis (Stanton), à procura de concertar na vida real as imagens da harmonia familiar que a dada altura projecta em velhas bobines de super 8, e é a história de Wenders, que queria sair daqui com um filme feito como deve ser, e duma vez (o seu filme, e o de Sam Shepard, co-argumentista, o de Ry Cooder, compositor, tudo gente que, como nos conta, queria ter levado para Hammett e não o deixaram levar). O paradoxo aparente é que este “filme na América” (como Wenders prefere chamar-lhe em vez de “filme americano”), este filme made in USA como diria Godard, é construído sobre um despojamento desencantado, que fica com a vivência da paisagem e apaga, se não todo o imaginário (a personagem de Dean Stockwell trabalha em publicidade, faz billboards e outdoors, são as imagens que a paisagem americana integra inamovivelmente), a componente cinéfila desse imaginário. Ao contrário de outros momentos, pejados de referências, em que Wenders se aproximou da América a partir de uma recordação do seu cinema, o ataque aqui é directo, frontal como os campos/contracampos da sequência final em que Stanton e Nastassja Kinski falam um com o outro através dum vidro espelhado. Embebido da geografia americana, embebido da geometria americana (a horizontalidade rural contra as linhas angulosas e verticais das sequências de Houston), é um “filme na América” que não persegue uma ideia de “cinema americano”. Tanto assim que em Cannes 1984, o presidente do Júri que lhe entregou a Palma de Ouro, o grande actor britânico Dirk Bogarde, foi admoestado pela direcção do Festival quando lhe comunicou a decisão do palmarés: “então e os filmes americanos? Não havia nenhum filme americano para premiar?”.
Muitos dos seus filmes, ao longo dos anos 1970 e 80, mostravam personagens errantes, através do espaço e talvez também através do tempo - Alice nas Cidades (1974), Movimento em Falso (1975), Ao Correr do Tempo (1976), por exemplo. Mas Paris, Texas emerge num momento em que você - como cineasta - parecia também estar em movimento: os EUA, Portugal (no Estado das Coisas, 1982), Japão (Tokyo-Ga, 1985). Entre Movimento em Falso e As Asas do Desejo (1987) há um intervalo de dez anos em que não filmou na Alemanha. Lembra-se de uma razão específica para ter sido assim?
Eis o que se passou: tinha acabado O Amigo Americano (1977), o primeiro dos meus filmes a ter distribuição internacional alargada. Viajei pela Ásia ao longo do Verão de 1977 e descobri-me de volta ao deserto australiano a fazer uma coisa que não fazia há muito, a viajar por mim próprio, a tentar deixar tudo para trás durante algum tempo, descobrindo o mundo dos aborígenes australianos e desenvolvendo o que eu pensava que seria o meu filme seguinte, um projecto de ficção científica com o título de trabalho Until the End of the World. Nesse momento, chegou um telegrama a uma terra remota e esquecida por Deus no deserto. Era Francis Ford Coppola, a perguntar se eu queria ir a São Francisco discutir um filme chamado Hammett. Dizia coisas elogiosas sobre O Amigo Americano e tudo parecia excitante. Na verdade, era. Alinhei. Voei até à Califórnia, e concordei fazer esse filme.
Na minha cabeça era apenas uma etapa no caminho para chegar ao tal filme de ficção científica na Austrália, em dois anos eu estaria de regresso a Alice Springs. Mal poderia saber. Hammett levou-me quatro anos, com interrupções, durante as quais fiz Lightning over Water (1980) e O Estado das Coisas. E Hammett, afinal, não se tornou o “filme americano” que eu esperava que podia ser. Na verdade, mostrou-me que eu nunca poderia fazer “um filme americano”, que isso pura e simplesmente não estava em mim. Que eu iria continuar a ser um cineasta europeu com o coração de um alemão romântico. Mas o problema é que eu senti que não poderia regressar a casa, depois de seis ou sete anos na América, “de mãos vazias”, por assim dizer. Devia a mim próprio, sentia, o tal “filme na América” (não o “filme americano”) que planeara.
Paris, Texas apareceu a partir desse buraco na minha vida, e juntei aquelas pessoas fantásticas com quem eu não tinha conseguido trabalhar em Hammett: Sam Shepard, que eu não conseguira impor como actor principal (caramba, como ele teria sido fantástico!), Ry Cooder, que me tinha sido recusado como compositor, e Robby Müller, que não tinha sido autorizado, por razões sindicais, a fotografar o filme. Com estes grandes artistas e amigos decidi fazer o meu filme, na América. Em termos de produção, foi quase “guerrilha” (e um modelo para outros que queriam trabalhar de forma independente na América), e foi o filme que me permitiu regressar a casa de cabeça erguida. E foi este regresso que me levou ao primeiro filme alemão depois de uma ausência de sete ou oito anos, naquela que eu considerava ser a minha cidade, Berlim, As Asas do Desejo.
E só regressei ao deserto australiano dez anos depois da minha partida. Foi na verdade uma grande volta, um gigantesco tour du monde, de alguma maneira como naqueles romances alemães do século XIX, em que um jovem tem de deixar a sua casa e o seu país para, finalmente, se encontrar e encontrar o seu destino.
A experiência de Hammett nos Zoetrope Studios de Coppola foi dolorosa. Paris, Texas, sendo um regresso aos EUA, é um filme sobre um homem que tenta a reconciliação com as suas memórias dolorosas. Até que ponto fala da sua própria relação - e experiência - com a América e com o cinema americano?
Foi o (maioritariamente inconsciente) esforço para solidificar a minha identidade. Quem era eu como cineasta? Onde é que pertencia? A América pode ser uma grande tentação para um jovem, e já vi muitos falharem nessa viagem através da ilusão de um “sonho americano”. Depois de Paris, Texas, de alguma maneira tinha exorcizado esse sonho. Senti que o filme me libertara, por um lado, e por outro eu conseguira mostrar o que tanto me fascinara na “América” e a razão por que a amara tanto. Na verdade, ainda amava, mas já não era uma obsessão, uma ficção. A América tornara-se uma realidade e o meu lugar era algures dentro daquele estranho pequeno haiku que o título, “Paris” e “Texas”, descrevia: eu era, de alguma forma, a vírgula entre as duas palavras.
Conhecendo a sua devoção ao cinema americano, a forma como o referenciava em muitos dos seus filmes alemães dos anos 1970, o trabalho que fez com Nick Ray ou Samuel Fuller, Paris, Texas, apesar das paisagens de western, emerge como um filme em que os aspectos “cinéfilos” são quase invisíveis. É tentador ver na amnésia inicial de Travis uma espécie de tabula rasa, como se evidenciasse uma vontade de olhar para a América, de construir uma imagem pessoal, “apagando” e livrando-se de toda a bagagem cinéfila: uma abordagem mais directa e física. Isto faz sentido para si?
Completamente. Recusei ver uma imagem que fosse do Oeste americano ao preparar Paris, Texas. Não quis rever qualquer filme que tivesse sido ali filmado. Fiz uma grande viagem como fotógrafo através do Oeste para o habitar com as minhas próprias imagens. O que levou a um livro chamado Written in the West. Quis evitar, a todo o custo, que este filme tivesse modelos, antecedentes. O meu director de fotografia, Robby Müller, e eu até evitámos fazer sketches na noite antes de um dia de rodagem (como sempre fizéramos) e chegávamos ao set sem ideia de como iria ser o primeiro plano do dia. Quis expor-me à paisagem do Oeste americano sem preconceito, sem predisposição. Sim, tabula rasa foi a condição em que nos quisemos colocar.
Trabalhou com argumentistas que eram escritores estabelecidos. Peter Handke, obviamente, mas neste caso (como mais tarde em Don’t Come Knocking) Sam Shepard. Como é que se conheceram e como é que decidiram trabalhar juntos? E qual foi a particularidade da colaboração em Paris, Texas?
Conheci Sam Shepard na preparação de Hammett. Ele estava em São Francisco a trabalhar na primeira produção de Fool for Love. Gostámos um do outro, tornámo-nos amigos, sugeri-o para intérprete principal de Hammett, fizemos mesmo muitos screen tests com Sam e Gene Hackman, em que Sam era extraordinário! Ele teria sido perfeito! Mas o estúdio insistiu num nome, e mesmo sendo Sam uma estrela no mundo teatral, nunca tinha aparecido num filme. Porém, a certa altura, das duas, uma: ou aceitava fazer o filme com um actor conhecido ou não poderia fazê-lo. Por isso, Sam e eu desistimos do nosso sonho, mas combinámos trabalhar juntos numa próxima ocasião.
Aconteceu quatro anos depois. Eu começara a desenvolver um argumento baseado numa colecção de contos de Sam, Motel Chronicles. Quando lhe mostrei, ele não ficou convencido que daria um filme. Mas nesse argumento estava a semente da personagem de Travis, e Sam e eu decidimos desenvolver a partir daí. Foi então que nos sentámos a escrever Paris, Texas.
Um dos temas de Paris, Texas é a forma como as memórias e as imagens estão interligadas: fotografias, super8, etc. Nas sequências finais, Travis só consegue relacionar-se com a mulher através de um vidro no peep show, que é evidentemente similar a um ecrã. Somos tentados a considerar que o passado de Travis, as suas memórias, se tornou uma espécie de cinema pessoal e imaginado. Diria que este cruzamento entre experiência pessoal e história colectiva que o cinema desencadeia é uma das preocupações do seu trabalho?
Disse-o muito bem. Não poderia dizê-lo porque tento o mais possível usar o instinto em vez do cérebro, não analiso o meu ímpeto e processo criativos. Mas diria: “Tem toda a razão!”
Quando começou a rodar As Asas do Desejo, suspeitou alguma vez de que estava a documentar os últimos dias do Muro de Berlim? Há um tom tão fatalista no filme que sugere que não e que terá ficado tão surpreendido como todos nós pelos desenvolvimentos do final dos anos 1980; mas será interessante ouvir as suas memórias desse tempo.
Ninguém que trabalhou no filme poderia pensar que veria a queda do Muro dois anos depois. De alguma forma, antecipámos isso com os actores a “atravessarem” o Muro, e o título Der Himmel über Berlin [O Céu sobre Berlim, original que daria As Asas do Desejo] descrevia o único lugar que as duas cidades partilhavam: o céu sobre elas. Para além do céu comum, estas duas Berlim estavam em planetas diferentes e não podiam estar mais afastadas uma da outra. Berlim era um lugar único e incrivelmente aventuroso na altura, um céu para músicos (como aqueles australianos loucos que eram heróis da cena underground: The Bad Seeds e Crime and the City Solution. Eram grunge antes de o termo ser cunhado...). E Berlim era uma cidade extremamente pacífica. Sem crimes. Sem armas. Basicamente porque não se podia deixar a cidade sem atravessar uma fronteira... Era não só um símbolo do “mundo livre”, era em si um mundo livre.
Michael Cimino disse uma vez, sobre Paris, Texas, que você foi um dos poucos cineastas estrangeiros que tinham realmente “percebido” a América. Sente que percebeu a América?
Quanto mais se “percebe” a América, menos sabemos sobre ela, parece-me. Tentei “perceber” a alma americana, a sua beleza, os seus ideais, mas também percebi os seus perigos, as suas armadilhas. Vi o lado negro. (Que ultimamente se tornou tão poderoso e assustador.) Na altura, com a ajuda de Sam Shepard e Ry Cooder, cheguei perto, e tive a ajuda de dois grandes “pesquisadores” do Oeste americano.