É mesmo Proust o homem filmado a descer a escadaria?
Num filme de 1904 de um casamento da aristocracia parisiense, o homem de chapéu de coco e fato cinza pérola é, com grande probabilidade, Marcel Proust. Di-lo um académico canadiano. Serão as primeiras imagens em movimento do grande romancista francês.
Descem os mordomos de lança espetada, fato e chapéu elaborados, e apressam-se os fotógrafos com as suas pesadas máquinas, procurando chegar ao melhor local para enquadrar os convidados. Descem os noivos, Armand de Guiche e Elaine Greffulhe, que acenam aos presentes a meio da escadaria da Igreja de la Madeleine, em Paris (curiosa coincidência, como se perceberá). E é então, entre as mulheres de vestidos vistosos e os homens de cartola e fraque ou sobretudo, que o vemos.
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Descem os mordomos de lança espetada, fato e chapéu elaborados, e apressam-se os fotógrafos com as suas pesadas máquinas, procurando chegar ao melhor local para enquadrar os convidados. Descem os noivos, Armand de Guiche e Elaine Greffulhe, que acenam aos presentes a meio da escadaria da Igreja de la Madeleine, em Paris (curiosa coincidência, como se perceberá). E é então, entre as mulheres de vestidos vistosos e os homens de cartola e fraque ou sobretudo, que o vemos.
Caminha em passo rápido pela esquerda da passadeira vermelha, e destaca-se pela indumentária pouco comum à época, dizem os entendidos: chapéu de coco e um fato cinza pérola. Destaca-se por outra razão: tem a aparência de um homem nos seus trintas, um bigode de pontas bem aparadas e traços faciais que, diz Jean-Pierre Sirois-Trahan, professor de literatura e cinema na Universidade Laval do Quebec, não deixam muitas dúvidas. Neste registo filmado de um casamento da aristocracia parisiense, registado em 1904, estarão as únicas imagens em movimento conhecidas de Marcel Proust, o autor de Em Busca do Tempo Perdido.
O professor, apesar de cauteloso quanto à descoberta – “a silhueta e o perfil correspondem ao seu, ainda que seja sempre difícil uma identificação com toda a certeza num filme deste tipo” –, acentuou à Le Point que, além de o vestuário usado pelo homem no filme corresponder ao que Proust, então com 30 anos, usaria à época, a sua presença no casamento, e o facto de não ter levado acompanhante ao mesmo, estão documentados. A mãe da noiva, Élisabeth de Caraman-Chimay, é mesmo considerada uma das suas maiores inspirações para a criação da elegante Duquesa de Guermantes de Em Busca do Tempo Perdido.
O filme de pouco mais de um minuto (Proust, que morreria em 1922, aos 51 anos, surge ao segundo 37) faz parte do espólio familiar dos Greffulhe e encontra-se no Arquivos Franceses de Cinema de Bois-d’Arcy – Sirois-Trahan fez a sua descoberta numa cópia dos mesmos no arquivo do Centro Nacional de Cinema do Canadá. Devido ao empenho dos proustianos em descobrir imagens do romancista aqueles são os arquivos familiares mais consultados em Bois-d’Arcy.
Ao contrário do responsável pela descoberta, Luc Fraisse, director da Revue d’Études Proustiennes, não tem dúvidas de que o homem no filme é mesmo Proust. “Dado que conhecemos todos os detalhes da vida de Proust, sabemos através de várias fontes que durante aqueles anos ele usava um chapéu de coco e um fato cinza pérola. É comovente pensar que somos os primeiros a ver Proust desde os seus contemporâneos”, declarou à Le Point. Jean-Yves Tardié, um dos maiores especialistas na obra de Proust, diz ao Le Monde que, após a descoberta do filme, falta apenas ouvir a voz do escritor. “De qualquer modo, isto prova que há sempre coisas a descobrir, e talvez outros tesouros se quedem adormecidos em filmes de família”.
Numa era como a que vivemos, em que todos os passos do quotidiano são registados freneticamente nos mais diversos formatos e plataformas, preciosidades como as agora reveladas ganham uma aura irresistível pelo mistério que a revelação não apaga. Paramos para ver e rever o rosto de Anne Frank debruçada à janela do seu apartamento em Amesterdão, em 1941, e esmiuçamos todos os pormenores dos filmes que nos mostram Lev Tolstói, o gigante da literatura russa, a serrar madeira e a receber convidados nos seus terrenos em Yasnaya Polyana, no dia em que completou 80 anos, em 1908 – ou a sua mulher, Sofia, a apanhar flores no jardim, Tolstói caminhando vagarosamente numa estação ferroviária ou a multidão que acompanha o seu cortejo fúnebre.
Agora, seguimos frame a frame os segundos em que um homem de 30 anos, chapéu de coco e fato pérola cinza, desce apressado uma escadaria. Estaremos mesmo, por fim, a ver Marcel Proust vivo perante nós?