O dinheiro segundo Teresa Villaverde – ou a falta dele
Colo, em concurso na Berlinale, é um filme duro, difuso, comovente, perturbante sobre o que acontece às vidas normais quando a crise atinge o último reduto, o da família. Um statement português na Alemanha da disciplina orçamental.
“Nunca mais vamos ter dinheiro?”
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“Nunca mais vamos ter dinheiro?”
Ao longo dos últimos dias, pelos corredores da Berlinale, a conversa entre a representação portuguesa no festival acabava sempre por ir dar à polémica dos financiamentos, à questão dos jurados, à carta aberta que coligiu centenas de assinaturas, de Victor Erice a Thierry Fremaux – e no meio desta trovoada, quase como quem não quer a coisa, cai Colo. A sétima longa-metragem de Teresa Villaverde, sucessora de Cartas da Guerra de Ivo Ferreira na competição oficial de Berlim, é um filme sobre o dinheiro. Ou antes, sobre não o ter. E sobre o que não o ter faz às pessoas.
Colo é a história de uma família de classe média como tantas outras, e do modo como, quase sem dar por isso, a classe média deixou de o ser. O pai (João Pedro Vaz) está desempregado e desesperado; a mãe (Beatriz Batarda) é a âncora que sustenta a família como pode, procura arranjar outros empregos que compensem o dinheiro. A filha, Marta (Alice Albergaria Borges), tenta encontrar o seu caminho por entre a passividade do pai, a ausência da mãe e o dinheiro que não há para o passe ou para o lanche. “Nunca mais vamos ter dinheiro?”, pergunta ela às tantas. “Odeio o dinheiro!”, completa logo a seguir. “O que está a acontecer às nossas vidas?”
São essas vidas que Teresa Villaverde filma, segundo as suas palavras, com um enorme pudor. “A câmara neste filme é como se tivesse pudor em aproximar-se das personagens,” disse esta manhã na conferência de imprensa realizada entre a projecção para a imprensa e a estreia oficial em concurso, à tarde, com a presença do ministro da Cultura. “A câmara funciona como um observador interessado mas que guarda alguma distância, um bocadinho longe.” A câmara é de Acácio de Almeida, cujo trabalho de fotografia, preciso, sensível, atento, foi aplaudido na conferência de imprensa – e Teresa Villaverde não poupou elogios ao trabalho do veteraníssimo director de fotografia portuguesa, “que rodou com todos os grandes cineastas portugueses”, e que tornou natural a opção pela rodagem em digital, pela primeira vez num filme da realizadora.
É, tem de se dizer, um filme que prolonga a opacidade narrativa, a intuição que reconhecemos no cinema exigente, frágil, da realizadora de Os Mutantes, Água e Sal, Transe ou Cisne. Mas, pela primeira vez no seu cinema tão interessado pela perda da inocência, nas suas vias sacras de penitência e redenção, vemos o que se passa antes dessa via sacra – assistimos à desintegração de um núcleo familiar, vemos uma família que se desfaz lentamente sob a pressão do ter de encontrar dinheiro, comprar comida, pagar a luz…
Na conferência de imprensa, Teresa Villaverde disse-o: "Neste filme a crise é mais do que económica. É também a crise da família, do pouco tempo que as pessoas têm para viver, para falar umas com as outras. Quis retratar a solidão, uma estrutura que se deteriora, porque quando existe uma crise económica todos os outros problemas parecem ser exacerbados. Dos meus filmes, talvez este seja aquele onde o silêncio se sente mais. É mais importante aquilo que não se diz, que fica por dizer."
O título do filme – Colo – vem aliás daí. Um dos jornalistas portugueses relaciona-o com a necessidade de afecto, de compreensão, de uma mão que ajude num momento difícil. Para a realizadora, "o título é provavelmente mais misterioso para os portugueses do que para os não portugueses": "Não sei explicar bem por que lhe quis chamar Colo. Estamos num momento confuso e precisamos de algo que não sabemos bem o que é."
Um momento que é, também, político – o modo como Colo torna reais, tangíveis, as dificuldades financeiras que muitos portugueses viveram é insuportavelmente duro, e torna-o igualmente um filme ideal para a tendência social das escolhas de Berlim, um statement sobre a crise, no coração da Alemanha da disciplina orçamental. A uma pergunta de uma jornalista portuguesa que trabalha para a Deutsche Welle, Teresa Villaverde responde: “A democracia está cada vez mais participativa, [mas] elegemos os representantes e depois distanciamo-nos do assunto… E de repente há surpresas, como as que estamos a ter agora. A Europa foi criada como um bloco de solidariedade, onde todos os países se ajudaram, e isso está a perder-se. Mas temos de continuar a acreditar na democracia.” Ou, como João Pedro Vaz disse, citando Sérgio Godinho, “a democracia é o pior de todos os sistemas, à excepção de todos os outros”.
Vontade de dizer coisas
O risco de ter um filme como Colo em Berlim é que a sua dimensão de “festival do tema” pode afogar ou afastar o cinema que possa existir. Mas sabemos também que é pelo cinema que por vezes nos chegam os mais belos momentos de redenção e graça. O filme de Aki Kaurismäki, The Other Side of Hope, não falava de outra coisa que não fosse dessa necessidade de afecto, da dignidade humana; Teresa Villaverde fá-lo também aqui, através de duas tramas paralelas – o afecto que Marta dá ao seu passarinho e a gravidez inesperada de Júlia (Clara Jost), amiga da menina. São oásis pelo meio da solidão silenciosa, ensimesmada, de um filme algo longo, pontualmente difuso, mas que nos aperta permanentemente o coração e nos comove a espaços.
Colo foi feito com pouco dinheiro – “porque em Portugal trabalhamos com orçamentos relativamente baixos, e às vezes dá mais trabalho conversar com o produtor do que ser eu a produzir directamente, e tenho mais dinheiro” –, mas com entrega, paixão, vontade de dizer coisas. E ainda a propósito de dinheiro, ficou um agradecimento da realizadora "ao mundo de cineastas, produtores, directores de festivais, jornalistas internacionais que assinaram a carta aberta". "Ciclicamente, temos este problema em Portugal e, de degrau em degrau, vamos conseguindo resolver as coisas. Estou confiante que isto se vai resolver e que vamos conseguir ultrapassar esta situação." Porque é dessa solidariedade, também, que Colo fala.
"Estou muito contente com este filme," diz Teresa Villaverde. "É um filme bastante justo no seu tempo, na importância do silêncio. Porque estávamos a falar das pessoas, da solidão das pessoas." Colo faz-nos sentir um pouco menos sós.