Orgulho, preconceito e… comunismo

Fora de concurso em Berlim, Raoul Peck filma a amizade entre Marx e Engels como um filme de prestígio de época. Porque os fins justificam os meios

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Era uma vez um jovem intelectual sem dinheiro que casou com uma linda esposa aristocrata, que deixou para trás a família desaprovadora para ir viver uma grande aventura de amor e provações com o homem que escolheu; e o jovem intelectual sem dinheiro trava-se de amizade com um jovem intelectual endinheirado que partilha dos seus ideais e das suas convicções e juntos decidem mudar o mundo.

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Era uma vez um jovem intelectual sem dinheiro que casou com uma linda esposa aristocrata, que deixou para trás a família desaprovadora para ir viver uma grande aventura de amor e provações com o homem que escolheu; e o jovem intelectual sem dinheiro trava-se de amizade com um jovem intelectual endinheirado que partilha dos seus ideais e das suas convicções e juntos decidem mudar o mundo.

Dito desta maneira, podia ser um qualquer grande filme romântico, uma espécie de Jules e Jim no século XIX sobre dois homens amigos rivais e a sua musa comum, um grande melodrama clássico de época sobre poetas ou escritores que deixaram marcas na história. E na verdade até o é. Só que o jovem intelectual sem dinheiro é Karl Marx, a esposa adorada Jenny von Westphal, o jovem intelectual endinheirado Friedrich Engels, e Raoul Peck conta a história deste trio ateu e vanguardista como se fosse um filme de época de prestígio, uma qualquer produção inglesa ou francesa sobre grandes figuras históricas. Le jeune Karl Marx (fora de concurso na Berlinale Special), co-produção franco-belga-alemã apadrinhada pelo marselhês empenhado Robert Guédiguian (que a produziu) e pelo crítico e realizador Pascal Bonitzer (que a co-escreveu), é a origem do comunismo contada como se fosse Orgulho e Preconceito por um cineasta militante haitiano que já viajou por todo o mundo e que está este ano em liça para o Óscar de Melhor Documentário pelo seu filme sobre James Baldwin, I Am Not Your Negro (que também faz parte do programa berlinense).

Dois filmes mais diferentes não se podem imaginar; numa mesa-redonda com jornalistas internacionais em Berlim, Peck, afável, inteligente, atento, assume a contradição subversiva de contar a história da amizade de Marx e Engels como um filme de época. “Durante dois anos trabalhei em Le jeune Karl Marx a pensar que iria fazer um documentário, ou um documentário encenado, mas acabei por desistir. Era uma história que precisava de ser contada numa forma de narrativa ficcionada, para eliminar todo o ruído que se pudesse criar à sua volta e devolver a história ao fundamental: a amizade entre estes dois homens, o facto de que Marx era um pensador de génio e que isso era reconhecido por Engels e por Jenny. E o facto de eles terem realmente mudado o mundo mas de não conseguirmos olhar para eles fora dos lugares-comuns viciados.” Em resposta a uma pergunta de uma jornalista, mais tarde, Peck dirá que os desenvolvimentos das ideologias comunista e marxista vieram distorcer as ideias originais de Marx e Engels, que se baseavam na análise rigorosa dos factos e dos números – e que, também por isso, Le jeune Karl Marx, trabalhado a partir da correspondência factual entre os dois amigos, quer falar não apenas da política mas sobretudo das pessoas que a criaram.

Não é, portanto, por acaso que o filme assume abertamente a dimensão de “cinema de prestígio”, de “drama de época” - é uma aplicação prática da própria subversão que Marx e Engels fizeram ao “minar” o sistema de classes por dentro. Raoul Peck ri-se, porque reconhece nesse “aproveitamento” muito do seu próprio percurso como cineasta africano a trabalhar numa indústria maioritariamente ocidental e branca. “Tive sempre de encontrar um modo de usar as contradições da indústria a meu favor, de encontrar o meu lugar dentro do sistema. É possível encontrar aliados no seu interior, e tenho sorte por estar numa posição que me permite fazê-lo. Mas, num mundo confuso como é o nosso, o meu papel de cineasta é arranjar maneira de concentrar as pessoas no essencial, de lhes devolver as questões fundamentais.”

Interpretados com garra por August Diehl e Stefan Konarske, Marx e Engels articulam dúvidas e questões sobre a dignidade humana e a exploração industrial que, como aponta outra jornalista na mesa, parecem ser ainda mais evidentes nos dias de hoje… “Claro, porque nunca saímos realmente da revolução industrial”, diz Peck. “A revolução industrial tem tudo a ver com o lucro, com quem tem o poder e o dinheiro, e apesar de todo o progresso que existiu continua a ser o dinheiro que guia todas as decisões. Foi também por isso que quis fazer o filme, para permitir às gerações e aos públicos que de Marx e Engels apenas conhecem a reputação perceberem e contextualizarem quem eles eram e porque é que tiveram a importância que tiveram.” E se para isso tiver de contar a história de Karl Marx como um biopic de prestígio, impecavelmente apresentado, correctíssimo e salvo da banalidade pela entrega apaixonada dos seus actores, todos excelentes, e pela chama de uma vontade de prestar serviço cidadão ao mundo, pois que assim seja. Não são os fins que justificam os meios?