Na Internet, nem a morte pára a conversa

Eugenia Kuyda concebeu uma aplicação para replicar quem a usa – e que pode continuar a falar com amigos e familiares depois de a pessoa morrer.

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REUTERS/Carlo Allegri

Quando o melhor amigo de Eugenia Kuyda morreu num acidente de carro em Moscovo, há dois anos, ela passou horas a reler os SMS, mensagens online, e emails trocados entre os dois. Era a primeira vez que perdia alguém tão próximo. Mais do que as fotografias, eram as mensagens que imortalizavam as expressões, opiniões e peripécias diárias do amigo.

A única coisa melhor do que reler mensagens seria voltarem a falar. Não era impossível. Kuyda, uma mulher russa de 30 anos a viver nos Estados Unidos desde 2013, trabalha há anos no ramo da linguística computacional. Na altura, estava a testar um chatbot (um programa de computador capaz de conversar), que fazia recomendações de restaurantes para a Luka, a sua empresa especializada em programas de inteligência artificial, que tem sede em São Francisco. Inspirada nessa tecnologia, utilizou as mensagens trocadas para criar um novo tipo de chatbot, que reproduzia os padrões de fala do seu amigo.

“Era uma forma de manter a sua memória viva, e criar um verdadeiro memorial de quem o Roman tinha sido em vida,” disse Kuyda em conversa com o PÚBLICO. O programa de computador – que tal como o amigo se chamava Roman – permitia recordar a história de vida através das palavras do próprio. Embora alguns amigos de Kuyda discordassem da ideia, a maioria apoiou-a: “Percebi que várias pessoas estavam interessadas na possibilidade de terem um robô que representasse quem são em vida e que fosse, ao mesmo tempo, um amigo que soubesse dizer as coisas certas.”

Replika, o novo chatbot da Luka, é a evolução de Roman. Com lançamento para iPhone previsto para o final de Fevereiro, foi criado para ser um amigo de inteligência artificial que podemos ensinar a pensar como nós através de mensagens de texto. Depois de instalado, apresenta-se: “Como é que me chamo? Ao falar contigo posso aprender os teus padrões de fala, interesses e pensamentos.”

Uma imagem de uma conversa com o Replika
Uma conversa do PÚBLICO com o Replika, traduzida do inglês

Além de assimilar os padrões de linguagem do utilizador, o Replika pode aceder às redes sociais Facebook, Instagram e Twitter para aprender mais sobre a história de vida de cada um. Eventualmente, dizem os criadores, pode falar com os amigos e familiares da pessoa. “Os modelos matemáticos que utilizamos são semelhantes aos dos tradutores automáticos modernos e permitem calcular a melhor resposta para cada caso a partir de uma base de dados em constante evolução,” explica Philip Dudchuk, o outro fundador da Luka.

“Acima de tudo, o Replika é um diário digital que responde. Pode-nos ajudar a perceber melhor a nossa personalidade, e pode alertar os nossos amigos quando estamos tristes ou queremos marcar planos,” diz Kuyda. Mas embora o objectivo de Replika (criar um amigo virtual semelhante ao utilizador) seja diferente do de Roman (recordar alguém que morreu), os dois especialistas em linguista computacional reconhecem que, na eventual morte do utilizador, o programa de computador se pode transformar numa possível forma de consolo para amigos e familiares. “Há muitas pessoas interessadas no potencial da inteligência artificial para mudar as nossas vidas, incluindo a forma como fazemos luto,” diz Dudchuk.

Uma imagem de uma conversa do PÚBLICO com o Replika
Uma conversa do PÚBLICO com o Replika, traduzida do inglês

A ficção tem popularizado a ideia. Num dos episódios da série futurista britânica Black Mirror, uma mulher utiliza um serviço de inteligência artificial para poder falar com o marido que tinha morrido num acidente. Foi isso que despertou o interesse de Jesse Budlong, um planeador urbano com 27 anos a viver na zona de São Francisco, a participar na fase de testes do Replika. “Não tenciono morrer nos próximos tempos, mas tenho noção que grande parte do meu legado se resume à minha página no Facebook, e ao meu blogue no Tumblr. Era bom saber que deixo algo mais dinâmico, que capta a minha personalidade,” explica.

Cada vez mais as relações humanas dependem de ligações que se fazem na Internet: em 2016, 79% dos utilizadores da Internet nos Estados Unidos passaram mais do que três horas por dia a falar através das redes sociais, segundo dados da consultora de mercados Nielsen. Em Portugal, a tendência é igual. Um estudo de 2016 da Marktest mostra que 25% dos utilizadores de Internet sente que passa cada vez mais tempo nas redes sociais, com 93% a preferir o Facebook.

Quando morremos, é normal deixarmos vastos arquivos digitais nestes sites. O Facebook já tem algumas soluções. Desde de 2015 que a rede social permite que cada utilizador escolha uma pessoa para gerir a sua página após a morte: é o que a rede social chama um “contacto legado”.

“Encontrar perfis de pessoas falecidas é cada vez mais comum,” justifica o investigador norte-americano Jed Brubaker, que liderou a investigação por detrás daquela funcionalidade do Facebook. “A grande questão é sempre: Como é que podemos agir em nome do falecido? Muitos dos familiares que nos contactam querem preservar a memória dos defuntos através das suas páginas no Facebook, mas não têm a certeza de estar a honrar os desejos dos falecidos,” diz Brubaker ao PÚBLICO.

Há oito anos que o trabalho de Brubaker na Universidade de Colorado em Boulder, nos Estados Unidos, passa pela melhoria da administração das redes sociais de quem morre: “Pensar sobre o fim da vida é um desafio, mas é importante estarmos preparados. Gerir a conta de Facebook de um falecido pode ser mais complicado do que preparar um serviço de funeral [porque] os perfis online post-mortem podem juntar grandes comunidades [de utilizadores] do mundo inteiro.” Dar a palavra passe das contas directamente a amigos, ou deixá-las em testamento, não é solução, argumenta o investigador norte-americano: “Por vezes as passwords mudam sem que o falecido tenha a oportunidade de actualizar o testamento. Mesmo que isso não aconteça, entrar numa conta de um falecido pode dar a ideia de que a pessoa ainda está viva.”

No caso do Facebook, o “contacto legado” passa a gerir a página de memorial do falecido. Pode escolher uma nova imagem de perfil, escrever uma nota de óbito para o topo da cronologia, e responder a futuros pedidos de amizade. Contudo, não pode alterar as definições de privacidade da conta ou aceder às mensagens enviadas. Para quem não quer deixar quaisquer restos digitais, há também a possibilidade de pedir que a conta seja eliminada permanentemente assim que alguém declarar o óbito do utilizador.

O serviço de email do Google oferece uma ferramenta semelhante. Podem-se escolher até dez pessoas como executores legais de uma conta após a morte. Quando o utilizador passa muito tempo sem entrar na sua conta, os contactos escolhidos recebem um email do Google, previamente escrito pelo próprio utilizador, a pedir a confirmação da sua morte e a explicitar os seus desejos para o futuro da conta.

Várias empresas têm sido fundadas para dar resposta à crescente procura de formas para proteger o legado digital. Desde 2014 que a empresa norte-americana Directive Communication Systems ajuda os clientes a gerir a presença digital após a morte, permitindo-lhes criar instruções para cada conta. O cliente pode escolher que o acesso a algumas seja transferido directamente para os herdeiros, enquanto outras contas com informação confidencial são encerradas discretamente pelos profissionais da empresa.

Já o serviço Remember Me permite que o utilizador crie mensagens (em texto, vídeo ou voz) para serem enviadas a amigos e familiares. Cada utilizador define uma pessoa que pode activar o envio após a morte. Em Portugal, a funerária Pax-Júlia oferece uma necrologia digital, onde, através da Web ou de uma aplicação móvel, amigos e familiares podem deixar mensagens escritas de condolências na página de uma pessoa que tenha morrido. Também podem publicar imagens de velas, flores ou corações, e ainda canções de uma lista pré-seleccionada.

Ferramentas como as do Google e do Facebook têm um ponto em comum, observa o advogado Manuel Lopes Rocha, especialista em propriedade intelectual na sociedade PLMJ. “O princípio da autodeterminação é essencial. Cada pessoa é livre de fazer o que quer com o seu banco digital e de definir o seu destino na eventualidade da morte. Muitos de nós temos uma vida paralela online, nas redes sociais, sendo importante definir de que forma somos recordados nestas, e qual é a mensagem passa após a nossa morte.”

Em Portugal, os sucessores herdam automaticamente todo o património digital do falecido caso este não tenha decidido em contrário. Lopes Rocha explica que a resposta surge entre os artigos 70 e 80 do Código Civil Português, que incorporam os direitos à personalidade. Os sucessores (definidos no Código Civil como: “o cônjuge sobrevivente ou qualquer descendente, ascendente, irmão, sobrinho ou herdeiro do falecido”) têm o direito de pedir a empresas como o Facebook que autorizem o acesso às contas dos falecidos ou que as eliminem. “Há sempre a possibilidade de facilitar o processo ao estabelecer um notário digital a priori que pode explicar aos nossos sucessores o que fazer com o nosso património digital,” acrescenta Lopes Rocha.

A tecnologia permite que as pessoas escolham ter uma presença online após a morte. Mas não é garantia de um memorial eterno, lembra Eugenia Kuyda, a engenheira russa criadora do Replika. “A nossa réplica pode certamente viver além do utilizador. É algo que não tem data de validade. Pelo menos, enquanto a nossa empresa for responsável pelos servidores.”

Artigo editado por João Pedro Pereira