Fátima, cem anos depois

Há cem anos, na Cova da Iria, a Virgem terá aparecido a três pastorinhos de poucas ou nenhumas letras. Verdade ou ilusão? Uma questão insolúvel, a que muitos procuraram responder. Agora prevalece uma abordagem mais serena e desapaixonada, da História à Teologia.

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Escrever sobre Fátima é tão insensato como não fazê-lo. Sobre os insólitos acontecimentos ocorridos em 1917 na Cova da Iria existe já hoje uma bibliografia extensíssima, inabarcável. E tudo indicia que esse imenso caudal de livros, textos e artigos irá ser substancialmente aumentado no corrente ano, por ocasião do centenário das aparições da Virgem Maria a três pastorinhos de poucas ou nenhumas letras, nascidos na aldeia de Aljustrel, concelho de Vila Nova de Ourém, distrito de Santarém.

Entre as obras recentemente saídas, podem citar-se A Mensagem de Fátima na Rússia, de José Milhazes; Fátima no Mundo, de Manuel Arouca; Fátima 1917-2017, de José de Carvalho; Fátima – Milagre, Ilusão ou Fraude?, de Len Port; A Senhora de Maio, de António Marujo e Rui Paulo da Cruz; Quando o Sol Dançou - Fátima e Portugal, de Jeffrey S. Bennett; ou Fátima – Milagre ou Construção?, de Patrícia Carvalho. Se, em algumas delas, é visível uma intenção apologética ou laudatória, não têm surgido por ora livros de cariz contestatário e polémico como os que, em tempos não muito distantes, foram dados à estampa pelo padre Mário de Oliveira, com realce para Fátima Nunca Mais, de 1999, ou Fátima, S.A., de 2015.

Fátima – Milagre ou Construção?, de Patrícia Carvalho, jornalista do PÚBLICO que em 2015 tinha publicado o muito interessante Portugueses nos Campos de Concentração Nazis, é uma obra que corresponde, de forma exemplar, a um novo tipo de abordagem, a qual pretende romper com o “choque de ortodoxias” (para usar uma expressão de Robert P. George) que durante várias décadas marcou as diversas aproximações aos intrigantes sucessos da Cova da Iria, tempo em que prevaleciam as leituras abertamente militantes, divididas sem quartel entre defensores e detractores dos milagres ou das visões de Fátima.

Esta busca de uma perspectiva mais imparcial e, tanto quanto possível, desapaixonada de Fátima não começou agora, tendo-se iniciado a partir do momento em que surgiram os primeiros trabalhos académicos neste domínio, dos quais se deve salientar, pela sua notável capacidade de síntese, a monografia As Aparições de Fátima. Imagens e Representações (1917-1939), de Luís Filipe Torgal, saída originalmente em 2002 e reeditada em 2011 com o título O Sol Brilhou ao Meio-Dia. A Criação de Fátima. Logo no começo do seu livro, Luís Filipe Torgal esclarece os leitores não ser seu intuito “discutir o problema da autenticidade/falsidade das aparições”, afirmando, inclusivamente, que esse debate “será sempre estéril, porque inconclusivo, e propício aos mais diversos exercícios especulativos”.

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Imagem datada de 13 de Outubro de 1917, seis meses após as aparições aos pastorinhos Lúcia, Jacinta e Francisco cortesia santuário de fátima

Documentação Crítica, uma fonte essencial

A conversão das aparições num tema de interesse historiográfico, importa reconhecê-lo, muito fica a dever à Igreja e, em particular, ao Santuário de Fátima, que, após algumas paragens, vicissitudes e incidentes de percurso, vem publicando desde 1992 a Documentação Crítica de Fátima, obra que, dado o seu carácter exaustivo, rigor e isenção, é de consulta fundamental para todos quantos pretendam estudar a fundo, sem preconceitos de qualquer espécie, os acontecimentos que a partir de 13 de Maio de 1917 têm marcado os destinos de uma terra pedregosa e árida situada nos contrafortes da serra de Aire.

Se, em 1988, no seu livro A Religião dos Portugueses (que, lamentavelmente, há muito se encontra esgotado), frei Bento Domingues ainda podia lastimar a ausência, relativamente a Fátima, de uma obra com o alcance e a dimensão que René Laurentin dedicou a Lourdes, essa lacuna encontra-se hoje preenchida, ou em vias de o ser, graças à edição da Documentação Crítica. De 1992 a 2013, foram já publicados 15 volumes, a um ritmo regular e intenso, tendo esse vastíssimo corpus documental constituído uma das principais fontes, se não a principal, do livro de Patrícia Carvalho. A autora, contudo, não se limita a dialogar com esse esmagador manancial de informação, confrontando-o com a imprensa da época e com uma selecção de fontes secundárias que, apesar de não ser exaustiva (afiguram-se particularmente relevantes as omissões das Obras Pastorais do cardeal Cerejeira e do ensaio Religião e Sociedade, de José Barreto), se mostra uma resenha mais do que suficiente para o fim em vista.

Não se crê que tenha sido propósito da obra responder à pergunta que lhe serve de subtítulo (Milagre ou Construção?) e, menos ainda, de alcançar o que, em estilo promocional ou publicitário, é anunciado na respectiva capa: “A Investigação que explica como tudo aconteceu”. Se acaso forem esses os objectivos deste trabalho, o livro manifestamente não os atinge – e ainda bem. Se tal acontecesse, estaríamos perante um “milagre” pelo menos tão milagroso como aquele que em 1917 permitiu aos pastorinhos verem Nossa Senhora no cimo de uma azinheira raquítica, e o livro de Patrícia Carvalho suscitaria as mais sérias dúvidas quanto ao rigor do trabalho feito e quanto à probidade intelectual da autora, dois tópicos em que a sua obra se revela modelar.

Pensa-se, por isso, que Fátima – Milagre ou Construção? não visa, em boa verdade, responder de forma concludente e definitiva à interrogação constante do subtítulo, tanto mais que a autora, muito mais do que trazer elementos novos e sensacionais, ou sequer interpretações que se destaquem pela sua originalidade, apresenta, isso sim, um encadeado de factos que, em sequência cronológica e em estilo de reportagem, se singulariza pela limpidez e clareza narrativas, tornando-o, assim, uma obra especialmente recomendável para o chamado “grande público”.

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Imagem de peregrinos datada de 13 de Outubro de 1917 cortesia santuário de fátima

Situar Fátima na sua “historicidade”

Resta saber, em todo o caso, se obras como esta, que buscam situar Fátima na sua específica “historicidade”, não constituem uma nova forma, mais subtil e por isso mais sedutora, de questionamento de tudo quanto sucedeu — e sucede — na Cova da Iria e suas imediações. Em qualquer caso, trata-se de um avanço relativamente aos escritos incendiários que, durante anos, marcaram algumas leituras e interpretações de Fátima. Na verdade, o discurso antifatimista panfletário ou vulgar, à semelhança do republicanismo anticlerical de que aquele discurso largamente se alimentou, é terreno que se mostrou infértil, muito pouco fecundo, mesmo na perspectiva de combate e denúncia do “maior embuste deste século”, para usarmos a expressão de Tomás da Fonseca, um dos mais ardentes adversários das aparições de Fátima, autor de livros como No Rescaldo de Lourdes (1932) e, sobretudo, Fátima – Cartas ao Cardeal Cerejeira (1955), a que se poderia aditar, em idêntico registo, Fátima Desmascarada (1971), de João Ilharco. 

Como bem observa Patrícia Carvalho na esteira dos trabalhos de Luís Filipe Torgal e de António Teixeira Fernandes, os excessos verbais do antifatimismo panfletário acabaram por ter um efeito contraproducente, contribuindo de forma decisiva para alimentar a causa das aparições de Fátima numa altura em que esta corria o sério risco de entrar em declínio e cair no esquecimento. O atentado à bomba que em Março de 1922 dinamitou a capelinha que o povo erigira no local das aparições foi, talvez, o maior serviço prestado à promoção de Fátima e dos seus prodígios. É sintomático que o atentado bombista, além de ter sido questionado de imediato no Senado pelos deputados do Centro Católico, continue a ser recordado nos nossos dias, como acontece na recente Carta Pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa no Centenário das Aparições de Fátima, emitida em 8 de Dezembro de 2016.

Não admira, pois, que a crítica contemporânea procure apresentar-se de uma forma mais neutral e sofisticada, em contraponto à forma igualmente mais elaborada como a Igreja e os apologistas dos milagres vêm tratando os mistérios surgidos há um século na Cova da Iria. Tal não significa dizer, como é evidente, que a indagação da historicidade de Fátima e da autenticidade dos seus elementos (por exemplo, os testemunhos dos pastorinhos, os milagres e as curas, o “terceiro segredo”) vise necessariamente um propósito antifatimista e, menos ainda, anticlerical. É que, em bom rigor, essa indagação de natureza histórica também tem sido levada a cabo pela própria Igreja, o que é demonstrado não apenas pela edição da Documentação Crítica como por obras de indiscutível qualidade e abertura, entre as quais se pode mencionar a Enciclopédia de Fátima, que, sob coordenação de Carlos Moreira Azevedo e Luciano Cristino, viu a luz em 2007. Mesmo os aspectos mais “folclóricos”, digamos assim, não são escamoteados pela Igreja. No 90.º aniversário das aparições, o Patriarcado de Lisboa promoveu uma exposição de objectos religiosos ligados a Fátima, uns mais antigos, outros contemporâneos, mas quase todos com uma tonalidade kitsch que podemos observar ao folhearmos o delicioso catálogo da mostra: Memórias – Sinais – Afectos. Nos 90 Anos das Aparições de Fátima (2008).    

A este respeito, é importante notar também que a Igreja jamais se eximiu a uma prova de veracidade das narrativas dos videntes, tendo ela própria absorvido e incorporado as coordenadas do cientismo e do positivismo oitocentistas, mesmo quando essas coordenadas eram postas em causa de forma incisiva, como sucedeu no escrito apologético “O Milagre de Fátima”, de António Sardinha (publicado no jornal A Monarquia, logo em Novembro de 1917) ou na alusão de Gonçalves Cerejeira ao “estúpido século XIX”, expressão de Daudet que serviu de base a um vigoroso programa de intervenção dos católicos na esfera pública e, inclusive, política (recorde-se a criação do Centro Católico Português e, sobretudo, o 2.º Congresso desta organização, reunido em 1919). Daí que seja curiosíssimo o recurso feito pela Igreja a métodos científicos de indagação da verdade, que muito devem ao positivismo de Oitocentos, nomeadamente quando se tratou de aferir da autenticidade das curas e dos milagres operados pela presença da Virgem na serra de Aire. À semelhança do Bureau des Constatations Médicales de Lourdes, em Fátima seria criado em 1926 o Serviço de Verificações Médicas, onde, sob a égide do médico Pereira Gens, se procurou atestar a veracidade das curas miraculosas, ainda que, segundo aquele clínico, sem o rigor de observação e diagnóstico do seu congénere francês.

De igual modo, é importante lembrar que, pelo menos no discurso e na retórica pública, a Igreja que nos anos 1920 e 1930 se colocou a favor de Fátima não era, ao contrário do que muitos julgam, uma Igreja ultramontana, retrógrada ou obscurantista. Por muito que isso possa surpreender os mais desinformados, os que promoveram Fátima (bispos, sacerdotes e sobretudo leigos) pretendiam situar-se na vanguarda eclesial, em nome de uma Igreja “moderna”, combativa e militante, que, passada a tormenta das perseguições da “República Velha”, encarava agora o futuro com optimismo e esperança, seja na esfera religiosa, seja no âmbito universitário e intelectual, seja no campo da imprensa, seja, enfim, no plano estritamente político — ou até, melhor dizendo, político-partidário. É isso que leva alguns historiadores, como Rui Ramos, a afirmarem ter sido Fátima uma “obra de intelectuais”, mais precisamente dos jovens agrupados ou formados em torno do coimbrão Centro Académico Democracia Cristã, o “viveiro de elites” da “nova geração” da intelligentzia católica.

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Benção da primeira pedra do monumento ao Sagrado Coração de Jesus. Imagem datada de 13 de Maio de 1928 cortesia santuário de fátima

Uma senhora de branco

Feitas estas advertências, é indiscutível que, no estrito plano da reconstrução histórica dos factos, Fátima apresenta inúmeros problemas de verosimilhança à luz de uma perspectiva racional, ponto que nem sequer tem merecido grande contestação por parte das autoridades eclesiásticas ou dos crentes mais esclarecidos. Contudo, remeter os fenómenos de Fátima para a órbita da “religiosidade popular”, de onde o escrutínio da razão e da crítica histórico-factual estariam ausentes, é uma estratégia que, à semelhança do antifatimismo radical ou panfletário, não se afigura produtiva nem convincente. Do mesmo modo, sustentar que o verdadeiro “milagre” de Fátima não está nas visões dos pastorinhos e nos gestos da “mulher vestida de branco” mas no facto de, contra todas as expectativas, aquele lugar se ter imposto à Igreja e ao mundo não é uma forma sustentável, ou aceitável, de lidar com uma realidade que a todos interpela, crentes e não-crentes.

Compreende-se, pois, que, em alternativa à aceitação acrítica de Fátima como pura expressão da religiosidade popular (ou como produto da atávica devoção mariana dos portugueses), a História se constitua como métrica e critério de autenticidade das singulares ocorrências de 1917. Por muito que se diga que não se procura descortinar a veracidade dos milagres e das aparições, o alinhamento de um conjunto de factos históricos altamente "problemáticos" sempre levará, mesmo que de forma não consciente, a lançar um juízo de suspeição e descrença sobre tudo o que a Fátima diga respeito.

E, nesse específico contexto, o intérprete contemporâneo depara-se, sem dúvida, com inúmeras dúvidas e perplexidades. Fátima desafia a razão histórica. Por exemplo, existem óbvias discrepâncias textuais e de fundo entre os primeiros relatos das aparições feitos pelos pastorinhos em 1917 e a narrativa constante das Memórias da Irmã Lúcia a ponto de alguns, inclusive no campo católico (como o jesuíta belga Edouard Dhanis), aludirem à existência de uma “Fátima I” (a dos relatos de 1917) e de uma “Fátima II” (a revelada, nas quatro “memórias” da principal vidente, feitas de 1935 a 1941), havendo ainda que contar, de permeio, com as visões tidas por Lúcia na Galiza, em 1929 e em 1930, em que se refere pela primeira vez a Rússia e a sua conversão. É também de duvidosa credibilidade, para um intérprete contemporâneo, a visão que os pastorinhos têm da Senhora, com “umas argolas pequenas e de cor amarela” nas orelhas e “um vestido branco, que desce até um pouco abaixo da perna, e cobre-lhe a cabeça um manto, da mesma cor, e do mesmo comprimento do vestido”, vendo-se neste vestido “na parte anterior, dois cordões dourados, que descem do pescoço e se reúnem por uma borla, também dourada, à altura do meio corpo”. O padre e professor Manuel Nunes Formigão, que sob o pomposo pseudónimo “visconde de Montelo” se tornou, porventura, o mais activo e empenhado propagandista da causa fatimista (não por acaso, apelidado pelos seus biógrafos de “apóstolo de Fátima”), encarregar-se-ia, com o tempo, de fazer aumentar o tamanho das saias da Virgem, que nos primeiros relatos dos pastorinhos surgiam como claramente pecaminosas.

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Vista geral do local das aparições numa imagem datada de 1928 cortesia santuário de fátima

Epidemias de aparições

A par deste, muitos outros relatos e supostos “acontecimentos” desafiam a convicção racional e, claramente, não satisfazem os critérios da veracidade histórica. Daqui não decorre, como é evidente, que Fátima seja um “embuste”, para retomar a caracterização sumária de Tomás da Fonseca, ou que Lúcia fosse uma “tarada” ou uma “degenerada”, para usar os abrasivos epítetos que o jornal republicano O Mundo utilizava para descrever a vidente. A precária fiabilidade dos testemunhos dos pastorinhos não significa que tudo quanto ali sucedeu tenha sido uma “construção” urdida pela Igreja ao longo de um século. Significa, isso sim, que, como bem observa José Barreto, insuspeito de clericalismo, talvez seja tempo de “desarmar o velho e com frequência estéril debate sobre a autenticidade (sobrenaturalidade) das aparições reconhecidas pela Igreja e para evidenciar a pertinência do seu estudo sob uma variedade de outros ângulos” (Religião e Sociedade, 2002, pág. 65). Neste seu notável escrito, José Barreto alude ainda, em tom crítico, aos males de uma “extrema bipolarização” entre “as hostes apologética e denunciadora das aparições”.

Esse conflito teve, segundo Barreto, um duplo efeito perverso. Por um lado, favoreceu o silenciamento, entre nós, da chamada “crítica católica a Fátima”, empreendida por sacerdotes e leigos estrangeiros: o belga Edouard Dhanis, já atrás referido, o alemão Bernward Brenninkmeyer, o norte-americano Robert Graham, o alemão Karl Rahner, o suíço Otto Karrer, o espanhol Carlos María Staehlin, curiosamente todos eles membros da Companhia de Jesus (em Portugal, a interrogação católica de Fátima foi feita, além do padre Mário Oliveira, pelos sacerdotes Oliveira Faria e Salvador Cabral, sendo Oliveira Faria autor de dois importantes trabalhos, Perguntas sobre Fátima, de 1975, e Perguntas sobre Fátima. Há 12 anos sem resposta!, de 1987). Por outro lado, o extremar de posições acabaria por levar, na sagaz observação de José Barreto, a uma espúria “arrumação dos cépticos das aparições no campo hostil à Igreja e à religião”. Se é certo que, em repetidas ocasiões, as autoridades eclesiais afirmaram não ser Fátima um artigo de fé, a mínima interrogação ou dúvida levantadas a este propósito eram vistas – e, para muitos, ainda são – como sintoma de desalinhamento e heresia, quando não mesmo de anticlericalismo e descrença em Deus. Como alertou frei Bento Domingues, é essencial que “se evite um ambiente de coacção psicológica ou moral que leve crentes ou descrentes a apreciar a fé cristã a partir dessas manifestações [as aparições] e sobretudo a avaliar a ortodoxia dos católicos segundo o grau de adesão a essas expressões religiosas”.      

Neste contexto, mais do que buscar uma fuga escapista à História e às suas exigências de rigor e verdade, interessa assinalar, por um lado, os limites da interpretação retrospectiva do passado e, por outro lado, desvendar a existência de ângulos alternativos que, sem impugnarem a legitimidade do labor histórico, ensaiam abordagens provindas doutros quadrantes.

Os limites da interpretação retrospectiva ficam patentes em numerosos momentos. Desde logo, há limites que decorrem da escassez ou parcialidade das informações disponíveis e, sobretudo, da subjectividade do intérprete, do seu modo de manuseamento das fontes, tanto a favor como contra a causa de Fátima. É frequente, por exemplo, apresentar-se múltiplas “aparições” ou “visões” (verdadeiras ou falsas, para o caso pouco importa), seja em tempos mais recuados, seja em tempos próximos das ocorridas na Cova da Iria, seja ainda em lugares situados noutros países e latitudes. Na entrada “Fátima” no Dicionário de História de Portugal – Suplemento (1999), que coordenou em conjunto com António Barreto, Maria Filomena Mónica refere a visão da Virgem por um frade dominicano, no cume da serra de Montejunto, ocorrida em 1217; uma aparição de Maria a uma pastorinha muda, na serra de Aire, no século XVIII, que deu azo às romarias da Senhora da Ortiga; o surgimento da Virgem em Carnaxide, em 1822, responsável pelo reavivar da causa absolutista e merecedora da entusiástica aprovação de D. Carlota Joaquina. A estes eventos outros se poderiam juntar, ocorridos já depois de Fátima, podendo citar-se os casos de Baião (1938), Vilar Chão (1946), Asseiceira (1954) ou da Ladeira do Pinheiro (1970-1971). Pode mencionar-se ainda a aparição de Nossa Senhora a uma pastorinha de dez anos, de nome Maria Trigo, em Vilas Boas, concelho de Vila Flor, no ano de 1673, ou outra visão de três pastorinhas a 13 de Maio de 1757, em Folhada, Marco de Canavezes. No mesmo mês das primeiras aparições na Cova da Iria, Maio de 1917, a Virgem foi avistada no Minho, no lugar do Barral, freguesia de Vila Chã; e, no ano anterior, em Junho de 1916, em Pardilhó, concelho de Estarreja. Em 1913, uma rapariga do lugar de Vila Ruiva, concelho da Guarda, asseverou que Nossa Senhora lhe aparecera dentro de uma fraga.

Na sequência das aparições de Fátima, há um surto de visões marianas em Portugal, registando-se no ano de 1918 um caso em Ponte de Sor e outro em Vale do Arco, nos arredores de Tarouca, e outro ainda em São Miguel, nos Açores. Em 1924, Santa Maria Justa apareceu em sonhos a um pastor de 56 anos, em Escariz, concelho de Arouca. Mais tarde, em 1939, novas visões de pastorinhos, desta feita no monte da Lovagueira, em Vila Nova à Coelheira, podendo mencionar-se também o caso de uma leiteira visionária que vislumbrou a Virgem na Cova da Azenha, concelho da Feira, em 1934.

O catálogo é muito vasto e encontra-se parcialmente feito no livro Milagres e Crendices Populares. Visões – Aparições – Revelações (1985), da autoria de Manuel Dias. Que existem epidemias de aparições, para usar os termos de José Barreto, é um facto há muito conhecido, porventura em resultado das “leis da imitação” de que falou o sociólogo Gabriel Tarde. No entanto, se uma listagem das “aparições” pode descredibilizar Fátima, levando a supor que as aparições da Cova da Iria pouco diferem de centenas de fenómenos semelhantes, também pode sustentar-se, nos antípodas, que a marca do reconhecimento oficial a singulariza e distingue em face de manifestações que só na aparência lhe são próximas.

É sintomático que, no Relatório da Comissão Canónica, o cónego Manuel Nunes Formigão, num capítulo intitulado “As contrafacções”, refira diversos casos de falsas aparições, milagres e visões proféticas, uma “rede de fictícias visões e aparições celestiais e pseudo-sobrenaturais” – justamente para assinalar o carácter ímpar e singularíssimo das ocorrências de Fátima, de que Formigão seria um dos principais promotores, sonhando transformá-la numa “segunda Lourdes” ou mesmo numa “Lourdes portuguesa”. A multiplicidade de “aparições” — aliás, verificada em diversos países, cada vez mais fora da Europa — não pode, pois, ser usada como argumento favorável ou desfavorável à causa de Fátima, ainda que seja frequentemente invocado para, de forma velada, impugnar a veracidade das aparições da Cova da Iria. O que pode dizer-se, sem receio de exagero, é que enquanto em dezenas de episódios, e inclusive por intervenção das autoridades eclesiásticas, os falsos videntes são rapidamente desmascarados (por exemplo, nas aparições de Vila Ruiva, ou as de Vilar Chão), no caso dos pastorinhos de Fátima nunca houve uma prova concludente e inatacável de que estivessem a mentir nos testemunhos que prestaram. 

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Imagem datada de 13 Maio de 1928 cortesia santuário de fátima

Fátima, “altar do mundo”

Há outros factos incontroversos que, em si mesmos, e ao contrário do que possa parecer, em nada contribuem para atestar ou infirmar a autenticidade das aparições. A inequívoca ligação destas últimas à Grande Guerra — aliás, expressamente afirmada pelos pastorinhos nos seus diálogos com a Virgem — pode fazer crer que foi o pavor do conflito na Flandres, onde já se encontrava um irmão de Jacinta e de Francisco e que ameaçava levar também o irmão de Lúcia, que levou aquelas crianças a “ver” Nossa Senhora no cimo de uma azinheira, entre relâmpagos e trovões. Havendo uma óbvia relação entre Fátima e a Grande Guerra, daí não decorre necessariamente que as visões de Maria sejam produto imaginado por três crianças da região de Leiria (Lúcia, com dez anos; Jacinta, de sete; e Francisco, com nove anos).

O que pode dizer-se, isso sim, é que a causa de Fátima terá beneficiado — e muito — do chamado “renascimento católico” dos anos 1920 e, mais amplamente, da busca do sagrado e da espiritualidade emergente da Primeira Guerra, fenómeno que em França ficou conhecido por “regresso aos altares”, mas que teve outras manifestações, como a disseminação do espiritismo e do contacto com os mortos caídos nas trincheiras ou o recrudescer do misticismo e de múltiplas formas de devoção (entre nós, o culto do Condestável Nun’Álvares, por exemplo). A este propósito, e além da análise do impacto da “crise das subsistências” então existente, seria importante estudar, o que ainda não foi feito, até que ponto o surto de gripe pneumónica em 1918-19, a maior epidemia isolada da História da Humanidade, que ceifou entre 21 e 50 milhões de vidas em todo o mundo (entre as quais, as dos videntes Francisco e Jacinta Marto), contribuiu para um aumento da presença de fiéis e peregrinos em Fátima.

Atente-se também nas reservas inicialmente manifestadas, seja pela hierarquia da Igreja, seja por leigos mais esclarecidos, aos relatos feitos pelos pastorinhos. Todas as narrativas apologéticas aludem a esse cepticismo original, que indubitavelmente faz parte da construção propagandística de Fátima como “altar do mundo”. No entanto, alguns vão mais além, considerando que as reservas que Fátima suscitou no campo católico não passaram de um estratagema para adensar a credibilidade dos testemunhos prestados pelos pastorinhos. Importa notar, no entanto, que essas reservas surgiram de muitos e variados lugares, das mais diversas proveniências, desde nomes conhecidos a cidadãos anónimos. Assim, a menos que se acredite na existência de um plano concertado, de uma conspiração gigantesca envolvendo muitas dezenas de pessoas, incluindo leigos, não é possível figurar as reservas originais a Fátima como peça de uma estratégia preconcebida de credibilização e propaganda; que esse cepticismo originário seria mais tarde alvo de aproveitamento, disso não há dúvida – mas também não pode duvidar-se de que, por uma razão ou outra (inclusive, razões políticas, no quadro hostil da Primeira República), a Igreja teve uma atitude inicial de moderação e prudência no tratamento das “visões” dos pastorinhos. Simplesmente, daí não deve, uma vez mais, extrair-se qualquer ilação, positiva ou negativa, quanto à veracidade das aparições da Virgem.

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Os três pastorinhos Lúcia, Francisco e Jacinta cortesia santuário de fátima

Oito anos de espera

Assim, e pese a abundante literatura que Fátima tem motivado ao longo de várias décadas, ainda há muito por esclarecer, inclusive no plano historiográfico. Uma das primeiras interrogações é a seguinte: em que circunstâncias se perderam os apontamentos originais dos interrogatórios feitos aos pastorinhos pelo pároco de Fátima, padre Manuel Marques Ferreira?

Outra pergunta se impõe: porque é que esse relatório só foi enviado para Lisboa em 1919, dois anos depois de ter sido pedido pelo vigário-geral do Patriarcado e há muito volvidas as aparições que faziam afluir milhares de pessoas à Cova da Iria e eram notícia nos principais periódicos da capital? Certas dúvidas, por certo, serão difíceis ou mesmo impossíveis de esclarecer com absoluta certeza. É singular, por exemplo, que na segunda das aparições, ocorrida a 13 de Junho, tenham já estado presentes algumas dezenas de pessoas. Diz-se que umas cinquenta ou sessenta. Lúcia tinha imposto silêncio aos seus primos, ordem que foi desrespeitada por Jacinta, que contou à sua mãe a “visão” que tivera no mês de Maio. Cinquenta pessoas não será muita gente, se atendermos a que Fátima teria por essa altura cerca de 2500 habitantes. Em todo o caso, trata-se de um número significativo, que pode ter ficado a dever-se a uma inconfidência da vidente e, sobretudo, da sua mãe. Desconhece-se, contudo, por que razão estiveram presentes 50 ou 60 pessoas na Cova da Iria em Junho de 1917. Entre elas, Maria dos Santos, mais tarde conhecida por “Maria da Capelinha”, por arrecadar as contribuições feitas para a edificação de um templo naquele lugar e por cuidar dele quando foi construído (e reconstruído, após o ataque bombista de 1922).

Mais problemática, muito mais problemática, é a demora na elaboração do relatório de apuramento dos factos, a cargo de uma comissão nomeada pelo bispo de Leiria, D. José Alves Correia da Silva, em Maio de 1922 e cujo trabalho só foi entregue em Abril de 1930, ou seja, ao fim de oito anos de labor – ou de atraso. Diz-se que tal demora ficou a dever-se a falta de tempo do Dr. Manuel Nunes Formigão, ocupado que estava com os seus múltiplos afazeres de propagandista de Fátima, escrevendo numerosos artigos para o jornal A Guarda, publicando, a um ritmo vertiginoso, livros com títulos como As Grandes Maravilhas de Fátima (1927), Fátima, o Paraíso na Terra (1928) ou A Pérola de Portugal (1929), entre tantos outros. Apesar dos insistentes e diversos apelos do bispo de Leiria, o Dr. Formigão levou oito anos a elaborar o inquérito, elemento essencial para a oficialização de Fátima.

A demora ainda é mais estranha se tivermos presente que, em 1921, fora o Dr. Formigão que dissera ao bispo ser “mais urgente” o processo canónico diocesano do que a própria construção de uma basílica. A entrega do relatório será feita numa altura em que o bispo já havia ordenado a aquisição dos terrenos circundantes ao local das aparições, muitos deles propriedade da família de Lúcia (1922), em que se iniciara a publicação do mensário A Voz de Fátima (1922), em que se instituíra a Associação dos Servos de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, presidida pelo prelado de Leiria (1924), em que a casa do capelão já estava construída (1925), em que se publicara o Manual do Peregrino de Fátima (1926) e se começara a regulamentar a prática do culto no local, de modo a que este não se transformasse num arraial ou numa feira (proibindo-se, por exemplo, o lançamento de foguetes e a venda de vinho), em que se nomeara o primeiro capelão permanente do santuário (1927), em que terminara a edificação da Capela das Confissões (1928) e do hospital-sanatório (1929), em que, a título privado, vários bispos portugueses e o núncio apostólico, D. Sebastião Nicotra, visitaram o local (1926), ou em que o L’Osservatore Romano noticiara as peregrinações (1928). Mais decisivamente ainda, como sinal da avalização do poder civil e do seu compromisso com Fátima, o chefe do governo da Ditadura Militar, Vicente de Freitas, visitara Fátima em 1928 e, em Maio de 1929, o Presidente Óscar Carmona, acompanhado de vários ministros, entre os quais Salazar, estivera presente na cerimónia da bênção da nova central eléctrica do Santuário. Tudo estava pronto, em suma. Só faltava o relatório da comissão de inquérito… Como explicar esse atraso de Manuel Nunes Formigão — e a aparente tolerância do bispo perante oito anos de espera —, sendo ele um dos mais ardorosos defensores da causa fatimista?

Entregue o relatório, o prelado de Leiria emite, pouco depois, em 13 de Outubro de 1930, a Carta Pastoral sobre o Culto de Nossa Senhora de Fátima. É ela que fixa a doutrina da Igreja nesta matéria, declarando como “dignas de crédito” as visões das crianças na Cova da Iria, tidas entre 13 de Maio e 13 de Outubro de 1917, e permitindo oficialmente o culto de Nossa Senhora de Fátima. Decreta-se, pois, que as visões dos pastorinhos são “dignas de crédito”, nada mais do que isso. E, nessa linha, a Igreja tem dito reiteradamente que Fátima não é um artigo de fé para os católicos. Assim, tanto é possível a um católico acreditar como não acreditar nos acontecimentos da Cova da Iria, crer na sua ocorrência mas desconfiar da autenticidade dos relatos das aparições e dos diálogos mantidos com a Virgem, renegar a existência de milagres e de curas, etc., etc.

Dirão os críticos que a Igreja não foi, nem tem sido, suficientemente explícita e insistente na afirmação de que Fátima não é um artigo de fé; e até, pelo contrário, que tem permitido essa confusão, seja através da acção decisiva de Pio XII (o “Papa de Fátima”), seja pela presença de sucessivos papas no Santuário — de Paulo VI a Bento XVI —, seja em inúmeros documentos oficiais que não clarificam totalmente a posição oficial da Igreja, nos termos da qual as visões dos pastorinhos são “dignas de crédito” mas não constituem matéria de fé.  

Aceite-se ou não esta crítica que alguns fazem à atitude da Igreja, o que não pode é impugnar-se, de forma mais ou menos velada e implícita, o que ocorreu na Cova da Iria com base em elementos que lhe são extrínsecos. A estética do lugar ou a insuportável omnipresença de hotéis e estabelecimentos comerciais nas imediações do santuário são passíveis de exame e denúncia, como a empreendida, por exemplo, por Maria Filomena Mónica num texto publicado no seu livro Turista à Força (1996) ou numa reportagem recente, saída em 28/1/2017, da revista Visão, e expressivamente intitulada “Fátima à Venda”. Todavia, do mesmo modo que o “estremecimento da alma” que sentimos ao ver a Procissão do Adeus não deve ser determinante para acreditarmos nas aparições, o facto de Fátima se ter tornado uma “monótona feira de mau gosto” não se afigura decisivo quer para favorecer a crença quer para confirmar a descrença (ambas as expressões entre aspas são de frei Bento Domingues).

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O bispo de Leiria, D. José Alves Correia da Silva, com a Irmã Lúcia cortesia santuário de fátima

O terceiro segredo

Fátima é passível das mais diversas releituras e apropriações, consistindo aí, certamente, um dos seus mais inescrutáveis mistérios. O próprio nome da localidade — Fátima — tanto permitiu ao famoso bispo americano Fulton Sheen afirmar, em 1951, que o propósito último da Virgem Maria seria a conversão do islão, como possibilitou a intrigante proposta de Moisés Espírito Santo, que liga as aparições aos mouros fatímidas e a reminiscências teofânicas xiitas dos séculos IX-XII. De forma directa ou indirecta, as aparições marcaram presença em todos os grandes conflitos do século XX, da Guerra de Espanha ao gélido confronto entre os Estados Unidos e a União Soviética, passando pela Segunda Guerra Mundial e, mais tarde, pela guerra colonial portuguesa. No rescaldo dos atentados do 11 de Setembro, o padre Ladis Cizik, dirigente do Exército Azul de Nossa Senhora de Fátima, organização católica conservadora norte-americana, encarou os ataques como obra de “Satanás e do seu exército vermelho de seguidores”, permanecendo fiel ao anticomunismo da Guerra Fria.

Num registo típico da década de 1970, muitos viram em Fátima vestígios de uma presença do “sobrenatural”, sendo de destacar as obras de Fina d’Armada e Seomara da Veiga Ferreira sobre Fátima como produto de uma intervenção de extraterrestres transportados por ovnis (um católico integrista, Marc Dem, que considerava ser a mensagem de Fátima um aviso divino contra o Concílio Vaticano II, sustentava que os judeus tinham origem extraterrestre…). Noutra perspectiva, Fátima alimentou muita da crítica mais reaccionária e conservadora ao Vaticano II, como a protagonizada por monsenhor Lefebvre, mas também, em simultâneo, serviu de palco ao Congresso da Juventude Operária Católica dos anos 50, “momento decisivo para a dissensão católica com o regime” de Salazar, como nota Bento Domingues, que salienta ainda que foi igualmente em Fátima que o bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, pronunciou a célebre conferência “A Miséria Imerecida do Povo Português” (mais tarde, em 1968 e 1970, D. António demarcar-se-ia, de certo modo, de Fátima, sobretudo quanto aos seus aspectos, por assim dizer, “comerciais” e à sua conexão com o Estado Novo, sendo curioso observar a este respeito que, na chefia do governo, Salazar nunca marcou presença nas grandes cerimónias religiosas de Fátima nem foi especialmente generoso no apoio financeiro concedido pelo Estado ao Santuário da Cova da Iria).

O famoso “terceiro segredo” de Lúcia seria revelado em Maio de 2000. Não versa directamente sobre Portugal, ao contrário do que alguns chegaram a aventar (cf. José Geraldes Freire, O Segredo de Fátima. A Terceira Parte é sobre Portugal?, 1977). Sendo narrado numa linguagem simbólica ou alegórica, como logo advertiram os cardeais Ângelo Sodano e Joseph Ratzinger (v.g., o anjo com uma espada de fogo, o brilho da Mãe de Deus, a montanha íngreme encimada por uma cruz), o conteúdo do “segredo” é por demais conhecido. Muitos ignoram, no entanto, que a sua revelação se deveu, ao que parece, a uma tentativa de João Paulo II para, desacreditando hipóteses catastrofistas, debelar os círculos conservadores mais contestatários do catolicismo pós-conciliar, segundo informa José Barreto. É também pouco conhecida a intervenção do cardeal Ratzinger aquando da revelação do “segredo” (cf. António Marujo, “Quando o cardeal Ratzinger desmontou o 'segredo' de Fátima”, PÚBLICO, de 12/05/2010). Actuando como prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Joseph Ratzinger produziu um “Comentário Teológico” que constitui, na perspectiva eclesial, um dos textos mais densos e admiráveis de enquadramento e contextualização das aparições da Cova da Iria (in A Mensagem de Fátima, 2000, pp.39ss). De novo, uma surpresa. O único teólogo do século XX que Ratzinger cita naquele texto é, nem mais, nem menos, o jesuíta belga Edouard Dhanis, um dos principais, talvez o principal, crítico católico de Fátima, pormenor que não deixa ser interessante realçar para os que encaram o Papa Bento XVI como uma das personalidades mais sinistras e retrógradas da Igreja contemporânea. Neste seu breve comentário teológico, Ratzinger começa por distinguir, na esteira da doutrina da Igreja, “revelação pública”, presente nas Escrituras e concluída com a passagem terrena de Cristo, e “revelação privada”, sendo esta aplicável a “todas as visões e revelações verificadas depois da conclusão do Novo Testamento”. É neste último âmbito que Fátima se inscreve, havendo ainda que distinguir a visão ou percepção externa (v.g., de uma casa ou de uma árvore), a visão puramente intelectual, desprovida de imagens, e uma categoria intermédia, “a percepção interior que, para o vidente, tem uma força de presença tal que equivale à manifestação externa sensível”. Ou seja, o que importa é sempre, e em todas as circunstâncias, a perspectiva do vidente. Bento Domingues intuíra-o já com clareza quando escreve: “O imaginário transmitido nas narrativas das Aparições de Fátima é o imaginário corrente das crianças e adultos daquela época.”

Colocada a questão na perspectiva interior do vidente, é natural e absolutamente compreensível a linguagem utilizada nos diálogos entre a Virgem e os pastorinhos, bem como a visão que estes têm de uma senhora ricamente vestida, “uma espécie de boneca muito bonita”, com argolas de ouro nas orelhas. A imagem pode até ter sido construída a partir das leituras que a mãe de Lúcia lhe fazia da obra devocional Missão Abreviada (1859), do padre Manuel Couto, onde se fala das aparições de La Salette, e de quando dois pastorinhos franceses viram “Nossa Senhora no meio da luz mais brilhante”. Seria também dessa forma que Lúcia e os seus primos viram a Virgem no cimo de uma azinheira, na Cova da Iria. De acordo com o comentário do futuro Papa Bento XVI, a narrativa do “segredo” “lembra imagens que Lúcia pode ter visto em antigos livros de piedade e cujo conteúdo deriva de antigas intuições de fé”. O facto de, porventura, a vidente ter sido marcada pelas leituras de Missão Abreviada ou de outras obras pias é, pois, assumido pela Igreja sem quaisquer constrangimentos. Aquelas imagens não constituem, porém, uma fantasia da vidente, mas de visões que, como salienta Ratzinger, estão sujeitas às “possibilidades e limitações do sujeito que as apreende”.

Para uma conceptualização teológica ou eclesial, é, pois, destituída de fundamento a crítica segundo a qual Nossa Senhora, ao dirigir-se aos videntes, tinha uma “linguagem boçal” ou um “discurso simplório”, como sustenta Aurélio Lopes em Videntes e Confidentes. Um estudo sobre as aparições de Fátima (2009). A imagem e a pobreza do discurso da Virgem são o corolário da caracterização das visões como fruto da percepção interior do vidente, com as suas limitações subjectivas, o que não significa, todavia, que aquelas visões sejam imaginárias ou inautênticas.

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Cardeal Cerejeira em Fátima, imagem datada de 13 de Maio de 1942 cortesia santuário de fátima

“Tudo o que é recebido, é-o com os meios de quem recebe”

Obviamente, fora da órbita confessional esta interpretação não é atendível, de modo algum. Mas deve reconhecer-se que, ao incidir o seu olhar sobre a estrutura antropológica das aparições, Joseph Ratzinger abre ou aprofunda uma nova perspectiva, que tem pontos de confluência com as abordagens laicas das aparições, as quais insistem, vezes sem conta, na necessidade de atender ao prisma do vidente; ou, como refere José Barreto, “das alegadas aparições só se conhece o que os videntes relatam”, acrescentando um conhecido adágio de Tomás de Aquino: “Tudo o que é recebido, é-o com os meios de quem recebe.” Para lá do relato dos videntes, tudo o mais é espúrio e artificial, podendo dizer-se que o “problema de Fátima” reside justamente na preservação da integridade e da autenticidade desses relatos, ponto que tem suscitado fundadas dúvidas se cotejarmos os sucessivos, e por vezes discrepantes, testemunhos da Irmã Lúcia.

Para os que, ultrapassando a perspectiva dos videntes, procuram indagar da “construção de Fátima”, há vários elementos que hoje parecem ser incontroversos e que, de certa forma, tornam supérfluo saber se “foi Fátima que se impôs à Igreja”", como afirmou o cardeal Cerejeira, ou se “foi a Igreja que impôs Fátima”, como sustenta o historiador Luís Filipe Torgal.

Fátima segue o modelo e o padrão das aparições de Lourdes, nos termos do qual existem visões repetidas do mesmo vidente em datas anunciadas de antemão, proporcionando a comparência de peregrinos ou de simples curiosos. No entanto, a Cova da Iria traz um dado novo, como tem sido observado por estudiosos destes fenómenos: pela primeira vez, o céu desempenha um papel essencial, o que não sucedia nas aparições oitocentistas. Mais do que isso, nas aparições de Fátima, todas elas diurnas, a introdução dos prodígios solares (v.g., o “bailado do sol”) é um símbolo inédito, favorecendo a dramaturgia cósmica e a conexão Sol-Virgem que, mais tarde, em 1950, fará parte das visões que Pio XII teve nos jardins do Vaticano, como salienta José Barreto, na esteira dos trabalhos do antropólogo italiano Paolo Apolito. Para Apolito, as aparições são, essencialmente, um “evento de palavras”, noção que, em certa medida, se aproxima da apresentada por Joseph Ratzinger. Depois, naturalmente, existiu todo um esforço de fixação do verbo e, sobretudo, da sua divulgação, para o que muito contribuiu não apenas a imprensa republicana anticlerical como a chamada “boa imprensa” católica (iniciado com uma tiragem de 3.000 exemplares, o Voz de Fátima atingiu, em 1936, o espantoso número de 366.446 unidades, gratuitamente distribuídas no santuário).

A presença de sucessivos papas na Cova da Iria, a hábil gestão do “terceiro segredo” e dos seus ressaibos apocalípticos, o apelo maternal da figura da Virgem que intercede junto de um Deus ofendido e castigador, o subsequente isolamento e clausura da vidente, a perfeita localização do lugar, situado no centro do país e de fácil acesso, a necessidade de reencantamento de fiéis macerados por guerras e tormentos íntimos, a transmissão radiofónica e televisiva das procissões esplendorosas, as adaptações cinematográficas, o velado apoio das autoridades civis, seja em tempos de ditadura, seja de democracia, deram o impulso final para que Fátima se projectasse em Portugal e no mundo, atraindo milhões de peregrinos ao longo dos anos. Entre eles, nomes ilustres: Escribá de Balaguer, Juscelino Kubitschek, os príncipes Rainier e Grace do Mónaco, Madre Teresa de Calcutá, D. Hélder Câmara, o marechal Mobutu, Corazón Aquino, Suha Arafat, Lech Walesa, Hilary Clinton, Václav Havel, o Dalai Lama, Xanana Gusmão, entre dezenas e dezenas de cardeais e altos dignitários da Igreja Católica e de outras confissões religiosas. Mas, acima de tudo, o Santuário recebe anualmente milhões de cidadãos anónimos, que aí vão pelos mais diversos motivos. Por razões íntimas, pessoalíssimas, que a cada qual dizem respeito, e como tal, devem merecer o respeito de todos. Mesmo dos que não crêem em Deus ou não são católicos; ou dos que, sendo-o, não acreditam nas aparições de Fátima e na sua mensagem. Mas não será o respeito pelos outros, crentes e não-crentes, a principal mensagem de Fátima e o seu maior desígnio?