Paul Auster: “O futuro da América está em risco”
Paul Auster regressa ao romance com 4 3 2 1. O livro parte de uma pergunta: e se? E se uma vida não se esgotasse numa possibilidade. No caso, a vida de um homem que tem a idade do escritor.
A conversa vai longa quando Paul Auster se levanta da poltrona para regressar logo depois com um livro na mão. “Já leu?”, pergunta. É Bleak House, romance de 1853 em que Charles Dickens faz uma crítica ao poder britânico do século XIX. Com uma voz cava, começa a ler. “London...” e seguem-se dois ou três minutos, apenas o parágrafo inicial, como exemplar do que de “melhor” se faz com a língua inglesa. Com um cigarro electrónico na mão direita, vai marcando o ritmo. No fim, recosta-se. Faz muitas vezes esse exercício para captar a música e o sentido de uma frase, ou de um livro inteiro: ler em voz alta. “Sou eu quem grava as edições em áudio dos meus livros”, justifica. Em Agosto esteve em estúdio e o resultado final foram 46,5 horas para passar as 900 páginas de 4 3 2 1 (ASA), romance sobre “o desenvolvimento humano” construído a partir de quatro hipóteses para a vida de Archibald Isaac Ferguson, personagem que partilha o tempo e a geografia de Paul Auster entre 1947 e 1971.
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A conversa vai longa quando Paul Auster se levanta da poltrona para regressar logo depois com um livro na mão. “Já leu?”, pergunta. É Bleak House, romance de 1853 em que Charles Dickens faz uma crítica ao poder britânico do século XIX. Com uma voz cava, começa a ler. “London...” e seguem-se dois ou três minutos, apenas o parágrafo inicial, como exemplar do que de “melhor” se faz com a língua inglesa. Com um cigarro electrónico na mão direita, vai marcando o ritmo. No fim, recosta-se. Faz muitas vezes esse exercício para captar a música e o sentido de uma frase, ou de um livro inteiro: ler em voz alta. “Sou eu quem grava as edições em áudio dos meus livros”, justifica. Em Agosto esteve em estúdio e o resultado final foram 46,5 horas para passar as 900 páginas de 4 3 2 1 (ASA), romance sobre “o desenvolvimento humano” construído a partir de quatro hipóteses para a vida de Archibald Isaac Ferguson, personagem que partilha o tempo e a geografia de Paul Auster entre 1947 e 1971.
É sábado, 4 de Fevereiro. No dia anterior, Auster fez 70 anos. “Estranho, isto”, confessa, enquanto abre a porta da casa onde vive, em Brooklyn, Nova Iorque. O “isto” é a idade, um número a que ainda não se habituou e que de vez em quando volta à conversa pontuada por gargalhadas roucas, referências de livros, poemas, filmes, autores, a expectativa meio velada acerca das reacções ao novo romance publicado quatro dias antes e uma zanga. Paul Auster está muito zangado com a América actual. A tudo isto, faltou o habitual cigarro.
Já não fuma?
Não, deixei. Isto é apenas vapor, e gosto [gargalhada]
Tem dito que nunca esperou viver tanto. Fez ontem 70 anos. Que pensamentos lhe vão pela cabeça?
Tenho pensamentos contraditórios. Parte de mim acha que não aconteceu nada, é só mais outro dia na minha vida. E outra parte pensa: “70 anos!” Isso era ser extremamente velho. Mas agora as pessoas de 70 anos não parecem ser tão velhas como quando eu era criança. Ocorre-me uma frase de um amigo, o poeta George Oppen, que morreu há muito: “Que coisa estranha aconteceu a este rapazinho”. Sinto-me dessa maneira. Mas basicamente estou feliz por estar vivo, por estar aqui, e a minha saúde parece estar bem. A menos que um autocarro passe por cima de mim, acho que ainda posso ter alguns anos à minha frente.
A idade ajuda a escrever?
Acho que se vai sempre aprendendo. Escreve-se e é sempre difícil. Há uma única mudança na minha atitude enquanto escritor e que foi acontecendo. Antes, quando ficava bloqueado, entrava em pânico, achava que não iria conseguir e o livro estava morto. Mas acabava por conseguir, podia levar dias, semanas ou meses. Agora, quando bloqueio, não entro em pânico. Digo a mim mesmo que, se o livro precisa de ser escrito, hei-de encontrar uma maneira. Essa é a diferença essencial entre ser mais velho e mais novo.
Referiu há pouco um imponderável, a hipótese de um autocarro. Este romance parece ser sobre isso, o que acontece inesperadamente numa vida e irá determinar o seu decurso. Em O Caderno Vermelho (ASA, 2002) contou um desses momentos na sua vida, quando viu um amigo morrer à sua frente, aos 14 anos. Recupera agora esse episódio.
Ele foi crucial. Essa experiência é o coração emocional do livro. Não a recrio aqui de per si, mas em duas circunstâncias acontece qualquer coisa de similar ao que me sucedeu. Eu estava num campo de férias e um rapaz foi atingido por um raio e morreu electrocutado. Foi o acontecimento mais forte da minha vida. E aos 14 anos somos tão vulneráveis, ainda não sabemos quem somos, e ter esta lição de que qualquer coisa pode acontecer é um choque. Até então eu achava que o mundo era mais sólido, que as coisas se movimentavam de forma mais racional, mas entendi ali que o mundo é irracional e o inesperado acontece continuamente. Essa história assombrou-me desde então e acho que pô-la finalmente no centro do romance foi emocionalmente importante para mim. Mas 99,8 por cento do livro é inteiramente inventado, não é a minha história, apesar de eu e os quatro protagonistas partilharmos a mesma cronologia e a mesma geografia.
Então, nenhuma das quatro possibilidades de vida para Archibald Ferguson, o protagonista de 4 3 2 1, é Paul Auster?
Não.
Estamos perante um livro de formação, o que se chama um bildungroman...
É um romance sobre crescimento. Eu digo que é um romance sobre o desenvolvimento humano.
E é um romance muito diferente dos anteriores. Pela estrutura, pela dimensão. O método de escrita também foi diferente?
Não. Escrevi o livro em três anos e meio. E escrevi da mesma forma. Sento-me e trabalho de uma frase para a outra. Tudo escrito primeiro à mão num bloco, depois trabalho parágrafo a parágrafo; escrevo e reescrevo e corrijo, mudo e escrevo outra vez no bloco e, quando parece terminado, escrevo-o à máquina e limpo; começo a fazer mais alterações e, quando não sei mais o que posso fazer, começo o parágrafo seguinte. E sempre pela primeira frase. E depois escrevo a segunda e a décima e a vigésima, até chegar à última. Todos os meus livros foram escritos desta maneira. Sei que muitos escritores saltam, andam às voltas, mas não sei como se faz isso. Quando estou a escrever um livro, tenho um impulso acerca do que a história será, e continuo a descobrir enquanto avanço. É assim que funciono, e há muito improviso. Não trabalho com um plano elaborado, não tenho gráficos, mapas. Está tudo dentro de mim e não tenho de pensar muito nisso. Levanto-me da minha cadeira com frequência; o acto de me movimentar ajuda-me a trazer novas palavras à mente. E continuo a usar a velha máquina de escrever. Como este livro era muito grande, pedi a uma pessoa que me passasse, capítulo a capítulo, ao computador. Estes capítulos funcionam como unidades, contos longos ou uma novelas curtas. Depois de cada capítulo faço uma pausa e leio o livro desde a primeira página até ao sítio onde fiquei, volto a fazer correcções. É esse o meu método.
Quando começou o livro sabia que iria ser tão grande?
Teria de ser. Por causa da estrutura, das quatro vias. O primeiro pensamento foi ir muito mais longe nas vidas deles, entrar na meia-idade, mas, quando estava a escrever, apercebi-me de que essencialmente aquilo de que o livro fala é de desenvolvimento, o desenvolvimento humano, e pensei que ir da infância, adolescência e depois a entrada na idade adulta era suficiente. Se tivesse ido até mais longe, a natureza do livro teria mudado. O último momento de que ouvimos falar ocorre em 1971, os Ferguson teriam 24 anos.
Tem um protagonista em quatro possibilidades de vida, quatro caminhos paralelos. Não precisou de um esquema ou mapa para se guiar?
Não. Estão na minha cabeça. Não sei dizer mais do que isto. Escrevo há mais de 50 anos, isto já está no meu corpo, não tenho problemas em distinguir os Ferguson uns dos outros. Eles são pessoas distintas para mim. Geneticamente, são o mesmo, têm os mesmos pais, mas cada um desenvolve-se de maneira diferente e consigo reconhecê-los instintivamente. Os seus temperamentos são diferentes, ainda que partilhem muitas coisas.
Como define cada um deles?
O número 1 é um cismado, uma pessoa melancólica. O número 2 é um batalhador. Não vive muito, mas luta, tem muita energia, começa o seu próprio jornal aos 11 anos, é diligente e de pensamento ágil. É vítima de perseguição na escola e enfrenta isso. O número 3 é o mais confuso, o que tem mais problemas na vida, o que comete mais erros, mas acho que perto do fim do seu ciclo, cresce. Tem 20 anos quando o deixamos e conseguimos sentir um adulto a desenvolver-se. O número 4 é revoltado e fechado, em conflito feroz com o pai. É um pouco rígido, não presunçoso, mas difícil. Acho que à medida que o tempo passa ele amacia-se, mas é muito duro consigo mesmo, muito disciplinado.
Continuo a fazer associações. O Ferguson n.º 4 mostra a sua primeira história à professora de Inglês aos 14 anos, ela não gosta, é cruel com ele. Isso poderia tê-lo feito desistir. No seu caso, o seu primeiro romance foi rejeitado por bastantes editores. Mesmo assim, continuou...
Ele fica muito transtornado, mas tem a curiosidade de o enviar para a tia e o tio, muito ligados aos livros, e eles gostam. Percebe então que não há uma opinião sobre trabalhos em arte. Podemos ser beijados, mas também podemos levar um soco e, enquanto escritor que publica muitos livros, tenho apanhado muitos socos. E dói.
Continua a doer?
Claro! É horrível. E como o Ferguson n.º 4 percebe quando publica o primeiro livro, os socos continuam a doer por muito mais tempo do que a sensação boa dos beijos. A memória das coisas desagradáveis dura mais do que a das boas.
Aprende-se com isso?
Não aprendo nada com isso, só me faz sentir mal. Mas estou habituado. É verdade que Cidade de Vidro (ASA 2006, primeiro volume da Trilogia de Nova Iorque) foi recusado por 17 editores. Ninguém o quis publicar. Os editores de Nova Iorque recusaram-no e acabou numa editora pequena de Los Angeles. Não é engraçado A Trilogia de Nova Iorque ser publicada na Califórnia? Mas, mesmo rejeitado, isso não me parou. Talvez tivesse até sido útil, porque percebi que não estava a escrever apenas para ser publicado, mas porque o tinha de fazer. Foi uma boa lição, a de que não estava a escrever para ser publicado, por dinheiro ou para ser famoso. Estava a escrever por necessidade interior. Essas rejeições também nos fazem entender que as pessoas não sabem nada. O livro que foi rejeitado por 17 editores está publicado em 44 línguas em todo o mundo e é reconhecido como importante. Não se pode confiar nas opiniões destas pessoas.
E quem são estas pessoas?
Editoras, editores, críticos... Não sabem nada, respondem a diferentes tipos de forças. Se é um editor, está a pensar em dinheiro e não quer correr riscos. Os críticos... bom, os críticos não recebem muito dinheiro por uma crítica e não têm muito tempo e estão sob pressão para fazer alguma coisa. Quando o livro sai, as críticas são muito superficiais. E, na América, mesmo quando gostam do livro, os críticos sentem que têm de dizer qualquer coisa negativa para mostrar que estão atentos e sabem mais. Também sinto nos críticos um ressentimento em relação a alguns escritores. Eles gostariam de estar a escrever romances, mas não conseguem. O melhor é ignorar isso tudo e concentrarmo-nos no trabalho. No fim, são os leitores que decidem e eles estão em todo o lado. E toda a gente lê um livro diferente. Lemos livros sozinhos, é uma experiência solitária. Só se ouvem as palavras na nossa cabeça. A coisa bonita sobre a leitura é entregarmo-nos àquela voz, àquela música que é a linguagem de alguém, especialmente quando é muito bom. A beleza, o poder, a excitação são insubstituíveis. Agora que comecei a viajar um pouco, decidi levar um livro grande comigo, estou a reler Bleak House, do Charles Dickens. Que alegria voltar ao território de Dickens!
Dickens é uma referência para o Ferguson n.º 4, que se torna escritor. É em Dickens que ele pensa quando decide mostrar a sua história à professora. A Tale of Two Citties é um exemplo. Lê-se: “Ele tinha-se apaixonado pelo livro, tinha achado as frases ferozmente enérgicas e surpreendentes, uma inventividade inesgotável que misturava horror e humor de formas que ele nunca encontrara em nenhum outro livro”. É isso?
Dickens é uma figura a pairar à volta deste livro. Ele é intraduzível. É preciso lê-lo em inglês. Os grandes escritores que tivemos em inglês são Shakespeare, Dickens e Joyce. E todos são tão abertos, tão maleáveis, inventam a todo o tempo a energia que produzem, desafiando todas as restrições linguísticas... A suas sensibilidades são todas diferentes, não são, de modo algum, comparáveis. Apenas na mestria da língua. Acho-os os três maiores.
Fala da língua, do ritmo, e as suas frases em 4 3 2 1 são mais longas...
São. É uma coisa em que me fui envolvendo ao longo dos últimos dez anos. Tenho andado intrigado com estas frases que se enrolam.
O que é que estas frases lhe trazem, profundidade?
Acho que é uma espécie de propulsão, uma coisa que nos puxa. Quando as estou a escrever, sinto-me numa dança, num movimento envolvente; não é um fluxo de consciência, mas, de alguma forma, um espelho dos pensamentos. Como a maior parte do livro é escrito na perspectiva da reflexão interior dos vários Ferguson, pareceu-me apropriado.
Há muitas alusões a sons. A música da máquina de escrever, a música da língua, o ritmo; há muitas associações entre literatura e música.
Mas os livros são música. Todo o sentido e todo o prazer vem da música.
E neste há uma cadência interior, o narrador na cabeça da personagem a falar na voz dela ao longo dos vários estádios do seu crescimento. Como chegou à voz de um rapaz de quatro, seis ou oito anos?
Imaginando. Não sou bissexual como o Ferguson n.º 3, nunca tive experiências com outros rapazes ou homens, mas é tão fácil imaginar. O desejo é o desejo. Isso não é o mais difícil. Difícil é escrever bem as frases e estruturar o livro de modo a que se movimente.
Andou pela sua infância em Diário de Inverno (ASA, 2012) e Relatório do Interior (ASA, 2013) dois livros autobiográficos. Ajudaram-no nesse processo.
Sim. Fui capaz de escrever este livro por causa dos dois livros anteriores. Em ambos voltei à minha infância, a lembrar-me de coisas e a ficar fascinado. Sinto que estava a preparar o terreno para este grande romance. Em Relatório do Interior estava a tentar perceber como é que eu pensava quando era criança. É incrível. No princípio, tudo está vivo. Quando se é pequeno, é-se um animista. Estamos a comer feijões e cada um é como uma pessoa; os saca-rolhas eram bailarinas. Não me lembro como foi aprender a ler. Tenho uns vislumbres de estar sentado na escola, muito pequeno. Costumava pensar que havia outras letras além das do alfabeto, um A de pernas para o ar era uma letra secreta. Sabe a expressão human being [ser humano]? Quando era pequeno, achava que as pessoas diziam human bean (feijão humano). E eu pensava human bean? Por que é que somos feijões? E, claro, feijão porque todos começamos como um feijão dentro das nossas mães e então é por isso que somos feijões humanos. Explorar tudo isto nos dois livros anteriores pôs-me no estado de espírito adequado para escrever com a voz de um rapaz de quatro ou de seis anos.
É com pouco mais dessa idade, aos sete anos, que um dos Ferguson sente o silêncio de Deus. Acontece-lhe depois da morte do pai. Esse momento tem alguma tradução na sua experiência pessoal?
Acreditei em Deus quando era pequeno. No Relatório Interior escrevi que achava que Deus era o comandante da polícia celestial e podia ouvir o que eu estava a pensar, por isso devia ter pensamentos bons e portar-me bem ou ele iria castigar-me. Mas passei por uma crise religiosa da adolescência. Fui para a escola hebraica, como toda a gente da minha idade, e odiei. Aos 13 anos fiz o Bar Mitzva e comecei a pensar a sério naquilo. Estava a entrar na adolescência, a deixar a infância e a questionar-me sobre as coisas: Deus existe? Mudei de sinagoga e comecei a estudar com um rabi. Ia lá uma vez por semana, ele dava-me coisas para ler e conversávamos. Foi assim durante nove meses. Ele era simpático, inteligente, com muita compaixão, e eu já teria uns 14 anos quando lhe disse que depois de todo o estudo e pensamento percebi que não acreditava em Deus e não queria praticar nenhuma religião. Respondeu-me que entendia a minha posição. Não tentou argumentar. Disse que me respeitava. Acho que foi nesse Verão que o rapaz morreu.
Fez essa associação na altura?
Não. Estou a pensar nisso agora. É a primeira vez que estou a juntar estas duas coisas. Mas não há ligação alguma entre uma coisa e outra.
Explora a identidade baseada na diferença. Um judeu americano olhado como diferente na América...
Na América da minha infância o anti-semitismo estava presente e agora esse anti-semitismo está a renascer também por causa deste renascer da extrema-direita. É muito assustador. Os judeus na América são uma fracção pequena da população, talvez uns 12 milhões em 350 milhões.
Mas adquiriram poder...
Sim, foram assimilados e chegaram a um papel mainstream na cultura americana... mais ou menos. Pode-se dizer que os negros também chegaram... mais ou menos. Mas o racismo em relação aos negros está mais forte do que nunca, e o anti-semitismo também mais forte do que nunca. A América é um país complicado, é impossível dizer apenas uma coisa em relação à América. Conheci o Norman Mailer, gostava muito dele, e uma vez disse uma coisa que me fez rir: “A América é tão complicada que sempre que penso no assunto começo a falar com sotaque do Sul.” É o primeiro país do mundo que foi inventado. As pessoas vieram para cá, e os que cá estavam eram os índios que, milhares de anos antes, também vieram de outro lugar. Toda a gente aqui é imigrante ou escrava, que é outro tipo de imigrante, trazido à força. [Pausa] Inventar um país, que grande tarefa! É fundado em ideais dos mais importantes que os seres humanos alguma vez inventaram; os princípios da democracia, de uma sociedade igualitária, um avanço extraordinário do pensamento humano. Mas, ao mesmo tempo, apesar das belezas da Constituição Americana, é também um país fundado em dois enormes crimes: o genocídio dos indígenas e a escravatura durante 350 anos. É obsceno! O que complica a América, e continua a ser um problema, é que as pessoas não querem enfrentar estas duas coisas. Mesmo os alemães, que tiveram o Governo mais malévolo da história, que fizeram coisas que continuam a ser chocantes, têm tentado nos últimos 70 anos olhar para dentro de si próprios e penso que se arrependem e tentam emendar coisas, porque sabem que essa mancha é permanente, nunca a conseguirão demover e não há como não a enfrentar.
Com este livro, quer olhar para isso?
Este livro não é apenas a vida de Archie Ferguson, é a vida e os tempos de Archie Ferguson, e o que se passa na sociedade americana naquele tempo. Sobretudo nos anos 60, com a tremenda fermentação ideológica nos EUA; presta também muita atenção à Guerra do Vietname e ao movimento dos direitos civis, à raça, a Martin Luther King e os tumultos de Newark em 1967, que foi uma guerra de raças.
Pode-se falar desse tempo, os anos 60, como uma génese do que se está a viver agora?
Sim, havia isso tudo e era o Verão do amor na Califórnia, 1967. Todas estas coisas a acontecer em simultâneo.
Descreve esse período como de um “infindável emaranhado de horror e esperança que parecia definir a paisagem americana”. É quase impossível não ler essas passagens do livro à luz da actualidade...
Comecei a escrever o livro em 2013. Obama estava a iniciar o segundo mandato. Ele tomou posse em Janeiro e comecei o livro em Março. A eleição estava longe e Donald Trump não estava no horizonte. Terminei o livro três anos depois, em Março de 2016, mas continuei a lidar com ele durante mais seis meses. Não mudei nada, só a trabalhar algumas frases. Não pensei que Trump tivesse qualquer hipótese, não o levei a sério a esse ponto. E, bem... estava errado.
Não foi o único. Consegue arriscar alguma explicação?
Conheço todas as explicações dadas, mas nenhuma me parece captar a essência do que se passou. Um homem que é tão repugnante, tão fora da norma do comportamento decente, tão estúpido e vulgar e negligente, tão narcisista que quebra todas as regras da vida pública americana... Todos os Presidentes, mesmo os piores, venceram eleições baseados numa ideia de esperança para o futuro. Este homem está a governar de acordo com o Armagedão. Tudo é negro, violado. A filosofia de direita da antigovernação não faz sentido. A democracia são as pessoas e o governo. Como se pode ser contra as pessoas? Parece tão racional, mas estamos a viver num país irracional. Por que é que se há-de querer tirar a assistência médica? É como dizer que estamos a querer matar pessoas. É a mesma coisa, porque vão morrer por causa disto. Às vezes chamo jihadista ao Partido Republicano. Estão empenhados em destruir. Querem fazer dinheiro e lixar toda a gente. Não queria estar tão cínico, mas estou. Estas pessoas não se preocupam com nada além da satisfação própria. Mas se olhar para a história americana pode ver que tivemos estes conflitos desde o início. Sempre me pareceu um país dividido. Por um lado, pessoas que acreditam que vivemos juntos numa sociedade e somos responsáveis uns pelos outros, e por outro pessoas que acreditam que cada indivíduo não tem de ouvir ninguém sobre nada. A América é isso: a minha liberdade e não tenho de me importar com mais ninguém.
Mas há muitos protestos nas ruas...
Sim. O tremendo protesto contra Trump é espantoso. Pela sua enorme dimensão. A minha mulher e a minha filha foram a Washington e disseram-me que foi um dos grandes dias das suas vidas. A América também é um sítio fantástico, todos amamos este país, mas pode ser tão cruel e cego e estúpido e violento. O protesto é óptimo, mas tem de se acompanhado por muito trabalho no terreno. Se o Partido Democrata se quer revigorar, as pessoas têm de estar activas. Leva tempo, mas em oito anos os democratas perderam muito em todas as linhas. Há 36 governadores republicanos e apenas 14 democratas. Não foi apenas Washington que ficou republicano. Todo o país está a ficar republicano. E as pessoas apoiam estas ideias que são perniciosas; temos de fazer coisas, temos de nos ocupar com isto.
E o que é que um escritor pode fazer?
Neste país ninguém quer saber de intelectuais ou escritores. As únicas figuras públicas que as pessoas gostam de ouvir são os actores de cinema. Os actores de cinema são a realeza americana. Se vierem muitos actores falar de política, as pessoas prestam atenção, mas aos escritores não. Ninguém se interessa por escritores nos Estados Unidos.
O que se está a passar é muito sério. O futuro da América está em risco e a República está sob assalto: podemos perder a sociedade em que acreditamos.