João Salaviza rappa
Com Altas Cidades de Ossadas, regressa à competição de curtas de Berlim que venceu em 2012. Um filme que se afasta da cidade e dos subúrbios para filmar, através do rapper Karlon, aqueles que não costumam ter voz no cinema
Quando a sua primeira longa-metragem, Montanha (2015), estreou, João Salaviza disse – ao PÚBLICO, mas não só – que tão cedo não lhe apetecia “voltar a filmar adolescentes em Lisboa”. O seu primeiro filme depois dessa longa, Altas Cidades de Ossadas, com estreia esta semana no concurso de curtas de Berlim, confirma-o: protagonizado e co-escrito pelo rapper luso-cabo-verdiano Karlon, desenha em 20 minutos uma misteriosa rêverie nocturna à volta de um homem que parece viver numa “selva” africana que, na verdade, se esconde junto ao subúrbio.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Quando a sua primeira longa-metragem, Montanha (2015), estreou, João Salaviza disse – ao PÚBLICO, mas não só – que tão cedo não lhe apetecia “voltar a filmar adolescentes em Lisboa”. O seu primeiro filme depois dessa longa, Altas Cidades de Ossadas, com estreia esta semana no concurso de curtas de Berlim, confirma-o: protagonizado e co-escrito pelo rapper luso-cabo-verdiano Karlon, desenha em 20 minutos uma misteriosa rêverie nocturna à volta de um homem que parece viver numa “selva” africana que, na verdade, se esconde junto ao subúrbio.
Altas Cidades de Ossadas – que retira o seu título à escrita do poeta e activista da Martinica Aimé Césaire - afasta-se das paisagens urbanas que o realizador explorou nas curtas que fizeram o seu nome, Arena (2009, Palma de Ouro de Cannes) e Rafa (2012, Urso de Ouro de Berlim) e na sua longa. Ao telefone do Brasil, onde está em pleno processo de rodagem junto do povo indígena Krahô, Salaviza reitera como a última coisa que lhe passou pela cabeça era, mesmo, voltar a filmar o que já tinha filmado. Com um possível problema à mistura: Altas Cidades de Ossadas surgiu de um convite ao realizador feito pela Terratreme Filmes, para um filme colectivo onde se pretendia “distorcer as narrativas mais convencionais sobre os bairros sociais periféricos de Lisboa, desafiar a narrativa oficial que reproduz sempre os mesmos estigmas e estereótipos”, como explica Salaviza. “Ir à procura das histórias verdadeiras de alguns lugares que não têm direito à representação. Quando o Pedro Pinho me fez o convite, fiquei um bocadinho angustiado quando comecei a pensar, porque não me apetecia, mesmo, voltar a estes lugares para os filmar da mesma maneira, voltar a filmar prédios, esta coisa meio estéril da cidade...”
A solução acabou por nascer, segundo o realizador, “dos impulsos da vida” - do encontro com Karlon, “do fascínio e de uma espécie de paixão imediata por alguém”, no mesmo momento em que Salaviza começava a viajar para o Brasil para conhecer os Krahôs com a sua companheira, Renée Nader Messora. Como se os movimentos que o levaram a cruzar-se com Karlon e os Krahô tivesse, nas suas palavras, “um paralelo acidental com o meu movimento de me afastar das cidades.” “Tudo aquilo que é contado no filme nasce de histórias que o Karlon partilhou comigo e que nos levaram a começar a pensar no filme num lugar diferente,” explica o cineasta. “No filme há uma longa conversa da personagem com um amigo, nascida de experiências reais pelas quais ele passou. Há uma espécie de viagem mental, mas também física, que o Karlon de tempos a tempos decide realizar, num movimento de fuga da cidade que está próximo também daquilo que eu estava a fazer com a minha vida. Um abandono do lugar urbano, de regresso a um lugar mitológico que é Cabo Verde, mas que é um Cabo Verde que no fundo não existe, visto que a maioria dos cabo-verdianos da idade dele, que já nasceram em Portugal, nunca lá foram.”
Parte dos diálogos de Altas Cidades de Ossadas são “rappados” por Karlon em crioulo a capella, sem acompanhamento, evocando a tradição milenar africana do griot, misto de xamã e memória viva. “Pus-me a pensar no rapper quase como se ele fosse o princípio do cristianismo, Jesus Cristo a falar para duas dúzias de pessoas que não o queriam ouvir…”, diz Salaviza. “E achei muito forte esta proposta de o filmar a rappar sozinho no mato. É uma viagem a um espaço quase mítico, ancestral, imaginário, uma espécie de raiz da negritude e da africanidade mas que é expressa através de elementos extremamente contemporâneos. E o cinema português tem uma tradição de se ancorar sempre em histórias 'antigas' que se relacionam com o contemporâneo. Nunca o cinema português conseguiu ser tão atento à contemporaneidade como no começo do Cinema Novo, com os primeiros filmes do Paulo Rocha e do Fernando Lopes, que contam histórias muito quotidianas e aparentemente frívolas, e conseguem meter o país inteiro dentro de uma caixa de sapatos.” Ou, neste caso, comunidades africanas de língua portuguesa que não passam de “construções que não existem”: “Existem 200 mil cabo-verdianos em Portugal que estão ligados muito mais por questões quotidianas do que por uma falsa ideia de nacionalidade, e o cinema português filmou muito pouco esses 200 mil cabo-verdianos. O Pedro Costa é o único cineasta que tem filmado nestes lugares. O rap saíu do bairro e deu um grito que pôs os afro-descendentes no mapa, mas o cinema não. O Karlon disse uma coisa muito bonita: que gostava imenso que um dia as pessoas do bairro não fossem só empregadas domésticas, trabalhadores da construção civil, jovens de 20 e 30 anos desempregados ou a trabalhar em centros comerciais ou call centres.”
Altas Cidades de Ossadas tem estreia mundial na competição de curtas de Berlim (a primeira de seis passagens é hoje) – é o regresso do realizador à competição que ganhou faz agora cinco anos, o primeiro filme desde que Montanha estreou em Veneza (na Semana da Crítica, em 2015). Mas Salaviza, que sempre mostrou um saudável distanciamento daquilo a que chama “o circo dos festivais”, diz que o que mais lhe agrada neste regresso ao certame alemão é “poder estrear o filme acompanhado pela equipa e pelo Karlon, é o que me dá mais alegria”. “Nunca me deslumbrei muito com a questão dos festivais e dos prémios,” avança. “Sei que, se tenho estado a fazer filme após filme, com alguma continuidade, isso se deve também ao facto das curtas terem corrido bem. Mas, sinceramente, às vezes incomoda-me esse estigma dos filmes serem vistos à luz dos adereços que carregam, que são os prémios. Acho que isso lançou uma espécie de poeira, que não permite que eles sejam vistos nas condições ideais. Agora que já fiz uma longa, e volto a Berlim com outro filme, espero que o consigam ver como outro filme qualquer e não como «o filme do rapaz que ganhou o prémio tal e tal».”