Berlim 2017 começa ao som de Django Reinhardt

Biografia do guitarrista de jazz é o filme de abertura de uma edição menos ousada, cheia de pontos de interrogação pelo meio da passadeira vermelha e programada sob o signo da utopia. Teresa Villaverde está no concurso principal.

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Django, de Étienne Comar, biopic romanceado do guitarrista Django Reinhardt, faz esta quinta-feira a abertura da 67.ª edição do Festival de Berlim, com a proverbial passadeira vermelha orquestrada por Dieter Kosslick, o truculento director do certame desde 2001. Uma produção francesa sobre um nome mundialmente conhecido da música – faz pensar numa repetição de 2007, há dez anos certos, quando o festival deu honras de abertura a La Vie en Rose, a biografia de Edith Piaf por Olivier Dahan que acabaria por dar o Óscar a Marion Cotillard. T2, a sequela do Trainspotting de Danny Boyle, e o adeus de Hugh Jackman a Wolverine, com Logan, vão ser os pontos altos das sessões de gala fora de competição, em que irão também marcar presença Catherine Deneuve e Catherine Frot (por Sage femme, de Martin Provost), ou o australiano Geoffrey Rush (por Final Portrait, de Stanley Tucci), ou Gillian “Scully” Anderson e Hugh “Lord Crowley” Bonneville (em Viceroy’s House, de Gurinder Chadha).

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Django, de Étienne Comar, biopic romanceado do guitarrista Django Reinhardt, faz esta quinta-feira a abertura da 67.ª edição do Festival de Berlim, com a proverbial passadeira vermelha orquestrada por Dieter Kosslick, o truculento director do certame desde 2001. Uma produção francesa sobre um nome mundialmente conhecido da música – faz pensar numa repetição de 2007, há dez anos certos, quando o festival deu honras de abertura a La Vie en Rose, a biografia de Edith Piaf por Olivier Dahan que acabaria por dar o Óscar a Marion Cotillard. T2, a sequela do Trainspotting de Danny Boyle, e o adeus de Hugh Jackman a Wolverine, com Logan, vão ser os pontos altos das sessões de gala fora de competição, em que irão também marcar presença Catherine Deneuve e Catherine Frot (por Sage femme, de Martin Provost), ou o australiano Geoffrey Rush (por Final Portrait, de Stanley Tucci), ou Gillian “Scully” Anderson e Hugh “Lord Crowley” Bonneville (em Viceroy’s House, de Gurinder Chadha).

Mas a edição 2017 da Berlinale, que se prolonga até dia 19 e inclui de novo uma forte presença portuguesa – uma longa e quatro curtas a concurso, mais quatro co-produções noutras secções –, está longe de ter a mesma ressonância das anteriores, como se o venerando certame alemão se tivesse “retraído” depois de três anos fortes. Em 2014, houve Richard Linklater (Boyhood), Alain Resnais (Amar, Beber e Cantar), Wes Anderson (Grand Budapest Hotel), Karim Ainouz (Praia do Futuro), Ira Sachs (Love Is Strange); em 2015, Patricio Guzmán (O Botão de Nácar), Pablo Larraín (O Clube), Andrew Haigh (45 Anos), Werner Herzog (Rainha do Deserto), Terrence Malick (Cavaleiro de Copas); em 2016, Gianfranco Rosi (Fogo no Mar), Mia Hansen-Love (O Que Está por Vir), Jeff Nichols (Midnight Special), Lav Diaz (A Lullaby to the Sorrowful Mystery), Ivo Ferreira (Cartas da Guerra), Salomé Lamas (Eldorado XXI), Alex Gibney (Zero Days)…

Este ano, a competição berlinense, que Dieter Kosslick coloca à sombra das utopias (mas parece ser muito menos um “festival do tema” do que é habitual, pelo menos até ver), propõe o finlandês Aki Kaurismäki (The Other Side of Hope), o sul-coreano Hong Sang-soo (On the Beach at Night Alone), o japonês Sabu (Mr. Long) e a nossa Teresa Villaverde (Colo). É pouco, sobretudo quando entradas potencialmente fortes como The Lost City of Z, de James Gray (A Imigrante), Berlin Syndrome, da australiana Cate Shortland (Lore), Untitled, o filme inacabado do falecido Michael Glawogger, ou The Young Karl Marx, de Raoul Peck, ficaram relegadas para as paralelas Berlinale Special ou Panorama. O Forum, a secção paralela dedicada às vanguardas, é também este ano fervilhante – com dois filmes de alunos do Laboratório de Etnografia Sensorial de Harvard (Véréna Paravel e Lucien Castaing-Taylor com Somniloquies, J. P. Sniadecki e Joshua Bonnetta com El Mar la Mar), o novo Alex Ross Perry (Golden Exits, com Chloe Sevigny e Jason Schwartzman), ou um programa 3D, Ulysses in the Subway, a oito mãos – Flo e Ken Jacobs, Marc Downie e Paul Kaiser.

Utopias e distopias

Há, claro, sempre os pontos de interrogação  como Félicité, do francês Alain Gomis, rodado nas ruas de Kinshasa; ou Wilde Maus, estreia na realização do comediante austríaco Josef Hader, que vamos ver em breve no papel de Stefan Zweig. E a “prata da casa” alemã é este ano discreta mas interessante: o sempre estimável Thomas Arslan segue a “experiência americana” de Ouro com Helle Nächte, história de pai e filho que procuram voltar a saber quem são; Andres Veiel, depois de filmar os primeiros tempos do grupo Baader-Meinhof em Wer Wenn Nicht Wir, mostra um documentário sobre o artista Joseph Beuys, montado a partir de imagens e sons inéditos; e o veterano Volker Schlöndorff traz um filme rodado nos EUA, Return to Montauk, adaptação de Max Frisch com Stellan Skarsgard e Nina Hoss.

Mas a sensação com que se fica, ao percorrer o programa, é a de um festival menos ousado do que em anos anteriores, cheio de nomes de “segunda linha”, como a polaca Agnieszka Holland, cujo Pokot foi co-dirigido por Kasia Adamik; a inglesa Sally Potter (Orlando), que apresenta The Party, uma sátira política com um elenco que inclui Bruno Ganz, Timothy Spall ou Kristin Scott Thomas; o chileno Sebastián Lelio, cujo Gloria valeu a Paulina García o prémio de Melhor Actriz, com Una Mujer Fantastica, ou o romeno Calin Peter Netzer, com Ana Mon Amour, que sucede a Mãe e Filho, Urso de Ouro em 2013. Os filmes da América Latina e da Ásia, para os quais Berlim teve sempre faro, estão praticamente ausentes do concurso principal (ainda não é desta que Lucrecia Martel mostra o seu Zama, do qual se anda a falar há mais de um ano – a ver se é Cannes).

Claro que há uma “corda bamba” em que o festival ainda e sempre se mexe; de todos os certames ditos de “classe A”, Berlim é aquele mais aberto ao público (300 mil bilhetes vendidos em média por edição, com espectadores de toda a Alemanha que tiram férias para acompanharem os dez dias de certame), que mais procura o meio-termo possível entre a descoberta e o conforto, que menos veleidades “autorais” tem. É esse equilíbrio que é anualmente questionado pela imprensa alemã, protestando regularmente contra uma descaracterização do certame – contra a qual as últimas edições foram argumentos fortes, mas que a presença constante de filmes de prestígio dirigidos a um “gosto de classe média” e cujo destino é muitas vezes o video-clube ou a televisão e a recente aposta em séries televisivas parecem sublinhar.

Não é, no entanto, possível medir “de fora” o peso das turbulências políticas globais na montagem do programa de 2017, que fechou mais tarde do que é costume; a começar pela eleição de Donald Trump para a presidência americana e pela incerteza daí resultante e a terminar no atentado de Natal junto à Igreja da Memória, a escassos metros do Zoo Palast, uma das salas emblemáticas do certame. Certo é que a cidade parece viver como sempre viveu, como se nada tivesse acontecido em Dezembro, com uma pontual presença policial mais reforçada sublinhada pelas solicitações da organização do festival relativamente a medidas de segurança adicionais.

E igualmente certo é que, pelo meio da loucura que é e continua a ser navegar por uma programação multifacetada, vai continuar a haver descobertas. E até redescobertas – através de uma homenagem à figurinista Milena Canonero (com Barry Lyndon e Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick, Cotton Club, de Coppola pai, e Marie Antoinette, de Coppola filha), da secção de cópias restauradas Berlinale Classics (com a Noite dos Mortos Vivos de George Romero e a Annie Hall de Woody Allen), e da retrospectiva dedicada ao cinema de ficção científica, Future Imperfect (que vai do Ghost in the Shell de Mamoru Oshii ao Mundo no Arame de Rainer Werner Fassbinder, de Blade Runner e Alien de Ridley Scott a À Beira do Fim de Richard Fleischer e THX 1138 de George Lucas). Distopias para colorir as utopias de que Dieter Kosslick falava; se calhar, será este o “tema” de Berlim 2017. A ver vamos.