O Diabo em forma de gente é um caso sério

A paixão pela música de raiz e pelas tradições portuguesas faz dos Diabo a Sete um caso sério. Figura de Gente, o novo disco, é mais uma boa luz no seu (e no nosso) caminho.

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FOTO: Henrique Patrício

A capa mostra uma figura desengonçada, casaco içado por cima da cabeça, uma flor murcha na lapela e numa aparência de desequilíbrio. No disco, a figura ganha uma voz: “Tenho figura de gente/ Nos tendões, a sede quente/ Sou bicho raro, a perturbar.” E é um bicho raro, na verdade, mas a perturbação é benigna, embora venha de um diabo que nenhum político evocou: o Diabo a Sete, grupo musical nascido em Coimbra há já catorze anos e que tem feito carreira segura em palcos e festivais desde então. Figura de Gente é o seu terceiro disco e exala uma contagiante frescura, misturando tonalidades de romances antigos e cantos de raiz tradicional portuguesa a batidas e ritmos contemporâneos. Do que desconstrói, nasce algo novo que arrasta consigo sons reconhecíveis, agitando mentes e corpos que não larga até deixar neles a sua marca. Eram sete, no início, hoje são seis: Celso Bento (Flautas, gaita de foles, coros), Luísa Correia (guitarra acústica e coros), Eduardo Murta (baixo eléctrico), Miguel Cardina (bateria), Pedro Damasceno (cavaquinho, bandolim, machinho e coros) e Sara Vidal (voz, harpa e pandeireta galega).

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A capa mostra uma figura desengonçada, casaco içado por cima da cabeça, uma flor murcha na lapela e numa aparência de desequilíbrio. No disco, a figura ganha uma voz: “Tenho figura de gente/ Nos tendões, a sede quente/ Sou bicho raro, a perturbar.” E é um bicho raro, na verdade, mas a perturbação é benigna, embora venha de um diabo que nenhum político evocou: o Diabo a Sete, grupo musical nascido em Coimbra há já catorze anos e que tem feito carreira segura em palcos e festivais desde então. Figura de Gente é o seu terceiro disco e exala uma contagiante frescura, misturando tonalidades de romances antigos e cantos de raiz tradicional portuguesa a batidas e ritmos contemporâneos. Do que desconstrói, nasce algo novo que arrasta consigo sons reconhecíveis, agitando mentes e corpos que não larga até deixar neles a sua marca. Eram sete, no início, hoje são seis: Celso Bento (Flautas, gaita de foles, coros), Luísa Correia (guitarra acústica e coros), Eduardo Murta (baixo eléctrico), Miguel Cardina (bateria), Pedro Damasceno (cavaquinho, bandolim, machinho e coros) e Sara Vidal (voz, harpa e pandeireta galega).

Pedro Damasceno, no grupo desde a fundação, recorda como surgiu o Diabo a Sete: “O grupo surge no contexto do GEFAC [Grupo de Etnografia e Folclore da Academia de Coimbra, fundado em 1966], a partir de um grupo de amigos que se sentiam atraídos pela música tradicional. Então juntámo-nos ainda a outros amigos, vinham do Borda d’Água, sediado em Eiras, um projecto com moldes totalmente diferentes, mais parecido com um grupo de cantares que também tentava fazer algo diferente” [da dissolução dos Borda d’Água nasceu em 2003, além dos Diabo a Sete, ainda outro grupo também coimbrão: Barca dos Castiços]. De início, havia “uma carga maior de temas instrumentais”, diz Pedro. “Mas com o tempo fizemos mais temas cantados, até que o Miguel descobriu a sua veia de letrista e começámos a explorar esse filão.” O mesmo se passou com a temática musical, que evoluiu das versões para a criação própria. “Inicialmente, a banda procurava pegar em temas tradicionais e dar-lhe o seu toque, a sua interpretação, e a certa altura começámos a construir os nossos próprios originais.”

Salto qualitativo

Desde 2003, o grupo foi mudando, com entradas e saídas, mantendo-se um núcleo da formação inicial. Depois de um primeiro disco em 2007, Parainfernália, lançaram em 2011 TarAra (com participação de Carlos Guerreiro, dos Gaiteiros de Lisboa), disco que lhes valeu vários elogios e levou a revista Blitz a considerá-los, “apesar da fortíssima concorrência”, a “banda herdeira da Banda do Casaco”. Julieta Silva, a vocalista até TarAra, deixou o grupo durante a gravação deste novo disco (daí que ainda assine quase todos os arranjos e nele participe como cantora, em coros, e como instrumentista, na sanfona e no pianinho). E então surgiu “uma excelente oportunidade”, diz Pedro: a entrada no grupo de Sara Vidal, ex-Luar na Lubre, que continua a ser também vocalista do grupo A Presença das Formigas. Uma sobreposição que não lhe traz qualquer problema, como ela própria diz. “Como são estilos diferentes, não existe o risco de soarem à mesma coisa. Dá para conciliar, a nível musical.” A entrada nos Diabo a Sete foi por ela aceite sem hesitar. “Foi um desafio interessante. Eu já acompanhava o grupo desde os meus tempos da Galiza, conhecia os discos anteriores, e há esta ligação comum à música tradicional, de raiz, folk. Foi um namoro que acabou em casamento. Espero que seja durável e feliz.”

As mudanças reflectiram-se na sonoridade do novo disco, com um salto qualitativo assinalável. “Esse salto deve-se essencialmente ao grande trabalho que o Quico Serrano fez na produção”, diz Pedro. “É excelente. E fez-nos pensar muito mais sobre os temas, os arranjos, não só em questões musicais como estéticas.” Luísa Correia acrescenta: “O anterior foi mais trabalhoso. Este disco saiu-nos de forma mais fluída, mas a produção do Quico fez com que sentíssemos maior leveza ao tocar as músicas em palco, bem como na fase final da gravação e nos arranjos.”

Desregramento dos sentidos

Dos nove temas de Figura de Gente, quatro são instrumentais e cinco têm letra. Como o que abre o disco, Corpo Inteiro, que soa como um romance virado ao contrário: “Surgiu a partir de um riff de bandolim que acabou por não ficar na música”, diz Pedro. A canção teve, até, outra letra. “Mas tinha consoantes que não funcionavam”, diz Luísa. “Repetiam-se para rimar e trocámo-las.” Miguel escreveu então, diz ele, “uma letra completamente nova”: Que começa assim: “Ai apertem os cintos, vamos começar/ vou contar uma história de desencantar…”

Tamboril, o tema seguinte, tem um toque godinhiano: “Primeiro surgiu o conceito: um tema que funcionasse com uma espécie de mantra e que a certa altura rebentasse. Foi o que tentámos fazer. Na altura eu e o Celso estávamos a falar sobre isso, eu fiz o dedilhado no cavaquinho e ele pôs-se a cantar por cima.” Miguel Cardina, que escreveu a letra (e que assina todas as letras do disco), confirma: “Esse tema não obedece ao modo como nós temos construído as músicas, que partem mais de uma ideia musical. Mas esse caminha mais ou menos a par, porque havia um esboço e a letra foi-se desenvolvendo com a música. É curioso que eu não tinha pensado em ressonâncias godinhianas, mas mais dos Gaiteiros de Lisboa. O que nos faz pensar na questão das influências, pois no disco anterior chegaram a comparar-nos à Banda do Casaco!”

Outono embargado, um instrumental, parte de uma melodia conhecida para nos levar para outros caminhos. “Gosto muito da Balada de Outono do Zeca Afonso. Estava mais ou mais a brincar com essa melodia, no cavaquinho, e de repente começou-me a fugir para outra coisa. Então comecei a desconstruir a melodia, partindo dela, e acabei por ir parar a outro sítio.”

O instrumental que fecha o disco, Dança das fritilárias, foi feito a pensar nesta espécie de borboletas. “Há uma inspiração no espanto que nós sentimos quando olhamos a natureza, eu pelo menos sinto-o”, diz Pedro Damasceno. “E é também uma homenagem a pessoas que me fizeram olhar para a natureza e para a música de uma outra forma. O meu pai, por exemplo.”

Voltando à capa e ao tema que dá título ao disco: Figura de gente. Miguel Cardina, o letrista, explica-o assim. “Curiosamente, o Pedro é que deu uma boa definição do espírito que esse tema tem, que é uma forma humorística de olharmos para nós próprios. Quando nos encontramos, há um certo desregramento dos sentidos, que passa por tocar mas também pela amizade que nos une. E isso é muito importante, porque senão não estávamos a tocar juntos há tantos anos.”