Como sobreviver a Donald Trump?
A condição decisiva para a América sobreviver a Donald Trump é tratar a polarização que a dilacera. É a mais difícil das tarefas políticas.
As duas primeiras semanas da presidência de Donald Trump mudaram o já muito polarizado debate americano. Não se discutem apenas as políticas. Instala-se o debate sobre a própria natureza do “regime trumpiano”. A questão última diz respeito às instituições: são suficientemente fortes para suster uma derrapagem autocrática? Antes de lá ir, passemos por algumas questões prévias.
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As duas primeiras semanas da presidência de Donald Trump mudaram o já muito polarizado debate americano. Não se discutem apenas as políticas. Instala-se o debate sobre a própria natureza do “regime trumpiano”. A questão última diz respeito às instituições: são suficientemente fortes para suster uma derrapagem autocrática? Antes de lá ir, passemos por algumas questões prévias.
O comediante americano Bill Maher pode servir de ponto de partida. Ele explica os riscos da polarização e do abuso da retórica “vem aí o lobo”. Retratar os adversários como “vilões” — prática de democratas e republicanos — é perigoso. “Conheço liberais que cometeram o erro imperdoável de atacar [George W. Bush] como se fosse o fim do mundo.” Confessa: “Eu ataquei Mitt Romney dessa maneira. Dei um milhão de dólares para a campanha de Obama, porque estava assustadíssimo com Romney. Ora, a minha vida não teria mudado radicalmente com Romney. Nem com McCain. (...) Gritávamos ‘vem aí lobo’. E não era verdade.” Diz a sabedoria popular que quando o lobo chega já ninguém escuta o alarme. Agora, aí está Trump.
O ultraconservador Glenn Beck, vedeta da rádio e da televisão, autor de diatribes contra todos os democratas, reconhece hoje que o seu “estilo paranóico” abriu caminho ao “trumpismo”. E diz ver na América de Trump “as sementes do que aconteceu na Alemanha em 1933”. É difícil meter o génio na garrafa depois de o soltar.
Um olhar italiano
O economista italiano Luigi Zingales, que ensina em Chicago, escreveu em Maio de 2011 um artigo em que dava os parabéns aos americanos, e em especial aos republicanos, por Donald Trump ter desistido da sua candidatura presidencial. É que, pensando no populismo de Berlusconi, o julgava elegível. Provocou risos. Voltou a escrever depois destas eleições, no New York Times, para passar alguns ensinamentos italianos.
Tal como em Trump, a personalidade é fundamental no político Berlusconi. O narcisismo, a megalomania, a falta de escrúpulos são comparáveis. Tal como os estilos de acção, adquiridos nas guerras empresariais. Mas a esquerda e, sobretudo, os intelectuais e os media equivocaram-se. Deixaram-se obcecar pela vulgaridade de Berlusconi e pelos seus sarilhos judiciais, descurando o debate político substancial.
Os ataques pessoais aumentaram a popularidade do magnata. “O seu segredo estava na habilidade em desencadear uma reacção pavloviana na oposição de esquerda.” A própria grosseria, em oposição à elite, tornavam-no popular. Zingales chama a atenção para as eleições que Berlusconi perdeu, com Romano Prodi e com Matteo Renzi (europeias de 2014): foram aquelas em que se focaram políticas substantivas e não questões de carácter.
Com Trump não foi diferente. “Hillary Clinton estava tão focada em explicar as péssimas ideias de Trump que frequentemente deixou de promover as suas ideias.”
E agora? Zingales pensa que a deslegitimação de Trump é um erro. Anotou há dias José Manuel Fernandes no Observador: “Quase tudo aquilo que os adversários de Trump têm vindo a fazer tem contribuído para que ele reforce a sua posição.” Devem atacar as suas políticas e não o carácter. Há partes do seu programa com que os democratas podem concordar. Os liberais podem utilizar algumas propostas de Trump — como as infra-estruturas ou a separação entre a banca comercial e a de investimento — para pôr em xeque os republicanos, explorando as contradições entre o populismo presidencial e o conservadorismo republicano. A tese de Zingales é diametralmente oposta à tentação dos congressistas democratas em fazer uma oposição sem compromissos.
Lições da Venezuela
Num artigo publicado no Washington Post, o economista venezuelano Andrés Miguel Rondón faz um apelo aos americanos. Título: “Na Venezuela não conseguimos parar Chávez. Não cometam os mesmos erros que nós fizemos.” O fio condutor é o populismo e a sua necessidade de polarização política.
“A política é só metade da política: o resto, é a metade negra da retórica. (...) A receita do populismo é universal. Encontrar uma ferida comum a muita gente, encontrar alguém a quem acusar e construir uma boa história. Misture-se tudo. Digam aos queixosos que sabem o que eles sentem. Que encontraram os tipos maus. Nomeiem-nos: as minorias, os políticos, os empresários. Caricaturem-nos. (...) Captem a imaginação popular. Esqueçam as políticas, arrebatam-nos com um conto.” Segue-se a transformação em movimento.
O que realmente preocupa Rondón é a polarização da sociedade e da política. “O populismo apenas pode sobreviver na polarização. Funciona através do interminável aviltamento de um inimigo caricaturado. (...) O populismo precisa de se transformar em inimigo, como as religiões precisam de um demónio. De um bode expiatório.”
A mensagem é: “Não alimentem a polarização, desarmem-na. (...) O vosso desafio é provar que pertencem à mesma tribo que eles — que são americanos da mesma maneira que eles são.” E, acima de tudo, não mostrar desprezo. Nunca tratar os “outros” por “desprezíveis” (deplorables) como fez Hillary.
Os democratas venezuelanos demoraram anos a aprender tudo isto. “Nós pensávamos que o país estava partido entre pérfidos oligarcas e a crédula e ignorante base de Chávez. O único beneficiário foi Chávez.”
A América está política e ideologicamente polarizada. E não apenas entre liberais e conservadores. A radicalização a ela associada atravessa os dois grandes partidos e ameaça laminar os seus sectores moderados em favor dos extremos. Nos tempos recentes, a tendência remonta às legislativas de 1994, foi acentuada pelo Tea Party e atinge agora o seu pico. Envolve sentimentos de viva antipatia, pondo em causa a possibilidade de diálogo entre uns e outros. É também um fenómeno de tribalização. “Pessoas da direita e da esquerda dizem que é importante para elas viverem num lugar em que a maioria das pessoas partilhe a sua opinião política”, lê-se num inquérito do Pew Research Center.
O Partido Democrata está a digerir a derrota. Alguns activistas encaram a emergência de um “Tea Party democrata” que force a radicalização dos seus dirigentes e congressistas. Esta radicalização é compreensível, mas cerceará a agilidade táctica dos seus congressistas. Faz o jogo de Trump, pois a polarização é para ele uma condição de sobrevivência.
A palavra autocracia
Como se disse, as duas primeiras semanas de Trump na Casa Branca mudaram o debate. Figuras conservadoras, que já o tinham denunciado durante a campanha, começam a subir o tom dos alarmes. Cito dois exemplos de antigos neoconservadores, em textos publicados na revista The Atlantic.
Eliot Cohen, professor de Política Internacional e antigo conselheiro de Condoleezza Rice, fala num “momento de clarificação na História americana”. As últimas medidas do Presidente e a ascensão do “ideólogo Steve Bannon” prenunciam o pior. Não é só o temperamento de Trump que está em causa. “Ele vai piorar, na medida em que o poder intoxica Trump e os que estão à sua volta. Acabará provavelmente numa calamidade, na ruptura das relações económicas internacionais, ou até numa ou várias guerras (talvez com a China).” Admite que tudo venha a acabar num impeachment.
Mas está condenado. “Vai falhar porque não pode corromper os tribunais e porque, mais cedo ou mais tarde, o mais tímido dos senadores vai dizer ‘basta’. Vai falhar um dia porque a maioria dos americanos, incluindo a maior parte dos que votaram nele, são pessoas decentes que não querem viver numa versão americana da Turquia de Tayyip Erdogan, numa Hungria de Viktor Orbán ou numa Rússia de Vladimir Putin. (...) Será a grandeza da América que o travará.”
Outro alarme foi lançado por David Frum, antigo speachwriter de George W. Bush, num ensaio sintomaticamente intitulado “Como construir uma autocracia”. Frum é mais pessimista do que Cohen. Tem noção da capacidade mobilizadora da demagogia e de algumas políticas de Trump. Ele não vai construir um Estado autoritário e policial. Quer “construir um aparelho de impunidade e vingança” e pôr termo à tradição de independência e profissionalismo do funcionalismo público. “Nos verdadeiros Estados policiais, a vigilância e a repressão sustêm o poder das autoridades. (...) É a polarização, não a perseguição, que permite o moderno regime iliberal.”
Há manifestas divergências entre os conservadores do Congresso e o populismo de Trump. Os conservadores podem ser socialmente mais reaccionários, mas respeitam a Constituição. Com Trump, é o inverso. A ideia de Frum é que, por razões sobretudo eleitoralistas, os líderes republicanos do Congresso se estão a “ajoelhar” perante o Presidente e o seu staff. Admite que Trump tenha em mente uma transformação do Partido Republicano, juntando o nacionalismo e generosas despesas sociais numa formação de tipo populista.
E a Constituição?
Este debate desemboca naturalmente numa reflexão sobre a solidez das instituições americanas. É exemplo uma polémica em curso na Foreign Affairs. A 18 de Janeiro, Daron Acemoglu, economista turco-americano e autor de um livro célebre sobre a falência das nações, fez um inventário das ameaças à democracia americana, análogo aos acima resumidos. Apenas retenho duas observações.
“O que torna a América vulnerável para ficar cega perante tal ameaça é a nossa inabalável — e nostálgica — crença na força das instituições. De facto, os Estados Unidos têm fundações institucionais muito melhores e um excepcional sistema de equilíbrio de poderes [checks and balances], quase inteiramente ausentes na Venezuela, na Rússia e na Turquia.”
No entanto, avisa: “Trump está em vias de ser legitimado pelas elites e pelo público. (...) Temos de nos lembrar de que não vivemos tempos normais e de que o futuro das nossas queridas instituições não depende dos outros, mas de nós mesmos. (...) Somos a última defesa.”
Respondeu-lhe, dias depois, Francis Fukuyama, sumariando as resistências que Trump vai encontrar: no Congresso, nos tribunais, no controlo do seu próprio executivo e “enfim no federalismo americano”. De resto, “penso que as suas políticas não funcionarão e que o povo americano muito depressa o constatará”.
A batalha que se anuncia com o poder judicial e com os estados será o primeiro grande teste à resistência das instituições. Mas a condição decisiva para a América sobreviver a Donald Trump é tratar a polarização que a dilacera. É a mais difícil das tarefas políticas.