Almaraz e a soberania
Não representa só um risco: representa um gigantesca gargalhada perante a decisão soberana portuguesa de não ter centrais nucleares.
Uma das melhores notícias recentes é o Estado português ir para tribunal por causa do armazém de resíduos nucleares que o Estado espanhol quer construir perto da central nuclear de Almaraz. A notícia é boa pelo conteúdo: Almaraz é um risco para nós há décadas; um armazém de resíduos nucleares junto à fronteira prolonga esse risco. Mas é uma notícia boa também pela oportunidade para fazer um debate clarificador sobre o que é soberania hoje.
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Uma das melhores notícias recentes é o Estado português ir para tribunal por causa do armazém de resíduos nucleares que o Estado espanhol quer construir perto da central nuclear de Almaraz. A notícia é boa pelo conteúdo: Almaraz é um risco para nós há décadas; um armazém de resíduos nucleares junto à fronteira prolonga esse risco. Mas é uma notícia boa também pela oportunidade para fazer um debate clarificador sobre o que é soberania hoje.
Para quem já viu Almaraz, o problema que a central nuclear apresenta é evidente. À beira da estrada, perto da fronteira, mesmo junto ao rio Tejo que dali correrá até à capital portuguesa, Almaraz não representa só um risco: representa um gigantesca gargalhada perante a decisão soberana portuguesa de não ter centrais nucleares. De que nos serve a nossa escolha estratégica de não optar pela energia nuclear, quando a decisão estratégica dos outros consiste em nos obrigar a partilhar os riscos da escolha deles?
Mas a verdade é que Almaraz se encontra teimosamente em território espanhol, no qual mandam os espanhóis. Para quem acredita na soberania nacional como o regime em que cada país é um compartimento estanque (e há muitos que nisso acreditam), nada se poderá fazer até ao momento em que o primeiro átomo atravesse a fronteira. E depois ninguém vai pedir o passaporte ao átomo.
Felizmente temos — nós e os espanhóis — coisas chatíssimas, daquelas que só dão jeito para atacar com vigor patriótico: tratados e regulamentos e diretivas comunitárias.
Não é por acaso. Em 25 de Março de 1957 os seis países fundadores do projeto da União Europeia assinaram o Tratado de Roma. No mesmo dia assinaram também um outro tratado menos conhecido, mas que ainda existe, chamado Euratom. Isto aconteceu poucos meses depois do chamado “desastre do Suez” em que tropas britânicas e francesas se tentaram apossar do canal egípcio desse nome para, entre outras coisas, garantir o abastecimento de petróleo aos seus países. Com o desastre do Suez os europeus atentos perceberam duas coisas: que os impérios estavam a acabar e que a segurança energética dos seus países não estava adquirida. O Tratado de Roma e o Euratom foram respostas diretas à realidade simples de que o mundo tinha mudado.
Com isso mudou também a soberania. Não é surpresa: como capacidade de (individual e coletivamente) decidirmos o nosso destino, a soberania muda de cada vez que mudam as ferramentas ao nosso dispor. A soberania do tempo das carroças não é a soberania do tempo das centrais nucleares. No tempo das carroças poderíamos viver bem com uma soberania compartimentada; no tempo das centrais nucleares é difícil entender como poderá a soberania não ser partilhada.
Na base jurídica dos tratados europeus estão então assentes uma série de diretivas (só no nosso século são pelo menos seis) que regulam questões ambientais, de segurança e de fiscalização mútua na área nuclear. Nós não podemos impedir a Espanha de construir centrais. Mas a Espanha não pode fazê-las de qualquer maneira, nem pode esquivar-se a uma fiscalização na qual Portugal pode (e deve) participar de forma independente. Ainda é difícil saber quão longe pode Portugal levar a sua queixa: mas, para já, a Comissão tem três meses para responder e, mesmo em caso de uma resposta insatisfatória, Portugal pode seguir sozinho para tribunal.
E aqui chegamos ao ponto clarificador para o debate sobre soberania. Há quem duvide da eficácia destes instrumentos e os critique por serem demasiado lentos. É um bom argumento, excelente mesmo — para os defensores da soberania partilhada que a UE permite. Mas não para quem defenda uma versão tradicional (eu diria retrógrada) da soberania: não se pode defender nos dias pares uma noção compartimentada da soberania contra a UE, e anos ímpares criticar a UE por não ser suficientemente veloz e eficaz a violar a soberania espanhola.
É preciso optar. Mas escolher a soberania das carroças no tempo das centrais nucleares só funcionará a desfavor dos países que — como Portugal — decidiram não ter centrais nucleares.