“O referendo seria uma ferramenta fantástica”
Rui Nunes, presidente da Associação Portuguesa de Bioética, defende que o Parlamento não tem “legitimidade democrática” para aprovar a eutanásia e que só um referendo garantirá uma lei suficientemente robusta para travar qualquer retrocesso futuro nesta matéria.
Convencido de que um referendo sobre a eutanásia resultaria num “sim”, Rui Nunes alerta para os riscos de uma legislação precipitada sobre a matéria, nomeadamente o de, mudada a correlação de forças no Parlamento, o poder legislativo recuar e voltar a proibir tal prática. Diz que a criação de uma lista pública de médicos objectores de consciência seria “um retrocesso civilizacional” e sugere que a eutanásia poderia, tal como na Suíça, ser praticada por voluntários credenciados.
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Convencido de que um referendo sobre a eutanásia resultaria num “sim”, Rui Nunes alerta para os riscos de uma legislação precipitada sobre a matéria, nomeadamente o de, mudada a correlação de forças no Parlamento, o poder legislativo recuar e voltar a proibir tal prática. Diz que a criação de uma lista pública de médicos objectores de consciência seria “um retrocesso civilizacional” e sugere que a eutanásia poderia, tal como na Suíça, ser praticada por voluntários credenciados.
Considera que estão criadas as condições para se legislar sobre a eutanásia em Portugal?
Não. O debate da eutanásia é um debate muito sério, muito complexo e muito disruptivo. E, tratando-se de um tema de elevadíssima complexidade, estou convencido que a maioria dos portugueses não sabe distinguir o que é a eutanásia, por exemplo, no modelo holandês, e a morte medicamente assistida, no sentido da assistência médica ao suicídio. E também que não consegue distinguir entre eutanásia e testamento vital ou sedação paliativa terminal ou mesmo entre eutanásia e uma ordem de não-reanimar. Estou convencido que estes temas (não é que não possam ser apreendidos pelos portugueses, porque podem) necessitam de discussão técnica profunda e séria. E estou em crer que esse debate, até do ponto de vista estritamente médico, sem entrarmos nas questões da moral ou da ética, não foi feito na sua plenitude. Por outro lado, é absolutamente fundamental que — e porque estamos a falar daquilo que mais íntimo nós temos, a nossa vida e a nossa morte — este debate seja feito com seriedade e sem nenhum tipo de emoções exageradas que possam distorcer o nosso pensamento e a nossa decisão. E isso só se pode fazer com calma e serenidade, que é algo que manifestamente não está a acontecer. Depois, entendo que uma decisão tão fracturante como esta não pode ficar apenas sob responsabilidade de um conjunto de deputados que, tendo legitimidade formal, não dispõem da necessária legitimidade democrática. Ou seja, do ponto de vista da cultura democrática, há aqui uma falha séria. Como existe esta falta de legitimidade democrática, ainda que haja uma legitimidade formal, repito, quando, daqui a meia dúzia de anos, tivermos uma maioria diferente na Assembleia da República, uma lei que regula um aspecto tão dramático das nossas vidas arrisca-se a andar para trás, a retroceder, aliás, como se tem assistido por esse mundo fora, desde logo quando não há consistência legislativa.
Qual deveria ser o caminho a seguir?
É de louvar a iniciativa da Assembleia da República? Claro que sim. É de iniciar esse debate sério e profundo? Claro que sim. Mas esse debate só será levado ao seu limite, da mesma forma que aconteceu com o aborto, se houver um referendo que permita que os diferentes pontos de vista sejam propostos para debate e que os portugueses e as portuguesas se possam pronunciar. Aí terão know-how para poderem deliberar e, aí sim, teremos uma lei robusta e moderna e não andaremos com avanços e recuos nesta matéria. Por outro lado, creio que esta precipitação legislativa não está a ter em conta outro factor: é que, de momento, a ética e a deontologia médicas não permitem a prática da eutanásia. E era mais do que recomendável que também houvesse um debate paralelo na classe médica, mas claro que este debate só vai existir se também existir na sociedade. Se, de repente, o Parlamento permite a eutanásia…
Essa questão não se resolveria com uma alteração ao Código Deontológico?
O Código Deontológico é uma norma ética dos médicos. Está, aliás, no juramento hipocrático que todos os anos os jovens médicos proclamam. Se houver debate profundo, é possível uma evolução natural dessa norma deontológica. Se for por pressão legislativa, tenho mais reservas. A medicina pode entender que a eutanásia não está dentro dos limites do acto médico. E, já agora, por que é que a eutanásia não há-de ser praticada por voluntários, como na Suíça? Esse é outro debate que não está a ser feito. Podemos estar a aprovar uma lei que vai gerar ainda mais confusão do que a ausência da lei. E isso seria defraudar as expectativas da sociedade. Tenho simpatia por esse tema, acho que devíamos ir em frente, mas, com esta precipitação, dificilmente teremos uma lei adequada e que vá de encontro aos interesses da população. Pessoalmente preferia que isto fosse o início e não o fim de um processo.
O projecto de lei do PAN prevê a criação de uma lista pública de médicos objectores de consciência…
Uma coisa é a legislação, as normas jurídicas e a organização do sistema de saúde; quando se entra na consciência das pessoas, não gosto de ver o poder político intrometer-se. Acho que a última coisa que deve acontecer é criar-se uma lista pública de objectores: por princípio, haver listas de pessoas catalogadas de acordo com as suas preferências éticas, sociais e políticas não é consentâneo com o regime democrático; mas também porque as questões de consciência são circunstanciais, cada doente é um doente e cada decisão é uma decisão contextual e o poder político não pode nem deve imiscuir-se na relação médico-paciente. Isso de certeza que teria forte contestação, até por parte da sociedade, porque a maioria das pessoas não quer seguramente que se condicione a decisão médica, no plano técnico ou no plano moral. Isso seria um retrocesso civilizacional. Cada um deve decidir em consciência. E, de resto, não há nenhum imperativo que obrigue a que sejam os médicos a praticar a eutanásia. Por que não os enfermeiros? A eutanásia não é um acto médico, quando muito será um acto de saúde e pode ser praticado por outro profissional. Mas também admito que os enfermeiros tenham reticências. Na Suíça, como disse, a eutanásia é praticada por voluntários que não são profissionais de saúde. Legitimou-se o direito à morte assistida, mas, no fim da linha, entendeu-se que o profissional de saúde tem outra missão, a de tratar, curar e de salvar, e há outras pessoas que estão credenciadas para aplicar a eutanásia. É dos tais a priori que não estão a ser discutidos. Eu não tenho nada a certeza que a sociedade queira que sejam os médicos a fazê-lo.
Está convencido que num referendo sobre a matéria a eutanásia poderia passar?
Estou convencido que a maioria da população pode estar receptiva a esta evolução legislativa, mas é uma simples impressão, e não se pode avançar desta forma tão drástica no plano civilizacional com base em opiniões dispersas. Aqui o referendo seria uma ferramenta fantástica, até porque era uma arma de cultura democrática e de educação para a saúde, e não tenho dúvidas de que o povo português ficou melhor depois do referendo sobre o aborto, cuja discussão fez com que as pessoas evoluíssem em termos de cidadania responsável. Se marcássemos este referendo para o Verão ou para o início de 2018, dava tempo de fazermos um amplo debate e depois as pessoas escolheriam sem nenhum sentimento de que há aqui uma pressão no sentido de uma determinada mudança. Mas se o Parlamento decidir agora…
…Há o risco de estar a votar uma lei não suficientemente robustecida e a abrir a possibilidade de, mudado o puzzle político, o país voltar atrás?
Se a lei for aprovada pelos deputados agora, nada impede que, com outra constituição da Assembleia da República, este diploma possa ser revertido. Mas, se tiver a chancela de um acto referendário, será muito difícil a qualquer Parlamento no futuro andar para trás sem ser também através de referendo. Relativamente à lei do aborto, houve propostas pontuais de revisão, mas se não tivesse havido um referendo, a lei, no seu conjunto, estaria periodicamente a ser questionada.
Actualmente, em Portugal, qual é o limite para manter um doente terminal vivo?
Há regras e guidelines sobre suspensão de tratamento em doentes terminais, mas tem que se compreender que cada doente é um doente e as guidelines são linhas gerais de actuação. Hoje é considerado boa prática, quando um doente está com horas ou minutos de vida e quando a reanimação não vai produzir nenhum efeito útil, os médicos instruírem uma ordem de não-reanimar. Se o doente entrar em paragem cardíaca, não é reanimado. Mas há sempre aqui um campo de manobra subjectivo, embora o princípio seja o mesmo; isto é, há limites, do ponto de vista conceptual, mas cada doente é um doente. A excessiva standardização de uma determinada prática pode prejudicar o doente e pode tornar a medicina num exercício insensível e até potencialmente irresponsável. As guidelines são por isso mesmo normas gerais determinando, em abstracto, qual o contexto médico em que é legítimo suspender ou abster de providenciar um tratamento que seja considerado extraordinário ou desproporcionado. Mas tem que existir sempre uma esfera íntima de actuação do médico que lhe permita interpretar adequadamente o alcance destas guidelines. Do mesmo modo que existem guidelines sobre sedação paliativa terminal que ajudam a determinar até que ponto é admissível administrar medicamentos para baixar o nível de consciência do doente terminal, como seja a obrigatoriedade de o tempo até à morte pela doença dever ser menor ou igual ao tempo até à morte por desidratação induzida pela sedação paliativa e o doente ou o seu representante legal prestarem consentimento válido e eficaz.