Por favor, falem mais baixo
Com a subida do salário mínimo e a correspondente compensação às empresas aparentemente solucionada, vale a pena lamentar o deplorável chorrilho de demagogia, disparates e intolerância com que este assunto foi debatido, principalmente nesses lugares protofascistas que são as redes sociais.
A “descrispação” configura uma bela ideia de país sob os auspícios do mandato de um Presidente-Rei e é pena que não exista. A opinião pública e publicada sobre a polémica subida do salário mínimo, a ainda mais polémica descida da Taxa Social Única e a relativamente polémica solução do Pagamento Especial por Conta e afins mostraram que, afinal, se o país não anda a incendiar carros em manifestações de rua, também está longe de ser capaz de alimentar debates abertos e serenos sobre alguns dos seus desafios cruciais. O radicalismo da argumentação dos que estão a favor da solução do Governo é equivalente ao dos que se perfilam firmes e hirtos ao lado das trincheiras do PSD, e neste balanço vê-se muito mais do que as naturais e saudáveis divergências em democracia. Vêem-se conversas rançosas, herméticas, amargas, a roçar a intolerância, que tantas vezes acabam no apontar o dedo em riste a putativos serventuários dos ricos ou a indigentes saudosistas dos sovietes de base.
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A “descrispação” configura uma bela ideia de país sob os auspícios do mandato de um Presidente-Rei e é pena que não exista. A opinião pública e publicada sobre a polémica subida do salário mínimo, a ainda mais polémica descida da Taxa Social Única e a relativamente polémica solução do Pagamento Especial por Conta e afins mostraram que, afinal, se o país não anda a incendiar carros em manifestações de rua, também está longe de ser capaz de alimentar debates abertos e serenos sobre alguns dos seus desafios cruciais. O radicalismo da argumentação dos que estão a favor da solução do Governo é equivalente ao dos que se perfilam firmes e hirtos ao lado das trincheiras do PSD, e neste balanço vê-se muito mais do que as naturais e saudáveis divergências em democracia. Vêem-se conversas rançosas, herméticas, amargas, a roçar a intolerância, que tantas vezes acabam no apontar o dedo em riste a putativos serventuários dos ricos ou a indigentes saudosistas dos sovietes de base.
Felizmente, Portugal é muito mais do que preconceitos, mas não nos iludamos. Mesmo sem Trump ou sem Marine Le Pen, o radicalismo sectário que recusa entender os argumentos dos outros vai fazendo por cá o seu caminho. A discussão acaba vezes de mais em gritaria, o esforço pelo compromisso esgota-se depressa na intransigência. Não vem mal nenhum ao mundo que o líder do PSD, Pedro Passos Coelho, tenha deixado escapar um “é exagerado” quando, com os microfones da Assembleia da República desligados, avaliou o aumento de 27 euros para o salário mínimo negociado em sede da Concertação Social. As regras da boa gestão económica recomendam que aumentos salariais se processem de acordo com o desempenho da economia no seu todo, com o aumento expectável da inflação e com o crescimento da produtividade. Ora, como bem se sabe, os valores atribuídos ao aumento resultam não de uma leitura rigorosa da situação económica, mas de um voluntarismo político expresso numa negociação entre o Governo e os partidos que o apoiam no Parlamento.
Mais, sabe-se pela situação financeira de milhares de empresas que qualquer acréscimo de custos pode significar o recuo perigoso do seu limiar de viabilidade. Portugal tem dos custos laborais mais baixos da Europa, mas, mesmo assim, há milhares de empresas que vivem desse factor competitivo. E não, ao contrário do que muitos adeptos do Bloco e do PCP sugerem, quem está mais ameaçado por este agravamento de custos não são as empresas imperiais, as que vivem protegidas pelo mercado interno, as que (felizmente) geram bons dividendos para os seus accionistas: são, pelo contrário, as pequeníssimas oficinas, os comércios, as empresas que lutam por pagar salários ao final do mês e manter as portas abertas. Dizer, por isso, que o aumento é “exagerado” não é uma coisa absolutamente sem sentido. Recear que o desemprego aumente não é a expressão de um desejo. É o reconhecimento da triste realidade da malha empresarial portuguesa, endividada, pouco competitiva, em luta permanente pela sobrevivência.
Mas, da mesma forma, não vem mal nenhum ao mundo dizer que um país que tem ambições de ser mais justo deve dispor de uma margem de voluntarismo político para sair em defesa dos que vivem em piores condições. O aumento do salário mínimo acima do crescimento do PIB, ou da inflação, justifica-se quando se sabe que há uma imensa camada de trabalhadores que vivem abaixo do limiar da pobreza. Trabalhadores cujos salários não lhes permitem alimentar de uma forma digna as suas famílias. Trabalhadores que escapam à catalogação enviesada que separa o mundo entre os que se empenham e os que se dedicam ao ócio ou a viver à custa do Estado. São milhares de homens e mulheres que cumprem todos os dias horários de trabalho, que se esforçam, que são competentes e dedicados, que têm responsabilidades e que, ainda assim, estão condenados pela indigência geral do país a manter uma luta permanente por uma vida digna. E não faz também mal nenhum defender um aumento extraordinário dos seus rendimentos quando se sabe que, nas últimas décadas, o salário mínimo tem perdido o seu valor relativo. Quando, comprovadamente, se sabe que a sua actualização não foi sequer capaz de acompanhar o crescimento (anémico) da inflação ou da produtividade.
E faz sentido não apenas à luz dos valores do Bloco ou do PCP, que nesta discussão não se cansaram de manifestar a sua hostilidade anacrónica ao mundo das empresas e se serviram da actualização do salário mínimo para lhes aplicar uma espécie de punição pela sua suposta vontade de explorar os pobres dos trabalhadores. Faz sentido enquadrar esta discussão no âmbito de um esforço colectivo e concertado, logo capaz de se conciliar com os princípios da democracia-cristã do CDS ou do progressismo social-democrata do PS e do PSD (dando de barato que Passos Coelho mantém a sua fé no ideário matricial do partido, como tantas vezes jurou em vésperas das eleições de 2015). E para que houvesse uma tentativa de conciliação entre os interesses gerais do país, fez-se o que devia ser feito, compensando as empresas pelo esforço extraordinário que lhes era exigido. E fez-se no lugar onde tudo isto devia ser discutido e aprovado: a Concertação Social.
Com a história da subida do salário mínimo e a correspondente compensação às empresas aparentemente solucionada, só vale a pena regressar ao tema para lamentar o deplorável chorrilho de demagogia, disparates e intolerância com que este assunto foi debatido, principalmente nesses lugares protofascistas que são as redes sociais. Não é caso para tanto. Tenham calma. Até porque este caso salário mínimo/TSU/PEC foi exemplar sobre as possibilidades do sistema político português para gerar soluções. Leia-se com atenção quem discorda, atendam que Portugal é um país com altos níveis de protecção laboral no quadro da OCDE e note-se que a política dos jargões e das trincheiras gera meias verdades e meias mentiras que impedem o país de saltar definitivamente de um modelo de redistribuição da pobreza para um lugar onde a riqueza existe para ser distribuída.
A verdade, como tanto na vida, estará algures entre os extremos do radicalismo que ao mínimo sopro se levantam e tendem a exaurir o país de um dos seus principais activos nestes tempos turbulentos que vivemos: a amenidade da sua paz social e o seu clima de tolerância. Discutir e divergir com assertividade não implica que tratemos como imbecis os que discordam de nós. Falem mais baixo.