Marcelo visita idosos que já só vêem a vida passar pela janela

Da Rua Augusta à casa de Clara são 83 degraus escuros e sem elevador. Os olhos azuis embaciados de Guilhermina parecem ter-se esquecido do que é sorrir. Esta quarta-feira, o Presidente dos afectos subiu as escadas e entrou-lhes vida adentro.

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Leonel Gomes não fala. Perdeu a mobilidade e a voz no último dos três AVC já lá vão 14 anos. Quando Marcelo Rebelo de Sousa entrou na sua casa, naquele 4.º andar da Rua da Madalena sem elevador, Leonel, 83 anos, estava na sua mudez ausente, virado para a varanda de onde se vê o elevador de Santa Justa e os antigos Armazéns do Chiado. Não deu mostras de grande entusiasmo no início da inesperada visita, mas quando o chefe de Estado tirou da estante o símbolo do Futebol Clube do Porto, Leonel reagiu, quase sorrindo, quase falando. Quase abraçou o Presidente quando ele se despediu, dizendo-lhe que um portista tem de ter força.

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Leonel Gomes não fala. Perdeu a mobilidade e a voz no último dos três AVC já lá vão 14 anos. Quando Marcelo Rebelo de Sousa entrou na sua casa, naquele 4.º andar da Rua da Madalena sem elevador, Leonel, 83 anos, estava na sua mudez ausente, virado para a varanda de onde se vê o elevador de Santa Justa e os antigos Armazéns do Chiado. Não deu mostras de grande entusiasmo no início da inesperada visita, mas quando o chefe de Estado tirou da estante o símbolo do Futebol Clube do Porto, Leonel reagiu, quase sorrindo, quase falando. Quase abraçou o Presidente quando ele se despediu, dizendo-lhe que um portista tem de ter força.

Era a primeira de quatro visitas a idosos do centro de Lisboa que o Presidente da República fez esta quarta-feira, cumprindo uma promessa feita há meses à Associação Mais Proximidade Melhor Vida (AMPMV), uma IPSS que dá afectos e assistência a 120 idosos que vivem sozinhos ou com dificuldades numa das zonas degradadas da cidade. E em todas Marcelo foi Marcelo: descontraído, próximo, surpreendente, com conversa fácil e sempre a tentar conquistar um sorriso, como se terá habituado a ser nos anos em que fez voluntariado em cuidados paliativos.

“Venho cumprir esta promessa porque eu já conhecia esta realidade desde o tempo em que era autarca, mas a população está muito mais envelhecida. Hoje, em Lisboa como em tantos outros lugares, há pessoas que não podem sair de casa e vivem em situações quase sub-humanas”, diz o chefe de Estado à saída da casa de Leonel e Regina.

Lisboa perdeu população e ao mesmo tempo envelheceu, sublinha o chefe de Estado. Mas, na sua opinião, para estas pessoas o apoio domiciliário é “absolutamente fundamental” e a melhor solução, porque as mantém “na casa onde sempre viveram, onde têm as suas coisas”. “Vão sair para onde?”, questiona.

Daí a importância das redes de apoio: autarquias, Segurança Social, misericórdias, Santa Casa e IPSS. Cada uma com respostas diferentes. “A resposta a estas situações depende muito de associações destas, de instituições que fazem isto todos os dias, e de muitos voluntários. É fundamental apoio ao sector social”.

A AMPMV tem, por exemplo, uma “gestora de casa” que acaba por se tornar quase um membro da família e vai procurando as respostas concretas de que cada idoso necessita: saúde, alimentação, higiene, pequenas reparações domésticas. E realiza os sonhos possíveis, que afinal são simples, como comer um pastel de Belém ou ir a Fátima cumprir uma promessa antiga, conta a presidente, Maria de Lurdes Miguel.

Regina Gomes, a mulher de Leonel, tem os mesmos 83 anos mas todos os dias ainda sobe e desce as escadas sem luz para passear o cão, fazer compras, conversar com amigas. Às vezes participa nos convívios que a AMPMV faz mensalmente para intervalar a solidão dos poucos que ainda conseguem sair de casa. Agora que a máquina de lavar roupa avariou, espera que a associação arranje um técnico que a vá arranjar.

À D. Guilhermina, uma senhora de olhos azuis embaciados que vive sozinha num minúsculo primeiro andar das Portas de Santo Antão, agora que o marido está internado, conseguiram a cadeira de rodas de que precisava depois de ficar sem parte de um pé por causa da diabetes. As necessidades não acabam. “Se puder ponha aí na sua reportagem que precisamos de dinheiro, precisamos de apoios”, diz ao PÚBLICO Ângela Valença, da direcção desta IPSS que agora está a tentar minimizar os riscos de incêndio nestas casas degradadas.

Marcelo continua a visita. Sobe os 83 degraus para a casa de Clara Bicho da Silva e aqui ouve mais do que fala. Aquela mulher do Minho, 84 anos, deixa-o sem hipótese, tantas são as histórias que tem para contar e que até já estão em livro. De como trabalhou no volfrâmio, de como foi “pé descalço”, de como chegou a Lisboa e por ali ficou, na Rua Augusta, onde vê o sol da varanda e conversa com a vizinha.

Quando volta à rua, Marcelo tinha à sua espera uma pequena multidão multicultural. Dali até à Mouraria, perdeu-se a conta das selfies, dos abraços, dos acenos, das nacionalidades, das cores das gentes. Marcelo a ser Marcelo, os seguranças já nem tentam evitar o inevitável.

Chega à última casa já debaixo de chuva, ri-se e faz rir Anastácia e Primo, ela cega, 75 anos, ele quase surdo aos 90. Falam-lhe do neto que foi aluno dele, Marcelo pede o número de telefone e liga-lhe: “Miguel, adivinhe quem fala”. O jovem advogado nem queria acreditar. Nem o casal Fernandes acreditava até o Presidente lhes entrar mesmo pela sala adentro. Ontem foi assim. Mas o roteiro social vai continuar nas próximas duas semanas em Lisboa, (talvez) num lugar perto de si.