Como é que um filme tão de autor acaba nomeado para tantos Óscares?
Moonlight é um filme que se coloca mais do lado do cinema de autor contemporâneo do que da produção corrente americana em modo indie: corre riscos formais, recusa a formatação convencional do “filme de tema”.
Há duas maneiras, ambas igualmente válidas, de ler a segunda longa-metragem do norte-americano Barry Jenkins, depois de uma estreia mais do que promissora com Medicine for Melancholy (IndieLisboa 2009). A primeira — a mais óbvia e, por uma vez, não a mais redutora — é a de ver Moonlight como espelho possível de uma vivência social especificamente norte-americana: a de um miúdo negro de Miami que sente que não se encaixa no mundo à sua volta mas que se questiona se há alguma maneira de escapar à categorização, de viver a vida que quer e não a que lhe está determinada. A segunda maneira é extrapolar da especificidade americana para projectar as experiências de Chiron numa tela mais alargada, global mesmo: Moonlight passa a ser o espelho dos não-alinhados, daqueles que procuram impor uma personalidade a um mundo que teimosamente os quer forçar a escolher um caminho predefinido.
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Há duas maneiras, ambas igualmente válidas, de ler a segunda longa-metragem do norte-americano Barry Jenkins, depois de uma estreia mais do que promissora com Medicine for Melancholy (IndieLisboa 2009). A primeira — a mais óbvia e, por uma vez, não a mais redutora — é a de ver Moonlight como espelho possível de uma vivência social especificamente norte-americana: a de um miúdo negro de Miami que sente que não se encaixa no mundo à sua volta mas que se questiona se há alguma maneira de escapar à categorização, de viver a vida que quer e não a que lhe está determinada. A segunda maneira é extrapolar da especificidade americana para projectar as experiências de Chiron numa tela mais alargada, global mesmo: Moonlight passa a ser o espelho dos não-alinhados, daqueles que procuram impor uma personalidade a um mundo que teimosamente os quer forçar a escolher um caminho predefinido.
Seja qual for a maneira escolhida de ler o filme, a vitória de Moonlight — e não é dispiciendo que assim seja — é que nada disto se sobrepõe à arte de filmar, isto é, de fazer cinema. Mais do que narrar uma história, Barry Jenkins envolve-nos nela, com os movimentos quase baléticos de steadycam do fabuloso plano de abertura, antes de prosseguir com uma estrutura narrativa em três actos que correspondem a três tempos da vida da personagem (interpretado por três actores diferentes consoante a sua idade), onde tudo o que acontece no intervalo é elidido com uma elegância significativa, deixando ao espectador o trabalho de coligir as pistas e preencher o vazio. O próprio título do filme não tem nada de aleatório, embora seja mais alusivo do que descritivo — correspondendo, também, a uma estrutura formal que vê a paleta de cores da câmara de James Laxton escurecer e a noite cair aos poucos sobre a história à medida que nos aproximamos do final.
Este é um filme que se coloca muito mais do lado do cinema de autor contemporâneo do que da produção corrente americana em modo indie: Moonlight corre riscos formais, recusa a formatação convencional do “filme de tema”. É a história de um indivíduo apanhado num sistema que lhe pede que represente um papel quando tudo o que ele quer é viver a sua vida — e o que interessa a Barry Jenkins é o indivíduo, não o sistema. Como é que isto é o grande concorrente do inofensivo La La Land nos Óscares 2017 (mesmo que, por uma vez, o mereça) é explicável apenas pela correcção política de que os Óscares tanto gostam. Mas como sem os Óscares dificilmente o chegaríamos a ver entre nós, impõe-se um agradecimento.