Proposta do Governo não garante natureza gratuita das "barrigas de aluguer"
Num parecer muito crítico, Conselho de Ética contesta proposta de regulamentação do Governo sobre gestação de substituição. Que nada diz sobre “a natureza não comercial do contrato” com as gestantes.
O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) acaba de pôr em causa, pela segunda vez, a legislação que abre porta em Portugal ao nascimento de crianças através da gestação de substituição — as chamadas “barrigas de aluguer”. Num parecer muito crítico, agora sobre o projecto de regulamentação da lei que foi aprovada pelo Parlamento no Verão passado, os conselheiros enumeram uma série de objecções éticas. E dizem que nada nas normas propostas garante a “natureza gratuita” dos contratos que vierem a ser celebrados.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) acaba de pôr em causa, pela segunda vez, a legislação que abre porta em Portugal ao nascimento de crianças através da gestação de substituição — as chamadas “barrigas de aluguer”. Num parecer muito crítico, agora sobre o projecto de regulamentação da lei que foi aprovada pelo Parlamento no Verão passado, os conselheiros enumeram uma série de objecções éticas. E dizem que nada nas normas propostas garante a “natureza gratuita” dos contratos que vierem a ser celebrados.
O CNECV critica o facto de o projecto não incluir normas que “permitam garantir a natureza gratuita do negócio”. O que está previsto na lei aprovada e publicada em Agosto é que as mulheres "emprestam" a barriga — e isto só pode acontecer em situações excepcionais, como a de casais em que há completa impossibilidade de a mulher gerar uma criança, por não ter útero, por exemplo.
A lei determina que não podem ser pagas por isso, ao contrário do que acontece noutros países, sendo apenas ressarcidas das despesas durante o processo. Contudo, a proposta de regulamentação que o CNECV recebeu é omissa sobre “a garantia da natureza não comercial do contrato”, tal como não são referidos os direitos das gestantes quanto às escolhas sobre o seguimento da gravidez.
Outra das objecções prende-se com a regra que prevê que, mesmo quando os contratos de gestação forem considerados nulos, as crianças sejam sempre “tidas como filhas dos respectivos beneficiários”. No relatório do CNECV, que deu origem ao parecer aprovado por unanimidade este mês, lê-se: “Não é aceitável, do ponto de vista ético, que alguém possa obter, através de um contrato de gestação em violação da lei, os mesmos efeitos que alcançaria com a celebração de um contrato que observasse as prescrições legais. Tal solução não dissuadiria as práticas ilegais e proporcionaria ocasiões de exploração das mulheres gestantes que se pretendem limitar ao máximo.”
O parecer, que não é vinculativo, foi pedido pelo secretário de Estado Adjunto e da Saúde, Fernando Araújo, numa altura em que a lei aguarda regulamentação — só aí a gestação de substituição se pode tornar uma possibilidade real. “A minha preocupação é que, apesar de haver uma violação da lei, os infractores possam vir a beneficiar dos seus efeitos e ficar com a criança. Em teoria, o que está definido pode permitir até que pessoas condenadas a penas de prisão fiquem com a criança. Não conheço outro caso em que alguém que viola a lei pode beneficiar disso”, explicou ao PÚBLICO um dos conselheiros, André Dias Pereira. Tal como está, nota o jurista, o projecto pode abrir porta “a uma instrumentalização das mulheres e criar um comércio de barrigas de aluguer” em Portugal.
Presidente já vetou uma vez
O CNECV questiona ainda facto de a entidade que regula a actividade das unidades que realizam as técnicas necessárias à gestação de substituição — o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA) — ser a mesma que serve de mediadora de eventuais conflitos que possam surgir.
Esta é a segunda vez que o conselho põe em causa a legislação das “barrigas de aluguer”. Num primeiro parecer de Março de 2016, dessa vez à proposta de decreto-lei apresentada pelo Bloco de Esquerda, considerou que não estavam “salvaguardados os direitos da criança a nascer e da mulher gestante”, nem era “feito o enquadramento adequado do contrato de gestação”.
Foi este entendimento que, aliás, deu origem ao primeiro veto do Presidente da República, em 7 de Junho. Marcelo Rebelo de Sousa justificou a devolução do diploma ao Parlamento, alegando lacunas legais que podiam desproteger a criança ou provocar conflitos entre os pais e gestante. A lei tinha sido aprovada em 13 de Maio na Assembleia da República, com os votos do PS, BE, PEV e PAN e 24 deputados do PSD. A versão final foi aprovada em Julho.
O CNECV nota agora que o projecto de regulamentação, que também passará pelo Presidente antes de ser publicado, vem acrescentar “condições de exclusão de candidatas a gestantes de substituição”, ao definir que “preferencialmente” a gestante deve já ter tido um filho. E não encontra justificação para o estabelecimento de uma idade limite para as beneficiárias — “49 anos e 364 dias” —, sem que, em simultâneo, se estabeleça “qualquer limite de idade para os homens beneficiários, o que será tanto mais relevante se os gâmetas usados deles provierem”.
Mas há várias recomendações que foram levadas em conta, admitem os conselheiros. É o caso do recurso obrigatório aos gâmetas de pelo menos um dos beneficiários, não podendo a gestante de substituição ser dadora de um ovócito, e de não ser possível impor-lhe restrições de comportamento. A gestante só poderá ser “barriga de aluguer” duas vezes.