Carta aberta a Marcelo Rebelo de Sousa
A propensão para “ir a todas” poderá conduzi-lo a um excesso de exposição prejudicial à distância institucional que se espera de um Presidente e à autenticidade da sua relação afectiva com os portugueses.
Senhor Presidente e caro amigo,
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Senhor Presidente e caro amigo,
Somos ambos homens de afectos e, talvez por isso, fui particularmente sensível à dimensão afectuosa que soube emprestar à sua Presidência ao longo deste primeiro ano. Pelo conhecimento que tenho de si, durante mais de uma década de convívio no Expresso, sei que essa dimensão é genuína e corresponde ao lado mais espontâneo da sua personalidade. Os portugueses precisam dessa proximidade humana, depois da frieza do seu antecessor, para se sentirem mais encorajados a enfrentar as dificuldades quotidianas num país pequeno e vulnerável como o nosso. Dificuldades agora ensombradas pela perspectiva de um mundo mais perigoso e imprevisível introduzida pela eleição de Trump e as primeiras medidas – entre o errático, o irresponsável e o odioso – anunciadas freneticamente na sua semana inaugural como Presidente.
Afinal, contrariando o que tanta gente profetizou e insiste ainda em manter, Trump propõe-se fazer exactamente o que anunciara na campanha, até porque o seu egocentrismo boçal e alucinado não lhe permite perceber a diferença entre a realidade dos factos e os “factos alternativos” em que assenta a sua visão da América e do mundo.
O seu primeiro ano em Belém, caro Marcelo, coincide com a primeira semana de Trump na Casa Branca e isso leva-nos a reflectir sobre o interminável oceano que nos separa desta nova e ameaçadora América. A propósito, percebe-se que você e o nosso ministro dos Negócios Estrangeiros tenham evitado declarações hostis visando a nova Administração americana, o que seria ridículo tendo em conta a nossa dimensão e influência face à maior potência mundial. Mas talvez fosse também de evitar outra forma de ridículo, que apenas acentua a nossa pequenez: afirmarmos não ter quaisquer reservas relativamente à nova Administração Trump, como fez Augusto Santos Silva, ou simplesmente anunciar, como você fez, ser ainda muito cedo para avaliar a situação. Para dizer isto, com um misto de reverência e calculismo beato, mais vale ficarmos calados na nossa insignificância. Outra hipótese: rendermo-nos à cegueira negacionista dos que, rasurando as proclamações extremistas, xenófobas e autoritárias de Trump, acusam os seus opositores de o hostilizarem.
Esse oceano que nos separa da América induz-nos também na ilusão de vivermos numa ilha, com os nossos problemas da TSU ou do PEC para compensar o salário mínimo, as nossas ridículas crispações partidárias, as nossas “quadraturas do círculo” orçamentais e a sobrevivência da “geringonça” – um termo que, só por si, pacificamente adoptado por quase toda a gente, resume a pequenez da “política à portuguesa”. Ora, creio que reside aí o principal equívoco da sua intervenção presidencial, ao imiscuir-se em excesso nas querelas partidárias e institucionais, com um protagonismo que compromete a indispensável gravitas inerente ao seu cargo.
Uma coisa são os afectos e a proximidade com os cidadãos, outra é essa tendência para ser árbitro e jogador ao mesmo tempo. E a confusão de géneros entre uma coisa e outra ameaça comprometer a identificação afectiva que os portugueses têm estabelecido consigo. Se reconheço como genuína a sua afectividade, também não ignoro a sua tentação pelo jogo político-partidário que você tende por vezes a confundir com uma legítima preocupação de estabilidade. A propensão para “ir a todas” – como aconteceu com a sua descabida intervenção no caso da Cornucópia – poderá conduzi-lo a um excesso de exposição prejudicial à distância institucional que se espera de um Presidente e à autenticidade da sua relação afectiva com os portugueses.
Essa relação é mais necessária do que nunca nestes tempos em que o mundo treme e não podemos viver na ilusão provinciana e perigosa de um casulo insular. E neste mundo da pós-verdade “trumpista” precisamos também de uma âncora sólida na relação com a realidade, a mais próxima e a mais global, uma orientação esclarecida, uma bússola que nos ajude a atravessar a tempestade.
Afectuosamente seu,
Vicente