Pirâmides, futebóis e ortografia
A haver algo em comum entre o futebol e o AO90, é isto: são ambos feitos com os pés. De resto, um une milhões e o outro divide-os.
Em 1990, quando perguntaram ao poeta Mário Cesariny o que pensava das mudanças ortográficas que se anunciavam, respondeu com notável ironia: “Considero que o Acordo Ortográfico é um grande problema para brancos, negros e ameríndios. Proponho por isso que toda a gente aprenda latim, o fale em suas casas – e em público fale como quiser” (PÚBLICO, 24/12/1990). Depois dele, muitas vozes se levantaram: contra, a favor, assim-assim, talvez, tem-te-não-caias, haja lei e pronto. Deu no que se viu, e o tema ainda hoje nos ocupa e inquieta de igual modo. Seja como for, esta semana começou com um Manifesto de Cidadãos Contra o Acordo Ortográfico (divulgado na íntegra no PÚBLICO online, com um lote heterogéneo e bem significativo de assinaturas) e vai fechar com a divulgação da anunciada proposta da Academia das Ciências de Lisboa sobre o tema, proposta que vai esta quinta-feira a votos entre os membros efectivos da ACL. No Parlamento, onde o AO90 provoca súbitos ataques de surdez quando dele se fala, foi aprovada na Comissão de Cultura (por proposta do deputado José Carlos Barros, do PSD) a criação de um grupo de trabalho para avaliar o impacto da aplicação do AO90 em Portugal (o PS absteve-se) e a audição, por proposta do BE, do presidente da Academia das Ciências. Aqui, o voto foi por unanimidade.
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Em 1990, quando perguntaram ao poeta Mário Cesariny o que pensava das mudanças ortográficas que se anunciavam, respondeu com notável ironia: “Considero que o Acordo Ortográfico é um grande problema para brancos, negros e ameríndios. Proponho por isso que toda a gente aprenda latim, o fale em suas casas – e em público fale como quiser” (PÚBLICO, 24/12/1990). Depois dele, muitas vozes se levantaram: contra, a favor, assim-assim, talvez, tem-te-não-caias, haja lei e pronto. Deu no que se viu, e o tema ainda hoje nos ocupa e inquieta de igual modo. Seja como for, esta semana começou com um Manifesto de Cidadãos Contra o Acordo Ortográfico (divulgado na íntegra no PÚBLICO online, com um lote heterogéneo e bem significativo de assinaturas) e vai fechar com a divulgação da anunciada proposta da Academia das Ciências de Lisboa sobre o tema, proposta que vai esta quinta-feira a votos entre os membros efectivos da ACL. No Parlamento, onde o AO90 provoca súbitos ataques de surdez quando dele se fala, foi aprovada na Comissão de Cultura (por proposta do deputado José Carlos Barros, do PSD) a criação de um grupo de trabalho para avaliar o impacto da aplicação do AO90 em Portugal (o PS absteve-se) e a audição, por proposta do BE, do presidente da Academia das Ciências. Aqui, o voto foi por unanimidade.
Neste pequeno intervalo entre a rejeição total do dito e o seu eventual “aperfeiçoamento” (se é que tal será possível, ou desejável, e em que moldes), façamos como nas sessões de cinema antigas: peguemos em duas pequenas histórias a propósito, enquanto o “filme” principal não recomeça.
A primeira tem a ver com um país: Egipto. Perdeu, como se sabe, o P na liquidação de consoantes de 1990. Se no Brasil se escrevia assim porque não havia de ser igual em Portugal? Bem: no Brasil, como em Portugal, todas as palavras derivadas de Egipto mantêm o P; depois, há outro pequeno senão: é que Egipto, amputado para Egito, não é o único país cuja grafia difere entre Portugal e o Brasil. Há outros 24 (eram 25, com o Egipto). Basta conferir na lista dos 193 países-membros da ONU (primeiro vem, aqui, a grafia brasileira e depois a portuguesa): Armênia, Arménia; Belarus, Bielorrússia; Benin, Benim; Burkina Fasso, Burkina Faso; Catar, Qatar; Cingapura, Singapura; Coréia do Norte, Coreia do Norte; Coréia do Sul, Coreia do Sul; Eritréia, Eritreia; Eslovênia, Eslovénia; Estônia, Estónia; Iêmen, Iémen; Irã, Irão; Letônia, Letónia; Macedônia, Macedónia; Malauí, Malawi; Mônaco, Mónaco; Polônia, Polónia; Quênia, Quénia; Romênia, Roménia; Timor Leste, Timor-Leste; Turcomenistão, Turquemenistão; Vietnã, Vietname; Zimbabué, Zimbabwe. Mesmo que o acento agudo tenha desaparecido das Coreias ou da Eritreia (tal como foi abolido no Brasil, por via do AO, em idéia ou assembléia), ainda sobravam 21 grafias diferentes para 21 países! E isto sem falar noutras diferenças análogas, não em países mas em cidades, que ninguém mudou nem faria qualquer sentido mudar: Amsterdã, Amsterdão; Copenhague, Copenhaga; Madri, Madrid; Moscou, Moscovo; Teerã, Teerão; etc. Ou polonês por polaco, por exemplo. Razões para mudar apenas Egipto? Talvez por haver, entre os negociadores do acordo, um admirador da obra de Egito Gonçalves; ou por estar ali à mão um catálogo de viagens com pirâmides. Um dia saberemos.
A segunda história é, porventura, já muito conhecida mas é irresistível. Porque nesta discussão de afinar grafias há quem reivindique a necessidade de uniformizar até as áreas técnicas. Sim? Tentem o futebol. No Brasil, desporto é esporte; equipa é equipe ou time; chuto é chute; golo é gol; guarda-redes é goleiro; defesa central é zagueiro; médio é volante; avançado é atacante; avançado-centro é centroavante; jornada é rodada; pontapé de baliza é tiro de meta; pontapé de canto é tiro de esquina; meias-finais são semifinais; poste é pau; melhores marcadores são artilheiros; relvado é gramado. Como é possível, então, jogar futebol assim? A resposta foi dada há décadas: joga-se e pronto.
O que tem o dito "desporto-rei" a ver com o AO90? Isto: são ambos feitos com os pés. Um com arte, outro sem ela.