A independência da regulação da comunicação social
É no reforço da garantia da independência do regulador face às empresas de media que deveria focar-se a reflexão do poder legislativo, quando se entender aperfeiçoar o modelo de regulação dos media em Portugal.
A eleição pela Assembleia da República de quatro dos cinco dirigentes da ERC [Entidade Reguladora da Comunicação], mesmo exigindo-se uma maioria qualificada de 2/3 dos deputados, tem sido vista como uma criticável partidarização desta entidade reguladora. Acresce que, ao invés de cumprirem a lei, que determina que sejam os quatro eleitos pelo Parlamento a cooptar o quinto (que não será necessariamente o Presidente), em 2006 e 2011, quando se iniciaram os mandatos que o regulador já teve até agora, PS e PSD escolheram esse quinto membro antes do Parlamento votar os outros quatro e acordaram mesmo que ele deveria ser o presidente.
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A eleição pela Assembleia da República de quatro dos cinco dirigentes da ERC [Entidade Reguladora da Comunicação], mesmo exigindo-se uma maioria qualificada de 2/3 dos deputados, tem sido vista como uma criticável partidarização desta entidade reguladora. Acresce que, ao invés de cumprirem a lei, que determina que sejam os quatro eleitos pelo Parlamento a cooptar o quinto (que não será necessariamente o Presidente), em 2006 e 2011, quando se iniciaram os mandatos que o regulador já teve até agora, PS e PSD escolheram esse quinto membro antes do Parlamento votar os outros quatro e acordaram mesmo que ele deveria ser o presidente.
Este claro incumprimento da legislação, que lamentavelmente ameaça agora repetir-se, contribuiu negativamente para o prestígio e para a imagem de independência do regulador. Aliás, também por isso, não falta quem entenda que não deveria ser o Parlamento a escolher os dirigentes da ERC, ou pelo menos a sua maioria, devendo antes essa tarefa ser atribuída, total ou parcialmente, às empresas do setor e aos jornalistas.
A independência dos reguladores constitui um dos aspetos essenciais das recomendações das instâncias europeias sobre a regulação dos media. Não faltam igualmente sobre este tema estudos académicos produzidos em várias universidades europeias. Ora, quer nos textos europeus, quer nas teses académicas, não é colocada em causa a legitimidade ou a independência dos reguladores designados pelos parlamentos. Aliás, na Europa, 4/5 dos reguladores dos media têm dirigentes escolhido pelos parlamentos, a quem é justamente reconhecida uma inultrapassável legitimidade democrática. E um quinto dos reguladores tem mesmo dirigentes designados pelos governos, casos, entre outros, da Espanha, Áustria, Irlanda, Luxemburgo e Suíça. Em nenhum caso, são as empresas de media ou os jornalistas quem os designa. Trata-se, afinal, de regulação, de hétero regulação e não de autorregulação.
A designação parlamentar dos dirigentes da ERC tem afetado a sua independência, nomeadamente face ao poder político? Não é isso que demonstra uma análise às deliberações aprovadas pela ERC nos seus quase 11 anos de existência.
Os dados estatísticos relativos ao mandato a terminar do atual Conselho Regulador indicam que, até ao final de 2016, cerca de 89% das perto de 2500 deliberações relativas a queixas ou processos no âmbito das atribuições e competências da ERC foram aprovadas por unanimidade. Uma percentagem semelhante verifica-se se cingirmos apenas a amostra a queixas envolvendo forças políticas, autarquias ou personalidades do mundo político-partidário, incluindo dos dois principais partidos. Se observarmos essas queixas, bem como outras mais mediáticas com ou sem uma forte carga política, desde o início da ERC em 2006, constata-se que não existe qualquer alinhamento partidário ou político ideológico. Recordo, entre outros, os processos contra o Jornal Nacional da TVI, contra o Correio da Manhã relativo a José Sócrates, o processo aberto com base em artigos do jornalista Nuno Saraiva no Expresso e de Eduardo Cintra Torres sobre a independência da comunicação social face ao Governo e as queixas de Passos Coelho contra o PÚBLICO e do deputado Luís Montenegro contra a revista Nova Gente. Em grande parte destes processos, a deliberação foi mesmo unanime.
Nos quase 11 anos de existência da ERC pode ser assinalada uma única exceção: a deliberação, em junho de 2012, por queixa do jornal PÚBLICO contra o então ministro Miguel Relvas, em que a divisão entre os dirigentes da ERC correspondeu à sua origem partidária, tendo o presidente desempatado.
A independência do regulador face ao poder ou aos partidos políticos decorre, de facto, de várias razões: a eleição por dois terços dos votos pelo Parlamento e não por sufrágio proporcional, que reforçaria o vínculo partidário de cada membro; a inamovibilidade e a não renovação dos mandatos; a exigência que a lei impõe relativamente ao perfil de idoneidade e de competência profissional dos dirigentes da ERC; os níveis de incompatibilidade com o exercício de cargos públicos; e, matéria nada despicienda, a circunstância de as deliberações terem origem em propostas elaboradas pelas estruturas e quadros do regulador, que conjugam uma qualidade técnica de excelência e uma indesmentível independência com o conhecimento da doutrina e da jurisprudência da ERC, forjadas em milhares de processos analisados nos últimos onze anos.
Ganharia o regulador em ter na sua direção elementos indicados pelos regulados – empresas e jornalistas? É verdade que a regulação visa a garantia da liberdade da comunicação social face aos poderes político e económico, mas é demasiado desvalorizada outra vertente essencial – a defesa dos direitos dos cidadãos face aos media. A presença de empresas e (ou) de jornalistas colocaria outras questões. Por exemplo, como assegurar a independência de um concurso público para novos operadores de rádio ou televisão? Porque estabelecer uma representação obrigatória de jornalistas quando grande parte das deliberações da ERC tem a ver com matérias (concentração e transparência da propriedade das empresa de media, conteúdos de programação, registo de empresas, fiscalização das quotas de música portuguesa ou de quotas europeias de programação televisiva, entre muitas outras) que não dizem respeito à sua atividade profissional?
Empresas e jornalistas têm um longo caminho a percorrer no domínio da autorregulação: depois do importante papel de alguns provedores dos leitores, nenhum órgão de informação tem agora esse cargo, à exceção da RTP onde a lei os impõe; existem poucos conselhos de redação; o papel do Conselho Deontológico e da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista tem sido desvalorizado pelos próprios jornalistas.
Aliás, em meu entender – e digo-o depois de mais de cinco anos no exercício do cargo de membro do Conselho Regulador da ERC - é no reforço da garantia da independência do regulador face às empresas de media que deveria focar-se a reflexão do poder legislativo, quando se entender aperfeiçoar o modelo de regulação dos media em Portugal.
Alberto Arons de Carvalho, professor universitário e vice-presidente do Conselho Regulador da ERC