Distribuição das cantinas sociais não corresponde à dos pobres

Relatório de avaliação das cantinas sociais feito pela Segurança Social arrasa medida e recomenda que termine, mas apenas quando estiver disponível um instrumento alternativo de apoio alimentar.

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O distrito do Porto, com elevadas taxas de pobreza e de exclusão social, é paradigmático. Só 20% das necessidades identificadas pelos serviços da Segurança Social foram satisfeitas Paulo Pimenta

Está pronto o relatório de avaliação às cantinas sociais pedido pela secretária de Estado da Segurança Social, Cláudia Joaquim. Indica que não se distribuem de acordo com critérios de carência económica, que o número de refeições é excessivo nuns sítios e deficitário noutros, que não há controlo. E recomenda que aquela medida de emergência alimentar termine.

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Está pronto o relatório de avaliação às cantinas sociais pedido pela secretária de Estado da Segurança Social, Cláudia Joaquim. Indica que não se distribuem de acordo com critérios de carência económica, que o número de refeições é excessivo nuns sítios e deficitário noutros, que não há controlo. E recomenda que aquela medida de emergência alimentar termine.

A avaliação — coordenada pelo Gabinete da Secretária de Estado, elaborada por técnicos da Direcção-Geral de Segurança Social, do Gabinete de Estratégia e Planeamento do Ministério do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social e do Instituto de Segurança Social — faz-se em três momentos. É como se os técnicos olhassem para três radiografias: Outubro de 2014, Abril de 2015 e Novembro de 2015.

No relatório — a que o PÚBLICO só parcialmente teve acesso e que seguiu nesta segunda-feira para Assembleia da República, ficando disponível nesta terça — sobressai a divergência entre a distribuição territorial das cantinas sociais e a distribuição territorial de população em situação de carência económica (rendimento mensal de valor igual ou inferior à pensão social, isto é, 201,53 euros).

Mais de metade dos municípios do continente tem uma ou duas cantinas sociais. Em 21 há mais beneficiários desse apoio do que de rendimento social de inserção. Há casos em que o número de cantinas é o dobro ou o triplo do estimado pelos serviços de segurança social como necessário.

O estudo não refere motivo para tal disparidade. Não era isso que era pedido, mas “fica subjacente que a distribuição das cantinas sociais acabou por ser mais decidida pela oferta, pela capacidade instalada em fornecer refeições, do que pela procura”, nota Cláudia Joaquim.

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O distrito do Porto, com elevadas taxas de pobreza e de exclusão social, é paradigmático. Só 20% das necessidades identificadas pelos serviços da Segurança Social foram satisfeitas. Nunca ultrapassou as 3800 refeições por dia. Distritos como Faro ou Santarém  ultrapassaram as 4200.

De acordo com o estudo, o número de refeições servidas “foi sempre inferior ao de refeições protocoladas”. As taxas de execução são esclarecedoras: “Cerca de 41% em 2012, 68% em 2013, 83% em 2014 e 87% em 2015.”

“Mesmo em 2015, ano de ajustamento, ficaram por servir um número médio diário de mais de seis mil refeições protocoladas”, lê-se. A despesa, essa, esteve sempre a subir: “Cerca de 5 milhões, em 2012, 28 milhões, em 2013, 37 milhões, em 2014 e 38 milhões, em 2015.”

O recurso a cantinas sociais sempre foi pensado como uma medida provisória. Fazia parte do Programa de Emergência Social. Vigoraria de Abril de 2012 a Dezembro de 2014. Quando a anunciou, o então ministro da Segurança Social, Pedro Mota Soares, explicou que o objectivo era assegurar que ninguém ficaria sem acesso a pelo menos duas refeições já confeccionadas por dia.

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Os serviços tinham estimado as necessidades em matéria de número de cantinas e de refeições. Havia 62 estruturas na Rede Solidária de Cantinas Sociais. Seriam necessárias 947. Com uma dotação orçamental de 50 milhões de euros, seriam abrangidas 65 mil pessoas.  

Logo no primeiro ano, foram assinados 584 protocolos. O pico foi alcançado em 2014, com 859 cantinas. O número de refeições diárias contratualizadas com as instituições era então de 49.024. O Instituto de Segurança Social não sabia dizer quem as recebia, sequer quantas pessoas.

Cláudia Joaquim já então manifestava dúvidas sobre a medida. Quais os critérios de selecção das instituições que assinaram protocolo com o Estado? Como se determinou a comparticipação pública? Como era monitorizada a medida, por exemplo, no que concerne ao número de beneficiários?

Os critérios de acesso pareciam-lhe, então, “relativamente genéricos”. Podia analisar protocolos que mencionavam pessoas desempregadas, com baixos salários ou doenças crónicas, mas não havia tabela. Cada instituição determinava se uma família era ou não apoiada.

Quando assumiu o lugar de secretária de Estado da Segurança Social, no final de 2015, decidiu prolongar os contratos que garantem o financiamento das cantinas sociais por mais seis meses. Queria saber quem eram os beneficiários e que impacte teria o fim da medida nas suas vidas.

A avaliação demorou. O sistema de recolha de informação é de “enorme morosidade de tratamento”, refere o documento. “Assenta numa recolha mensal de dados de execução em folhas de Excel”. Só em Setembro de 2014 passou a ser exigido que as misericórdias e as instituições particulares de Solidariedade Social, que assinaram protocolos com a Segurança Social, indicassem o número de identificação de Segurança Social dos beneficiários no reporte da informação mensal.

O relatório indica que o número de beneficiários foi aumentando: “Cerca de 31 mil em Outubro de 2014, 34,5 mil em Abril de 2015 e 33 mil em Novembro de 2015.” Durante aquele ano e meio, usufruíram desta medida cerca de 48 mil pessoas, 17 mil das quais de forma permanente. Fazendo uma leitura mais fina, verifica-se que a maioria tem rendimentos que cumprem o conceito de carência económica, que metade dos agregados é constituída por uma única pessoa em idade activa e que quase um terço beneficia de rendimento social de inserção.

Os autores consideram que “as características dos beneficiários não parecem justificar uma resposta de apoio alimentar centrada exclusivamente no fornecimento de refeições confeccionadas”. Julgam que o custo pode “ser reduzido, beneficiando idêntico número de pessoas, se se optar por um modelo centrado na distribuição de alimentos”. Acabam por recomendar o fim da medida de emergência alimentar. Entendem que isso não deverá ser feito “sem que o prazo para o efeito seja dado a conhecer às entidades executoras da medida, bem como aos seus beneficiários, desejavelmente com alguma antecedência, e sem que se encontre disponível um instrumento alternativo de apoio alimentar para pessoas carenciadas”.