Uma estória: Trump, Jackson e o burro
A ascensão do populismo jacksoniano foi vivida como a invasão de Roma pelos bárbaros.
Andrew Jackson (1767-1845) foi o primeiro Presidente populista dos Estados Unidos. A sua tradição ainda hoje pesa consideravelmente na cultura política americana. Um dos seus estudiosos, Walter Russell Mead, faz um paralelo entre ele e Donald Trump. “A abordagem de Trump na política externa é fundamentalmente jacksoniana: os Estados Unidos não devem celebrar grandes acordos comerciais, nem tentar difundir a democracia no mundo e menos ainda acreditar nos aliados. Devem manter um forte exército que lhes permita não depender de ninguém e perseguir o seu próprio interesse nacional.”
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Andrew Jackson (1767-1845) foi o primeiro Presidente populista dos Estados Unidos. A sua tradição ainda hoje pesa consideravelmente na cultura política americana. Um dos seus estudiosos, Walter Russell Mead, faz um paralelo entre ele e Donald Trump. “A abordagem de Trump na política externa é fundamentalmente jacksoniana: os Estados Unidos não devem celebrar grandes acordos comerciais, nem tentar difundir a democracia no mundo e menos ainda acreditar nos aliados. Devem manter um forte exército que lhes permita não depender de ninguém e perseguir o seu próprio interesse nacional.”
Igualmente marcante é a sua influência na política interna. Para isso devemos fazer um resumo da presidência e dos princípios que guiaram Jackson, o primeiro “plebeu” a ocupar a Casa Branca contra a “aristocracia” política da Nova Inglaterra e da Virgínia. Nascido no Tennessee, filho de imigrantes miseráveis do Ulster, foi agricultor, negociante de terras, cavalos e índios, e depois advogado. Em 1801, é eleito chefe da milícia do Tennessee com a patente de coronel e, no ano seguinte, promovido a general. Torna-se “herói” na batalha de Nova Orleães na guerra de 1812 contra a Inglaterra. Passa a ser um ídolo popular.
Eleito para a Câmara dos Representante e depois senador, candidatou-se à presidência em 1824, contra “notáveis” como John Quincy Adams ou Henry Clay. Ficou em primeiro lugar mas sem maioria absoluta no Colégio Eleitoral, o que passou a decisão para a Câmara dos Representantes. Um acordo político com Clay, que ficaria com o Departamento de Estado, permitiu a Adams ser eleito. Jackson teve quatro anos para denunciar esta “negociata corrupta”, para reorganizar o Partido Democrático e preparar a revanche.
A “invasão dos bárbaros”
Os whigs (futuros republicanos) tratavam por burros (jackasses) os “ignorantes” adeptos de Jackson. Este teve uma ideia genial: fez do burro o símbolo dos democratas — um animal trabalhador, nobre e teimoso, capaz de dar coices mortais nos decadentes “leões” da oligarquia. Jackson assinava e devorava os jornais populares. Conhecia melhor do que a elite os sentimentos que cresciam na opinião pública.
Nas eleições de 1828 esmagou Adams e os outros adversários. Foi um sismo político. A sua investidura, a 4 de Março de 1829, foi “histórica” e descrita pelos contemporâneos como a “invasão de Roma pelos bárbaros”. Em lugar de jurar dentro do Congresso, exigiu fazê-lo no exterior do edifício perante um “mar agitado” de 10 ou 20 mil pessoas electrizadas. Algumas viajaram 800 km em carroças para assistir ao momento histórico. As pessoas não o idolatravam pelo seu programa mas por aquilo que ele encarnava: era um deles e sempre se manteve próximo do povo.
Havia a seguir a recepção na Casa Branca. Jackson montou o seu cavalo branco e partiu, rodeado pela multidão. Seguiu-se o caos. A massa entrou na Casa Branca. O Presidente teve de ser protegido para não ser esmagado. Adeptos de botas ferradas subiam para cima de móveis e poltronas de cetim para o verem. Houve um assalto à comida e às bebidas. Partia-se porcelana chinesa e manchavam-se tapetes com pedaços das centenas de libras de queijo trazidas para oferecer a Jackson. Um funcionário teve a ideia brilhante de levar para o exterior os barris de punch e cerveja.
A elite teve de se adaptar aos “bárbaros”. O sufrágio universal masculino foi generalizado. Nas eleições de 1824 votaram 356 mil pessoas; em 1836, 1,5 milhões; em 1849, 2,4 milhões. Jackson conseguiu uma aliança poderosa: reunir o apoio dos “pioneiros” do Oeste aos operários da nascente indústria da Costa Leste e do Centro, cuja protecção assumiu. Prometeu e conseguiu encerrar o Second American Bank, antecessor da Reserva Federal, não por ser mal gerido mas por ter excessivo poder. Para isso, teve de demitir dois secretários do Tesouro e vetar sucessivas decisões do Congresso.
O legado de Jackson tem lados mais escuros. Foi inimigo dos índios, cuja deportação em massa acelerou para dar terras ao homem branco. No Oeste, intensificaram-se os linchamentos. A herança da sua política económica de laissez faire, laissez passer abriu as portas ao capitalismo selvagem do fim do século.
O apelo jacksoniano
“O credo político de Jackson pode resumir-se em poucas frases”, escrevem os historiadores Allan Nevis e Henry S. Commanger: “Confiança nas capacidades do homem comum, crença na igualdade política, crença na igualdade das oportunidades, ódio aos monopólios, aos privilégios e à selva da finança capitalista.”
Jackson não deixou uma ideologia, mas sobretudo uma “tradição”. Russell Mead aponta um “código de honra” fundado em três grandes princípios: autoconfiança, igualitarismo, individualismo. Define-se melhor pelo que combate: as elites e as oligarquias. As elites queriam o primado da competência no acesso aos cargos públicos; os “burros” preferiam a lei da maioria, pois qualquer homem razoável é susceptível de participar na governação.
“Os jacksonianos nunca tiveram grande respeito pelos mais educados e credenciados”, conclui Russell Mead.
É fácil compreender a sedução jacksoniana — presente nos dois grandes partidos — entre os operários e nas classes médias brancas que se sentem em declínio, real ou imaginário, desde há duas gerações. Trump entendeu-o. O inimigo continua a ser a elite. E a “tirania da banca” passou a ser a “tirania da globalização que rouba os nossos empregos”.
Os jacksonianos são “radicalmente igualitaristas, radicalmente pró-classe média, radicalmente patriotas e radicalmente pró-segurança social”, escreveu Russell Mead durante a campanha. “Hoje, Donald Trump é uma espécie de ecrã em branco em que os jacksonianos projectam as suas esperanças. (...) O apelo jacksoniano de Trump criou uma grande desorientação no Partido Republicano, demonstrando o abismo entre a ideologia conservadora republicana e o nacionalismo jacksoniano.”
Ao contrário de Jackson, o discurso de inauguração de Trump não electrizou os adeptos. E também os Estados Unidos de hoje não são os do tempo de Jackson. O populismo nacionalista que partilham tem um alcance radicalmente diferente. Hoje, o populismo nacionalista diz respeito a todo o planeta.