Fraude na Saúde: “Não se justifica tudo para salvar vidas”
Para a inspectora-geral das actividades em saúde, o SNS ainda tem muitos casos de fraude e de desperdício. Dá como principal exemplo os contratos públicos e defende que não podemos continuar a desculpar hábitos enraizados como a cunha.
Aos 58 anos, a procuradora Leonor Furtado orgulha-se de uma carreira dedicada ao combate à corrupção. Passou por Timor-Leste, pelo Ministério do Ambiente, pelo Tribunal de Contas, pelo Conselho da Europa e pelo Departamento Central de Investigação e Acção Penal. Desde 2015 que se dedica a descobrir de quantas formas se pode enganar o Estado à custa das doenças: é inspectora-geral das actividades em saúde, uma área onde as fraudes valem milhões.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Aos 58 anos, a procuradora Leonor Furtado orgulha-se de uma carreira dedicada ao combate à corrupção. Passou por Timor-Leste, pelo Ministério do Ambiente, pelo Tribunal de Contas, pelo Conselho da Europa e pelo Departamento Central de Investigação e Acção Penal. Desde 2015 que se dedica a descobrir de quantas formas se pode enganar o Estado à custa das doenças: é inspectora-geral das actividades em saúde, uma área onde as fraudes valem milhões.
A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) já tem carros ou os inspectores continuam a ter de andar de transportes públicos e nos seus carros?
Não é por falta de viaturas ou de outro tipo de meios, como telemóveis, que deixamos de funcionar. Temos duas viaturas de serviço, o que é manifestamente pouco.
Também falou na falta de dinheiro para deslocações.
O nosso orçamento é curto, é de 3,5 milhões de euros para 2017. O próprio ministério reconheceu que precisávamos de mais dinheiro e viaturas. O plafond era de quatro milhões, mas depois com as cativações obrigatórias estamos outra vez nos 3,5, um orçamento que é igual há muito tempo.
Quais as fraudes na saúde que mais a chocam?
Tanto é fraude um cidadão que adquire óculos de sol para a família toda pedir comparticipação à ADSE como o caso do médico que prescrevia tantos antibióticos ao pai idoso que ou já o tinha morto ou então aquilo não era verdade. No ano passado interviemos na área da saúde oral e do cheque-dentista. Chocou-me encontrarmos sítios onde não se fazia desinfecção dos instrumentos. Foi uma acção que visou as cinco maiores entidades privadas da região de Lisboa. Mais chocante ainda – e aí já raia a fraude – é que em quatro delas tinham sido facturados ao Estado serviços nunca prestados.
A dispensa de medicamentos nos hospitais é outra área considerada susceptível à fraude. O que tem sido feito?
Há situações que devem ser trabalhadas, como a dispensa de medicamentos sem suporte legal. São suplementos alimentares, por exemplo, que não se percebe muito bem por que foram dispensados. E representaram, em 2016, 75% do total de medicamentos dispensados. Não quer dizer que seja fraude, pode ser só desperdício. É muito aquela atitude “O que importa agora é salvar uma vida, os procedimentos ficam para trás”.
Há mais desperdício ou mais fraude?
[Risos] Não tenho ainda condições para responder. Há muito desperdício e muito não saber fazer. E muita arrogância quando não se pergunta como se faz. O código dos contratos públicos não é observado por défice de conhecimento, por exemplo. Saiu agora um despacho do ministro da Saúde sobre essa matéria.
Os ajustes directos são uma área de risco?
Uma delas, mas os ajustes directos têm limites. Acontece que há sempre forma de os ultrapassar. Existe o argumento da urgência em contratar – que tem por trás a ausência de planeamento. Quando alguém alega que comprou à pressa e facturou depois algo está errado. “Ah, é porque esgotou e eu precisei”. Ok, mas tinha feito gestão do stock antes?
Há negligência propositada para permitir ajustes directos?
Não posso afirmar isso. Quem tem de controlar a execução dos contratos são os presidentes conselhos de administração. Eu só tenho de lhes dizer “Cuidado, que isto implica responsabilidade financeira”. Em 2016 focámo-nos na aquisição de bens e serviços, este ano vamos para as assessorias e consultadorias.
O que nos pode dizer sobre isso?
São imensas. Temos de ver se correspondem às necessidades. Eu precisava de ter uma assessoria de direcção, mas se não tenho dinheiro para a pagar tenho de fazer eu o trabalho. Se preciso de 20 médicos mas contrato 50 – porque já lá estavam, porque são tios deste e daquele – alguma coisa está errado. Mas estou a falar de assessorias e consultadorias, não de médicos.
O despacho do ministro consagra regras de contratação pública na saúde que em muitos casos já existem. Porquê?
Alguém tem de tomar uma posição. Elegi a contratação pública como um factor de risco sério de fraude e corrupção porque na saúde os contratos valem milhões. É essa a fraude que me interessa detectar. Comparada com ela, o dinheiro perdido com o médico que está no privado no horário em que devia estar a trabalhar no Serviço Nacional de Saúde (SNS) são migalhas.
Ainda há muitos casos desses?
São os mesmos profissionais a trabalhar nos dois lados – embora melhor remunerados no privado do que no SNS. É perverso: o profissional de saúde anda numa correria para cumprir horários e vai escapar no sítio onde há menor controlo. Em 2015 mandámos repor 156 mil euros de salários por causa disso. Porém, a intervenção da IGAS deve estar reservada aos casos complexos, situações que atentem verdadeiramente contra o direito do cidadão de acesso à protecção na saúde.
E o que detectou na contratação de bens e serviços?
Fomos ver como são feitos os contratos de material de consumo clínico. A maior parte dos procedimentos tinha enquadramento ilegal incorrecto. Os contratos não foram divulgados nos sites obrigatórios, o que é contrário ao princípio da transparência e põe em causa o princípio da concorrência. Muitas prestações de serviços tinham sido executadas antes da assinatura do contrato. Recorre-se muito ao ajuste directo no regime simplificado, que abrange despesas até cinco mil euros, sem verificação dos pressupostos legais. Muitas vezes fracciona-se determinada despesa para fugir à fiscalização prévia do Tribunal de Contas.
Surpreendeu-a o caso Octapharma, em que o Estado ficou nas mãos de uma só empresa para a compra de plasma durante anos?
Nos sectores com muito dinheiro – e não só na saúde – é normal que exista grande concorrência, grande tráfico de influências para se ganhar um contrato. Não conheço esse caso particular.
Chegou a falar em “adjudicações directas de milhões” e “derrapagens significativas” nas empreitadas na saúde. Já foram averiguadas?
Ainda não. Tenho de formar internamente pessoas para esse efeito. Comecei por coisas pequenas, como bens e serviços e material clínico.
Quais são neste momento as áreas mais sensíveis à fraude?
A dos contratos. Quase tudo é contratação pública. O que fizemos foi também obrigar os conselhos de administração a dotarem os seus serviços de auditores internos, porque se os auditores não fizerem o seu trabalho sobra mais para nós que somos poucos. Tenho 45 inspectores para o SNS. Se pensar no Hospital de Santa Maria ou no Hospital de S. João, já imaginou os serviços que aquilo tem para fiscalizar?
Ainda continuam a ter casos de médicos que conseguem que os seus doentes do privado passem à frente nas listas de espera do SNS?
O Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia é uma das áreas em que recebemos mais queixas. O SIGIC existe para regular e garantir o direito de acesso à cirurgia e para evitar as ultrapassagens. Detectámos algumas irregularidades. Não podemos afirmar que há fraude, mas há não conformidades. Numa determinada administração regional de saúde (ARS) – não vou dizer qual – o sistema de controlo está inoperacional desde 2013.
Como é que se combate a fraude num sector em que a diferença entre um bom e um mau tratamento pode ser a diferença entre a vida e a morte?
O sistema de pedido, que gosto mais do que da palavra cunha, é cultural em Portugal e em todos os países.
Mas são casos em que os doentes pensam que sem uma cunha poderiam morrer.
É uma falácia. O sistema funciona. Há coisas que não respeitam as normas, mas isso só em última instância é que pode significar a vida ou a morte. Não se pode pôr a questão nesta óptica da vida ou morte. Recuso-me a entrar nesse tipo de discurso. Pode-se colocar é na boa ou na má gestão.
E se o doente achar que pode morrer sem determinado exame?
É uma questão de ética. Mesmo que esteja em causa a vida. Temos de nos deslocar desse plano e exigir antes uma boa gestão dos recursos.
O utente que se sentiu impelido a subornar alguém é um criminoso?
Cometeu um delito. O valor que está em causa é exactamente o que está inscrito na norma da corrupção: não subornarás, não farás tráfico de influências. Infelizmente quando usamos o argumento de que é a minha vida que está em causa estamos a alimentar o fenómeno.
Como se investigam fraudes na saúde?
Seguimos o rasto do dinheiro. Na fraude é sempre assim, o que fazemos é seguir o dinheiro. Pedimos também pareceres clínicos para ver se se justificavam ou não determinados exames.
O que é que a saúde tem de mais particular?
Tem o dinheiro. Muito mais dinheiro do que as outras áreas e tem este argumento: eu tenho é de salvar vidas. E como tenho de salvar vidas justifica-se tudo. E não, não se justifica. O que temos de exigir aos gestores é o cumprimento rigoroso das normas, fazendo o seu trabalho, que é salvar vidas.