Reabilitação ou comercialização de 30 monumentos nacionais?
Na realidade, o que a maioria destes imóveis (que por alguma razão se encontram classificados) necessita é de um conjunto de ações de conservação e restauro capazes de se articularem, de forma ajustada, com os novos usos e não obras de autor a competirem com o que realmente interessa.
“Portadores de uma mensagem espiritual do passado, os monumentos históricos de um povo constituem um testemunho vivo das suas tradições seculares.”
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
“Portadores de uma mensagem espiritual do passado, os monumentos históricos de um povo constituem um testemunho vivo das suas tradições seculares.”
ICOMOS, Veneza, 1964.
Num artigo do jornal PÚBLICO do passado dia 28 de dezembro foi utilizada como título uma frase que, na realidade, realça a questão principal quando se discute a afetação, para uso turístico, de 30 monumentos: “ (…) É vital definir o que se quer salvar”. A ideia subjacente à afirmação é que realmente este conjunto muito expressivo de edifícios históricos (quinze classificados como Imóveis de Interesse Público e seis como Monumentos Nacionais) fica em risco de sofrer uma intervenção de tal modo radical que se torna urgente definir o que é mais importante. Como tivemos ocasião de defender em artigo de opinião neste jornal em 2014 (30 de outubro), o debate sobre os modelos de uso ou gestão dos bens culturais que são propriedade do Estado deverá colocar-se, em primeiro lugar, ao nível das “ideias” e dos “valores”, ou seja, definir o que se entende e o que se pretende do património cultural português, se estes bens devem ser olhados como um ativo ou produto que deve ser rentabilizado à custa da sua descaracterização, ou se, pelo contrário, deverão, em primeiro lugar, ser olhados como aquilo que são, “testemunhos com valor de civilização ou de cultura” (Lei de Bases do Património Cultural).
Consultando a informação disponível sobre o Programa Revive do Turismo de Portugal, verifica-se que este grande conjunto de bens culturais é encarado simplesmente como um qualquer valor imobiliário ou um mero ativo económico, não esquecendo, no entanto, a sua mais-valia (em termos de negócio), do valor histórico subjacente, ou seja, a possibilidade dos investidores contarem, desde logo, com um belo enquadramento cénico. Mas se é impressionante o património que está em jogo, mais impressionante é ver também os números já avançados para este programa que o Estado, através do Turismo de Portugal, pretende lançar – 150 milhões de euros - que vão diretamente para as mãos de privados para que, durante pelo menos 50 anos, se encarreguem da sua gestão. Neste pacote estão monumentos associados a zonas verdes importantes, algumas sensíveis em termos ecológicos, áreas arqueológicas relevantes e diversos conjuntos edificados como o Mosteiro do Lorvão ou o Castelo de Portalegre entregues, por mais de duas gerações, à iniciativa privada (exceto as igrejas), quebrando-se assim o paradigma que os monumentos nacionais com valor identitário devem ser, em primeiro lugar, usufruídos pelos cidadãos em geral.
Observando este esfusiante movimento em torno dos listados poderemos recuar a um outro programa semelhante, mas mais antigo, o programa das “Pousadas de Portugal” e verificar o que na realidade se passou. De facto, foram necessários muitos anos e muitos erros também, para se compreender que dificilmente dentro de um edifício histórico cabe um estabelecimento hoteleiro ou qualquer outro tipo de programa semelhante que se pretenda razoavelmente rentável, sem que com isso não se condene, de forma irreversível, o imóvel que se diz pretender reabilitar. A propósito das “Pousadas de Portugal” muito se discutiu, quer em termos académicos, quer cívicos, sobre como conseguir compatibilizar novos usos, rentabilidade e salvaguarda dos monumentos. Foi, de facto, um longo percurso, hoje aparentemente esquecido num país cada vez mais desmemoriado como é o nosso, desde as intervenções pseudo-historicistas até ao uso dos monumentos como pretexto para a afirmação de obra de autor, ou seja, desde os anos 30 do século passado numa época de exaltação dos valores pátrios pela mão de António Ferro, até ao seu final, já numa fase de declínio com o fecho de muitas unidades e a concessão de outras, as mais rentáveis, a um grupo hoteleiro privado (Grupo Pestana).
Visto este longo historial muitas questões se colocam: Como se explica que, depois de tanto investimento público, estejam várias destas pousadas fechadas e outras com problemas de ocupação? Como se explica que se tenha perdido o rasto do importantíssimo espólio artístico (mobiliário, pinturas, esculturas etc.) que as mesmas encerravam? Como será possível retirar lucros de imóveis tão complexos, como delicados, a exigirem uma manutenção tão especializada e dispendiosa? Tendo em mente estas questões julgo que será agora mais fácil olhar para a famosa lista e rapidamente chegarmos à conclusão que certamente quem sairá neste negócio mais prejudicado será o Estado, caso o negócio corra mal, bem como os cidadãos impedidos de usufruir os espaços já devidamente turistificados a não ser pagando, quando na realidade os ajudaram antes a pagar.
Se a análise for correta e não contaminada por toda a propaganda política e comercial a que agora se assiste, facilmente se chegará à conclusão que, para a maior parte destes 30 imóveis, será muito escassa a possibilidade de compatibilizar negócio e proteção do património, como já antes o foi e em circunstâncias bem mais favoráveis. Veja-se, por exemplo, o caso da Pousada no Mosteiro de Santa Maria do Bouro que, parecendo ser um puro restauro, na realidade não o é, sendo o próprio arquiteto Souto Moura a revelá-lo quando sistematicamente aponta os diversos atentados patrimoniais que teve de cometer face às exigências do programa, pois para ser rentável e para cativar os clientes (aqueles que dão lucro) é necessário rebentar com a escala do existente, demolir, desmontar, remontar, inventar... Só quem nunca teve a oportunidade de visitar um estaleiro de obra destinado a adaptar para uso turístico um imóvel histórico, é que poderá ainda ter ilusões. Ou o programa é minimalista e verdadeiramente protetor das pré-existências e daí, dificilmente se retirará grande lucro, ou então será sempre pouco respeitador do “espírito do lugar”.
Depois de tudo isto e não querendo fugir à magna questão: então o que fazer com eles? Atrevo-me a apresentar cinco reflexões, tendo em mente que existe financiamento público disponível para investir na recuperação deste património:
Como primeira consideração partiria da noção radical, mas que deverá ser equacionada, de que um monumento, dependendo sempre da sua tipologia, não tem que obrigatoriamente ser “salvo” por qualquer programa, na errada ideia que mais vale fazer mal do que nada fazer, ou que tudo tem que ter uma utilidade ou, menos ainda, que tudo tem de ser rentável. Na Irlanda, por exemplo, é possível visitar dezenas de monumentos religiosos que foram apenas consolidados, mostrando-se assim na sua mais completa nudez, ostentando todas as suas belas marcas da passagem do tempo, mas não sendo, por isso, menos visitados ou amados.
Segunda reflexão, um edifício histórico tem sempre de ser alvo de um “Plano Diretor” assente, antes de mais, num profundo estudo dos seus contextos (histórico, arqueológico, artístico, geográfico, social, etc.) e num imprescindível registo gráfico do edificado acompanhado de uma necessária análise do âmbito da Arqueologia da Arquitetura antes mesmo de se realizar qualquer tipo de intervenção. Neste labor, nesta incontornável exigência, o papel das tutelas do património tem de ser exemplar e perfeitamente independente de quaisquer tipos de pressões, definindo, com grande rigor, o que pode e não pode ser executado. Igualmente neste ponto os cidadãos devem ter um papel ativo e exigir que se cumpram as normas nacionais e internacionais, instrumentos legais criados para garantir a salvaguarda da autenticidade e da integridade deste tipo de bens.
Terceira observação, um programa de valorização de um imóvel com valor histórico, não deverá ser apenas dirigido a uma única função, neste caso turística. Será um erro crasso procurar garantir a subsistência dos valores patrimoniais em causa ou até mesmo o sucesso económico do projeto, se se tiver em mente apenas um tipo de uso.
Quarta reflexão, os novos usos devem, em primeiro lugar, ser encontrados nas caraterísticas e necessidades reais das comunidades que lhe estão próximas, a sua provável utilização turística, que não se propõe que seja esquecida, deve ser apenas uma das várias possíveis, sobretudo em imóveis com a grandiosidade de um antigo Mosteiro, possibilitando-se o acesso de mais cidadãos, empresas ou ONG aos imóveis escolhidos, e oferecendo também a vantagem das autarquias estarem mais envolvidas no processo. Julgo que se existe dinheiro, por parte do Ministério da Economia para investir, deveremos todos nós cidadãos exigir que ele seja bem aplicado e que, caso o negócio falhar, não fiquem os encargos maiores “os Monumentos Maus” para o Estado e os restantes para os privados, mas sobretudo que não fiquem também, no final de todo este processo, um punhado de monumentos reduzidos a meros contentores sem uso e sem história.
Quinta e última observação, não se resolve o problema entregando o projeto a um qualquer “arquiteto estrela”, como se de uma verdadeira “via verde” se tratasse, capaz de resolver, apenas com o seu nome bem cotado no mercado, todos os problemas relativos à preservação dos espaços. Na realidade, o que a maioria destes imóveis (que por alguma razão se encontram classificados) necessita é de um conjunto de ações de conservação e restauro capazes de se articularem, de forma ajustada, com os novos usos e não obras de autor a competirem com o que realmente interessa.