Se não são as fadas que fazem círculos de vegetação no deserto do Namibe, quem é?

Formam oásis no deserto. São quilómetros e quilómetros de círculos de vegetação sem nada no interior, e a sua formação tem sido um autêntico mistério. De uma coisa se tem a certeza: não é magia.

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Vamos supor que estamos a sobrevoar o deserto do Namibe, que se estende entre a Namíbia e Angola. Por largos quilómetros, é possível ver círculos desenhados com vegetação em volta e um vazio no centro. O autor destas formas no deserto tem sido um mistério ao longo dos anos. É tão indefinido que estes círculos são conhecidos por “círculos de fadas”, como se tivessem sido feitos por este seres imaginários das tradições populares europeias. Agora, os suspeitos são outros.

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Vamos supor que estamos a sobrevoar o deserto do Namibe, que se estende entre a Namíbia e Angola. Por largos quilómetros, é possível ver círculos desenhados com vegetação em volta e um vazio no centro. O autor destas formas no deserto tem sido um mistério ao longo dos anos. É tão indefinido que estes círculos são conhecidos por “círculos de fadas”, como se tivessem sido feitos por este seres imaginários das tradições populares europeias. Agora, os suspeitos são outros.

Nesta quinta-feira, surgiu na revista Nature mais um suspeito. Um estudo coordenado por Corina Tarnita, da Universidade de Princeton, em Nova Jersey, nos Estados Unidos, conclui que a formação destes círculos se deve a mecanismos ecológicos com uma auto-organização, como ecossistemas no subsolo e a competição entre as plantas.

Os círculos de fadas são autênticos oásis no deserto. São hexagonais e bem largos. O seu diâmetro pode ir dos dois aos 35 metros, e nalguns casos alcançar mesmo os 40 metros. Os maiores encontram-se em Angola, mas também podem existem em desertos na Namíbia, na África do Sul, na Austrália ou até mesmo no Brasil.Mas centremo-nos nos círculos no deserto do Namibe; são esses que têm sido alvo dos principais estudos.

Neste deserto com cerca de 30 mil quilómetros quadrados, os círculos de fadas podem espalhar-se por cerca de 1500 quilómetros quadrados. Caso não haja períodos intensos de seca, onde há elevada mortalidade da vegetação no deserto, estes círculos podem viver centenas de anos ou mesmo chegar aos mil anos. Mas falta responder a uma questão primordial: como se formam?

Indo até às tradições

É aqui que o mistério se intensifica e ao longo dos tempos as desconfianças têm-se voltado para os mais variados suspeitos. Os himba, um grupo étnico da Namíbia, já respondeu a esta questão com lendas, que tem passado de geração em geração. Para os himba, há duas hipóteses: ou são pegadas dos deuses ou são dragões debaixo da crosta da Terra, que, ao lançarem bolhas flamejantes para a superfície, queimam a vegetação e criam estes círculos.

Nem só os himba se têm preocupado com a formação destes círculos. Olhares mais ocidentais têm tentado resolver este autêntico quebra-cabeças. Se se chamam “círculos de fadas”, tudo se deve a tradições populares nos países europeus. De acordo com Francisco Vaz da Silva, investigador no Instituto de Estudos de Literatura Tradicional da Universidade Nova de Lisboa, essas tradições são representadas com mulheres vestidas de branco em locais como encruzilhadas, que dançam em círculos ao meio-dia ou à meia-noite. Seria a partir destas danças que este mundo e o outro comunicavam.

Durante o século XIX, existia em Inglaterra, nos países célticos e na Escandinávia, a crença de que círculos que apareciam nas florestas eram criados por fadas e elfos que dançavam em círculo em noites enluaradas. Já na Escócia, havia a lenda de que os círculos nas florestas, formados por cogumelos, serviam de mesa para as festas das fadas. E no País de Gales, pensava-se que estes cogumelos eram usados pelas fadas como guarda-chuvas. Se formos para a Alemanha, as fadas passam a ser bruxas e as celebrações em círculo comemoravam a chegada da Primavera. Em França, eram obra das feiticeiras.

Em Portugal, estas tradições populares também existem. Nas campanhas da Inquisição, as fadas foram demonizadas e começaram a ser designadas “bruxas”. Às suas danças chamava-se “encruzilhada das bruxas”. “Conheci na minha juventude histórias de homens que supostamente encontraram tais assembleias de fadas ao voltarem a casa a altas horas”, conta-nos Francisco Vaz da Silva. “Tipicamente, o caminheiro, por ter dito ou feito algo inconveniente ao encontrar as fadas, sentiu uma estalada gélida na face, que o jogou sem sentidos para o regueiro onde viria a acordar na manhã seguinte.” Mas o investigador salienta: “É difícil resistir à suspeita de que o nível de álcool no sangue destes viandantes nocturnos era elevado...”

Estas tradições populares são referidas na publicação Tradições Populares de Portugal, de José Leite de Vasconcellos, de 1882: “No mar também andam bruxas vestidas de branco, a bater palmas e a dançar sobre as ondas.”

Térmitas sim, térmitas não

Voltemos aos círculos de fadas com vegetação. Foi a partir dos anos 70 que a ciência começou a tentar desmitificar o mistério destes círculos. E nos últimos anos têm surgido mais estudos. Em 2013, o ecologista Norbert Juergens, da Universidade de Hamburgo (Alemanha), publicou um estudo na revista Science que revelava que eram as térmitas a formar os círculos de fadas no deserto do Namibe.

Norbert Juergens estudou círculos de fadas ao longo de 2000 quilómetros, desde Angola até África do Sul, passando pela Namíbia, e concluiu que as térmitas de areia (Psammotermes allocerus) eram as responsáveis pela criação dos círculos. No deserto, a água da chuva não sofre o processo de evaporação, ficando retida no subsolo. As térmitas acabam por “beber” esta água, principalmente nos períodos de maior seca, o que faz com que as plantas cresçam apenas nas margens do círculo. “Devido à rápida filtração e falta de evapotranspiração, a água é retida à volta dos círculos”, lê-se no artigo científico.

Ao longo do seu estudo, o ecologista encontrou térmitas de areia em Angola, na Namíbia e na África do Sul. Estas térmitas foram encontradas tanto em regiões com círculos de fadas e noutras sem círculos. “A Psammotermes allocerus estende-se ao longo do diâmetro do círculo”, refere o artigo.

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Norbert Juergens percorreu 2000 quilómetros de Angola a África do Sul para estudar os círculos de fadas Norbert Juergens

Contudo, não foram estas as térmitas encontradas no estudo de 2013. Foram novas espécies, que ainda não estão descritas cientificamente, refere ao PÚBLICO Norbert Juergens. “Encontrámos estas novas espécies com métodos genéticos. E podem ser distinguidas pela sua morfologia. Mas ainda não as descrevemos, nem sequer têm um nome científico.”  

Mas esta hipótese tem sido contestada. O ecologista Stephan Getzin, do Centro Helmholtz para a Investigação Ambiental, na Alemanha, defende que os círculos de fadas se formam por auto-organização do ecossistema. Investiga os círculos de fadas desde os seus tempos de estudante na Universidade da Namíbia, em 1999, e escreveu o seu primeiro artigo científico sobre o tema em 2000.

Para Stephan Getzin, os círculos são formados devido à competição pela escassa quantidade de água no solo do deserto. Não há água suficiente para preencher todo o círculo de vegetação e fica um espaço no seu interior. Num estudo de 2016, na revista Proceedings of the National Academy of Sciences, centrado nos círculos de fadas na Austrália e na Namíbia, a equipa de Stephan Getzin concluiu que a gestão de água no subsolo pela biomassa é a responsável pelos círculos.

“Estamos convictos de que é isto que acontece [a hipótese da auto-organização] na Namíbia e na Austrália. Com isto quero dizer que as térmitas não são um pré-requisito para a formação de círculos de fadas”, explica Stephan Getzin ao PÚBLICO. “As escavações da nossa equipa no solo, assim como as de colegas e especialistas em insectos, também confirmaram a ausência de térmitas nos círculos de fadas.” Portanto, Stephan Getzin considera que a hipótese de que são as térmitas que fazem os círculos de fadas não é suficientemente forte.

Hipóteses conciliadas

No artigo agora publicado na Nature, dá-se uma nova explicação para este fenómeno no deserto do Namibe. A equipa de Corina Tarnita concilia duas hipóteses. A primeira refere que os círculos de fadas se formam da seguinte maneira: as plantas cooperam com as plantas vizinhas e competem com as que estão mais distantes. Isso origina padrões regulares de círculos, ou seja, formam-se por auto-organização.

Por outro lado, a competição entre os ecossistemas subterrâneos de térmitas, formigas e roedores também contribui para a criação destes círculos. “Aqui providenciamos de um sistema teórico para uma auto-organização de colónias sociais de insectos, validados pelo uso de dados de quatro continentes [onde há círculos de fadas], que demonstram uma competição dentro da mesma espécie entre os animais, que pode gerar estes padrões hexagonais em larga escala”, lê-se no artigo científico.

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Estes círculos têm gerado um intenso debate científico Tyler Coverdale

A equipa usou o deserto do Namibe como caso de estudo. Para tal, desenvolveu um modelo espacial computacional, com dados de satélite e análises estatísticas, para caracterizar a população de insectos e perceber como se geram padrões hexagonais no solo. Depois, explorou-se a interacção entre as colónias de animais e os efeitos dos processos de auto-organização da vegetação. Observou-se então que as colónias maiores eliminavam as mais pequenas. Porque os recursos alimentares são limitados.

Neste modelo, verificou-se ainda que as térmitas aumentavam mortalidade da vegetação e destruíam a vegetação nos círculos de fadas logo quando ela começa a crescer.

“Fazemos uma descrição mais alargada do sistema – incluindo como os círculos de fadas nascem e morrem, assim como o seu tempo de vida e as propriedades da vegetação, nunca considerados antes”, explica-nos por sua vez Juan Bonachela, da Universidade de Strathclyde, em Glasglow (Escócia), e outro dos autores deste último estudo. “Os nossos resultados apontam para a importância das térmitas no funcionamento dos sistemas semiáridos, neste caso dos círculos de fadas na Namíbia.” As térmitas referidas pela equipa são as mesmas do estudo de Norbert Juergens: “A existência destas térmitas no deserto do Namibe foi referida em várias ocasiões, como no trabalho de Juergens. Aprendemos muito com o seu trabalho”, frisa Juan Bonachela. O último estudo não se aplica apenas aos círculos de fadas no deserto do Namibe, mas também a outros sistemas semelhantes.

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Os círculos de fadas têm sido alvo de uma intensa discussão científica Norbert Juergens

Mas o que dizem agora os autores dos estudos de 2013 e 2016 sobre último trabalho na Nature? Norbert Juergens continua sem dúvidas de que são as térmitas que permitem a formação dos círculos de fadas e sente reconhecido por este novo estudo simular o modelo com colónias de insectos, que ele também já incluiu em modelos que publicou em artigos seus mais recentes. Para Norbert Juergens, modelo da equipa de Corina Tarnita aborda padrões e dinâmicas fundamentais na ecologia. Mas, por outro lado, diz que o modelo precisa de ser fortalecido: “Esta hipótese baseia-se muito em modelos teóricos, não foi baseada em provas obtidas no terreno e pode haver uma contradição entre leis básicas da ecologia e da física”, comenta ao PÚBLICO.

Norbert Juergens considera que é necessário confirmar que ocorre uma mortalidade elevada da vegetação num diâmetro tão extenso como num círculo de fadas de 30 metros. Mesmo assim, afirma que o novo estudo mostra correctamente como surge a vegetação nos círculos de fadas. “Mas isto, por si só, não causa os círculos de fadas.”

Quanto a Stephan Getzin, o último estudo tem duas grandes fragilidades. “O modelo não mostra como os insectos são capazes de se reproduzir regularmente nos círculos de fadas”, afirma. Depois, há um desfasamento entre o modelo teórico sobre os insectos e as observações no local. “As térmitas não estão presentes no desenvolvimento do círculo de fadas”, refere. “Precisamos de centrar o trabalho no desenvolvimento dos círculos de fadas sem a presença de térmitas. Só assim teremos um retrato claro dos processos subjacentes à formação dos círculos sem a sobreposição dos efeitos das térmitas.”

Bem, parece que a discussão científica à volta destes círculos vai continuar e que ainda muito ainda será publicado. De uma coisa se tem a certeza, não foram as fadas as responsáveis (nem sequer são as principais suspeitas) por estes misteriosos círculos em pleno deserto.