“Tenho muitas dúvidas sobre a legalidade da isenção do IVA”
Para Vera Jardim, a Igreja Católica devia ser obrigada a aderir à consignação fiscal dos crentes através do IRS, já prevista na lei, e aceitar o fim da isenção do pagamento do IVA.
No Verão, o Governo recuou na polémica em torno da cobrança de IMI aos imóveis da Igreja Católica não directamente afectos a fins religiosos. Justifica-se essa isenção?
A Concordata e a lei da liberdade religiosa têm um conjunto de benefícios fiscais para as Igrejas. As pessoas podem dizer que não se justificam, mas justificam-se na medida em que as Igrejas são organizações sociais e, na visão do Estado e na minha, desempenham uma missão positiva na sociedade portuguesa e, portanto, os meios afectos a fins religiosos devem estar, e estão na generalidade dos países, nomeadamente Espanha, Alemanha, Itália, isentos de impostos sobre património. O problema aqui é saber, o que é muito difícil por vezes, onde é que termina e começa o “afecto a fins religiosos”. Alguma coisa que tenha fins lucrativos, como um colégio religioso, não é afecto a fins religiosos. Mas há situações de fronteira: a residência do pastor ou do padre tem fins estritamente religiosos? É discutível.
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No Verão, o Governo recuou na polémica em torno da cobrança de IMI aos imóveis da Igreja Católica não directamente afectos a fins religiosos. Justifica-se essa isenção?
A Concordata e a lei da liberdade religiosa têm um conjunto de benefícios fiscais para as Igrejas. As pessoas podem dizer que não se justificam, mas justificam-se na medida em que as Igrejas são organizações sociais e, na visão do Estado e na minha, desempenham uma missão positiva na sociedade portuguesa e, portanto, os meios afectos a fins religiosos devem estar, e estão na generalidade dos países, nomeadamente Espanha, Alemanha, Itália, isentos de impostos sobre património. O problema aqui é saber, o que é muito difícil por vezes, onde é que termina e começa o “afecto a fins religiosos”. Alguma coisa que tenha fins lucrativos, como um colégio religioso, não é afecto a fins religiosos. Mas há situações de fronteira: a residência do pastor ou do padre tem fins estritamente religiosos? É discutível.
O Governo acabou por concordar que sim. Bem, na sua opinião?
O Governo entendeu não mexer no problema. É uma opção discutível, mas que não me levanta problemas especiais. Acho que tudo aquilo que claramente não seja estritamente para fins religiosos deve pagar os respectivos impostos.
Isto abrange os espaços de alojamento de famílias carenciadas?
Normalmente, a Igreja Católica tem um conjunto de instituições que são qualificadas como instituições particulares de solidariedade social, que têm um regime diferente, mas que, em matéria de impostos, são beneficiadas como são as confissões religiosas; mas isso são fins de solidariedade social, é por aí que lá se chega.
Como se compreende que pela Concordata um sector social como as misericórdias, estando num mercado concorrencial como é o da Saúde, continue a beneficiar deste estatuto de excepção que o livra do pagamento de impostos?
Com fins lucrativos não deve beneficiar, mas se não tem fins lucrativos deve beneficiar. Mas isto já não é ao abrigo da Concordata, decorre do facto de serem uma instituição de solidariedade social. No caso das Misericórdias, elas integram-se no mundo das instituições particulares de solidariedade social.
E os hospitais detidos pelas misericórdias não beneficiam deste estatuto de excepção?
Não conheço o estatuto jurídico destas entidades, até será diverso consoante o caso. Se é uma casa de repouso que não tenha fins lucrativos, naturalmente beneficiará.
Não seria exigível que os contribuintes pudessem saber quantos milhões estão a ser desviados de outros fins para apoiar entidades religiosas?
Com certeza. Eu próprio, enquanto deputado, fiz esse pedido várias vezes e obtive alguns números, já lá vão alguns anos. Mas há um conjunto de benefícios que não será fácil contabilizar, porque, dentro dos benefícios fiscais, há muita coisa: há isenção de IVA, há a isenção do imposto predial… Nós criámos em Portugal uma coisa que vem da lei da liberdade religiosa e que permite que todos os contribuintes dediquem uma percentagem do seu IRS a igrejas ou a instituições de solidariedade social. Isso foi criado para que, com o andar dos tempos, as igrejas pudessem vir a auto-financiar-se com o donativo dos crentes. Mas a verdade é que, como há isenção de IVA para as actividades das igrejas, quer da católica quer das outras, e esta isenção não é acumulável com a consignação fiscal, boa parte das Igrejas tem optado pela isenção de IVA.
O caminho que Espanha seguiu foi acabar com a subsidiação que dava à Igreja Católica anualmente, substituindo-a pela consignação fiscal que é maior do que a nossa: a nossa é 0,5%, em Espanha são 0,7%. Em Portugal, a Igreja não aderiu a essa consignação fiscal. Embora tenha essa possibilidade, não aderiu até agora. Vamos ver o que é que a história nos dirá sobre essa matéria. Eu gostaria que a consignação, ou seja os donativos dos fiéis, pudessem substituir em grande parte alguma subsidiação da generalidade das igrejas, quer directa quer indirecta.
Isto como forma de compensar o fim da devolução do IVA?
Exactamente. Até porque tenho muitas dúvidas sobre a legalidade da isenção de IVA, face à legislação comunitária. Tenho dúvidas sobre a continuidade de aceitação por parte da União Europeia deste sistema. Veremos o que acontece.
A questão foi suscitada?
Foi debatida, nomeadamente em relação à Itália, no Parlamento Europeu. Houve queixas que não tiveram seguimento. Mas é sempre um problema que vai surgindo e vai desaparecendo no Parlamento Europeu. Não teve uma solução definitiva até agora. E enquanto ele não for decidido em relação a Itália, estaremos sem grandes problemas nesta matéria.
A questão é se, num país com dois milhões de pobres, se justifica que o Estado gaste tanto dinheiro com as religiões.
Nós não sabemos quanto é que o Estado gasta. O Estado gasta com as IPSS. Com as religiões gasta sobretudo por via das isenções de impostos.
Mas deixa de amealhar para reinvestir.
A única coisa que lhe posso dizer é que na Europa, de um modo geral (salvo a França e um pouco a Bélgica que têm uma opção bastante estrita da separação que não admite o princípio da cooperação entre o Estado e as igrejas), há uma consideração idêntica ou maior pelo conjunto das religiões. É, portanto, uma cultura Europeia, pelo menos da Europa continental. E é uma opção que o Estado faz e não discordo dela. Embora eu naturalmente afirmo o princípio da laicidade do Estado.
Mas isso justifica que essa laicidade seja ferida pelos exemplos já clássicos: a presença de representantes católicos nas cerimónias do Estado, a velhíssima questão dos cruxifixos nas escolas…
São problemas culturais que as leis não resolvem. A presença da Igreja Católica já não é única. É bom que reparem que em certas cerimónias do Estado já há uma presença das outras religiões também, embora num grau diferente. Se me pergunta se essa presença é positiva ou negativa, acho que, num Estado com separação, se deveria tanto quanto possível obviar a essa presença. Mas estes problemas não se resolvem só com as leis, porque a cultura muitas vezes sobrepassa aquilo que vem na lei. Se me pergunta se acho que deve haver inaugurações com o sacerdote a fazer uma bênção, para mim era dispensável. Embora não pense que seja tão grave assim, preferia que isso não existisse num país em que há separação entre a Igreja e o Estado.