Matámos a política?
Quando é que nos demos ao luxo de deixar de debater projetos de sociedade? Quando é que consentimos numa democracia enclausurada nas opções técnicas porque o que interessa foi decidido por alguém?
Na semana passada a RTP repôs o debate entre Mário Soares e Álvaro Cunhal, o tal que tornaria famoso o “olhe que não” do dirigente comunista. As acusações inflamadas sobre o regresso ao fascismo ou a implantação de uma ditadura soviética eram fruta da época em vésperas do 25 novembro, em plena constituinte e no início do último dos Governos provisórios.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Na semana passada a RTP repôs o debate entre Mário Soares e Álvaro Cunhal, o tal que tornaria famoso o “olhe que não” do dirigente comunista. As acusações inflamadas sobre o regresso ao fascismo ou a implantação de uma ditadura soviética eram fruta da época em vésperas do 25 novembro, em plena constituinte e no início do último dos Governos provisórios.
Quarenta e dois anos depois, e sem qualquer outra referência histórica, aquele debate não esclareceria o espectador mais atento sobre VI Governo provisório, quem o compôs e dirigiu, e muito menos permitiria esmiuçar as medidas que tomou, fossem elas merecedoras do elogio de Soares ou da crítica de Cunhal.
Este artigo não fala das escolhas de 1975 nem dos seus protagonistas. Este artigo não é sobre Mário Soares ou Álvaro Cunhal, é sobre como o primeiro debate alguma vez transmitido na televisão portuguesa pode surgir hoje como provocação histórica à política do nosso tempo, para nos recordar que o debate político já foi feito dos grandes argumentos que apuram maiorias sobre visões de sociedade.
Em três horas de debate Soares e Cunhal não compararam um único número. Ao assistir, o eleitor de 2017 ficaria, além de espantado, pouco elucidado sobre a contabilidade pública de 1975, mas ficaria a saber muito sobre o confronto ideológico que marcou a segunda metade do século XX e os caminhos do pós-revolução.
É verdade que o mundo mudou e que nem todos os debates têm de ter o valor de um confronto entre Soares e Cunhal em plena crise revolucionária. Mas olhemos para a nossa realidade: quantos se atrevem a entrar num debate sem um curso rápido de economia e finanças? Claro que esses conhecimentos são importantes mas quando os absolutizamos ficamos perante uma versão diminuída da política.
O debate político reduziu-se uma lista de argumentos “tecnicamente aceitáveis” perante a imposição ideológica que nos enfia verdades incontestáveis pela goela abaixo: o défice, a dívida, as regras do euro, dos mercados financeiros e da Europa. É um debate fechado nas opções político-ideológicas e por isso centrado em argumentos técnicos que excluem a compreensão e, consequentemente, a participação da maioria dos cidadãos.
Quando é que nos demos ao luxo de deixar de debater projetos de sociedade? Quando é que consentimos numa democracia enclausurada nas opções técnicas porque o que interessa foi decidido por alguém? Não, este debate não é sobre as escolhas de 1975, é sobre a política como poder de escolha.
A política não morreu, foi entregue. Com tudo o que está acontecer na Europa, a nossa única esperança é resgatá-la.