Os livros que ajudaram Obama a ser… Obama (mesmo na presidência)
A uma semana de deixar a Casa Branca, o Presidente dos Estados Unidos falou com a crítica do New York Times sobre as suas leituras e como elas moldam a forma como vê e se relaciona com o mundo.
A três dias de deixar a Casa Branca – Donald Trump chega já esta sexta-feira –, Barack Obama não sai dos jornais, sobretudo dos norte-americanos. Os balanços dos seus dois mandatos começaram há largos meses e, nas últimas semanas, têm-se diversificado. Desta vez, o diário The New York Times publica um artigo que resulta de uma conversa com Michiko Kakutani, a crítica literária que se habituou a que a amem ou a odeiem.
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A três dias de deixar a Casa Branca – Donald Trump chega já esta sexta-feira –, Barack Obama não sai dos jornais, sobretudo dos norte-americanos. Os balanços dos seus dois mandatos começaram há largos meses e, nas últimas semanas, têm-se diversificado. Desta vez, o diário The New York Times publica um artigo que resulta de uma conversa com Michiko Kakutani, a crítica literária que se habituou a que a amem ou a odeiem.
Sentados na sala oval a uma semana da tomada de posse de Trump, Obama e Kakutani conversaram sobre a importância que os livros têm tido na vida do ainda Presidente dos Estados Unidos, desde a sua infância e juventude aos oito anos que passou na Casa Branca, em que foram fonte constante de inspiração, uma oportunidade para “abrandar e ganhar alguma perspectiva” num tempo em que tudo parecia andar depressa de mais.
Os livros deram-lhe, admite o ainda Presidente, a possibilidade de se colocar no lugar do outro, algo que, garante, é “inestimável”. Se isso fez dele um Presidente melhor ou não, Obama não sabe dizer. O que é certo é que, “durante momentos muito difíceis”, em que a presidência pode traduzir-se num enorme isolamento, foi às palavras escritas de Lincoln, Martin Luther King, Gandhi e Nelson Mandela que recorreu. “Às vezes é preciso andar a saltar pela história para encontrar pessoas que também se sentiram isoladas como nós”, disse Obama, descrevendo-o como um exercício que lhe “tem sido muito útil”.
A sua rotina diária, contou à crítica do New York Times, passa por reservar uma hora, às vezes mais, ao fim da noite, para as suas leituras absolutamente eclécticas, da ficção contemporânea de Colson Whitehead (The Underground Railroad) aos grandes clássicos da literatura (mesmo os do século XX americano, como Philip Roth e Saul Bellow), passando pela não-ficção de autores como Daniel Kahneman (Thinking, Fast and Slow) e Elizabeth Kolbert (The Sixth Extinction).
Estas leituras foram uma forma de sair da "bolha da Casa Branca", explicou, de sair da sua própria cabeça, carregada com toda a informação dos relatórios e análises lidos durante o dia. E, muitas vezes, antes e durante a presidência, a ficção permitia-lhe até ligar-se a pessoas reais, às pequenas comunidades que encontrava quando viajava pelos Estados Unidos em campanha – foi assim com os romances de Marilynne Robinson e os habitantes do Iowa que conheceu quando estava na corrida ao cargo, em 2008.
O teatro de Shakespeare, por exemplo, com todos os seus dramas quotidianos, conflitos, mal-entendidos, crueldades, erros e reviravoltas, foi fundamental para que compreendesse que “há certos padrões que se repetem nas relações entre seres humanos” e que pode haver em tudo o que as envolve uma enorme capacidade de resiliência, de sobrevivência. Às biografias dos anteriores presidentes foi buscar uma certa capacidade de relativizar o que lhe acontecia no dia-a-dia: “É bastante útil imaginar Roosevelt a tentar navegar pela Segunda Guerra Mundial.”
E se a leitura foi fundamental para manter a cabeça no lugar, mesmo nos dias que pareciam mais difíceis de vencer, a escrita não o foi menos. Já tinha sido assim nos seus anos de formação e nos que antecederam a chegada à presidência norte-americana. Na juventude, Obama escrevia sobretudo no diário que mantinha e, mais tarde, quando já trabalhava em Chicago, em projectos de desenvolvimento comunitário, dedicou-se a pequenas ficções que descreve como “melancólicas e reflexivas”, construídas, regra geral, a partir de histórias reais de pessoas que ia conhecendo. Pessoas que, como ele, por vezes se sentiam desenraizadas e sozinhas.
Antes de chegar à Casa Branca, Barack Obama tinha já um livro autobiográfico, Dreams from my Father (1995), e outro centrado na sua visão sobre a maneira de fazer política e sobre o futuro da América (A Audácia da Esperança, de 2004). Agora que está mesmo prestes a deixar Washington deixou bem claro que vai dedicar parte do seu tempo a escrever as suas memórias, recorrendo ao diário que manteve nos últimos oito anos, embora não tão disciplinadamente como teria gostado.
A crítica do New York Times parece aguardar com entusiasmo a publicação deste volume colado à presidência de Obama e à sua visão do mundo. É Michiko Kakutani quem diz que ele tem “sensibilidade de escritor”, “olho de romancista e ouvidos atentos aos pormenores”, aliados a “uma voz precisa, mas elástica, capaz de se mover facilmente entre o lírico, o vernacular e o profundo”.
O homem que dedicou boa parte dos seus tempos livres nos últimos dois anos da faculdade a ler Nietzsche, Sartre ou Santo Agostinho, e que faz questão de passar às filhas o gosto pela leitura – ofereceu a Malia um Kindle cheio de livros que gostaria de partilhar com ela, incluindo Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, e The Golden Notebook, de Doris Lessing – continua a citar a primeira frase de um dos livros do Nobel V. S. Naipaul, A Curva do Rio, para explicar porque luta contra uma certa visão do mundo, realista mas cínica: “O mundo é o que é; os homens que não são nada, que se permitem tornar-se nada, não têm lugar nele."