"Cristo morreu, Marx também..."

Somos um emaranhado de paradoxos, uma espécie que traz em si Deus e o diabo.

Talvez nunca o mundo tenha sido tão incerto e inseguro para a Humanidade. A instabilidade é dominante: não sabemos se desaba uma guerra de proporções gigantescas, se vamos ter ou arranjar trabalho, se alguma doença se instala, se um cataclismo natural ocorre arrasando a cidade, se o vizinho do lado afinal é um terrorista ou um sociopata, se aquele que foi nosso amigo toda a vida não nos vai trair por uma qualquer ambição pessoalíssima. E sabemos que morrem mais de 20 mil crianças à fome ou por doença e falta de cuidados básicos diariamente, que há guerras infindáveis e propositadamente assim provocadas e mantidas, que há cada vez menos segurança e menos espaço e menos direitos no mundo do trabalho, que por cada doença debelada surge um novo vírus.

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Talvez nunca o mundo tenha sido tão incerto e inseguro para a Humanidade. A instabilidade é dominante: não sabemos se desaba uma guerra de proporções gigantescas, se vamos ter ou arranjar trabalho, se alguma doença se instala, se um cataclismo natural ocorre arrasando a cidade, se o vizinho do lado afinal é um terrorista ou um sociopata, se aquele que foi nosso amigo toda a vida não nos vai trair por uma qualquer ambição pessoalíssima. E sabemos que morrem mais de 20 mil crianças à fome ou por doença e falta de cuidados básicos diariamente, que há guerras infindáveis e propositadamente assim provocadas e mantidas, que há cada vez menos segurança e menos espaço e menos direitos no mundo do trabalho, que por cada doença debelada surge um novo vírus.

E sabemos que a par de coisas tão espantosas como a criação da 'realidade aumentada' que permite avanços científicos enormes, subsistem milhões e milhões de km2 sem água canalizada; mas também sabemos que a par das mais sofisticadas e cruéis formas de 'interrogatórios avançados', ainda há um bombeiro disposto a perder a vida para salvar um cão. Somos um emaranhado de paradoxos, uma espécie que traz em si Deus e o diabo. E a sensação de instabilidade é ampliada em parte pela rapidez da comunicação e pela visão generalizada do próprio mundo. Todavia só por mera cegueira de avestruz poderíamos acreditar que não estamos num momento decisivo para sequer continuarmos a existir por um todo; e, sobretudo, não cristalizarmos numa sociedade de escravos e 'senhores' sem precedentes, onde o valor de uma vida é menor do que a de uma peça tecnológica para os que tudo têm e mais querem, mesmo sem o poder fruir.

 Neste estado de coisas, perante tais perigos, vivendo em tantas instabilidades, servimo-nos de toneladas de drogas de todo o tipo para adormecer as consciências, às vezes até mesmo para conseguir sobreviver à crueza da realidade. Os mais fracos escorregam nos psicotrópicos ou no álcool, mas todos nós estamos sujeitos à 'tentação' de injectar uma telenovela, ‘snifar’ o futebol ou recorrer a montanhas de químicos como muros imaginários para nos sentirmos 'protegidos'. E fechamo-nos nesses mesmos muros numa casa que julgamos a nossa fortaleza, sem querer ou aceitar que ela está tão exposta como qualquer outra aos 'tsunamis' sociais, naturais ou artificiais. É a tal civilização tecno-industrial que (não) soubemos construir, que permitimos transformar o objecto em mais do que o sujeito e o sujeito próprio em mais do que a comunidade em que somos um dos sujeitos. É a tal 'era do vazio', sem referências, sem valores, sem princípios, sem desígnios colectivos. É aquela frase brincalhona dos anos 60/70, meio-século depois rigorosamente exacta: "Cristo morreu, Marx também... E eu já não estou a sentir-me nada bem".

É a utopia do Maio de 68 reciclada no auto-intitulado neoliberalismo em que "é proibido proibir" se adequa à 'liberdade total' para explorar, abandonar, desrespeitar e mesmo a liberdade de deixar morrer à fome. É a reconfiguração do ideal de democracia em suposta decisão de maiorias constituídas elas mesmas na expressão em votos de minorias que foram levadas até à boca das urnas às ordens de ilusões e condicionadas pela ficção da tal 'sociedade do espectáculo'. É um mundo em que a morte singular de uma 'vedeta' mediática faz correr mais lágrimas do que um genocídio de uma etnia que fica 'lá longe’. É um tempo em que os 'mercados' se assumiram antropomórficos, tal como todo o virtual se sobrepôs ao real: o Facebook 'existe', mas os 'amigos' nem sabemos quem são. É o mesmo tempo em que as pessoas se 'coisificaram' em estatísticas para falar dos vários dramas humanos que tenham.

Nesta inquietação que varremos para debaixo do tapete, mais do que nunca à Arte cabe levantar esse tapete: não para mudar o lixo de sítio, não para idealizar outros modelos pré-fabricados nas nossas mentes ou sendo instrumento de soluções assépticas e milagrosas, cujo tempo se encarregará de reconduzir a becos sem saída. Porque só a aquisição livre e profunda de uma autoconsciência individual que se reflicta num comportamento do próprio 'inconsciente colectivo' nos pode salvar: dificilmente antes, mas, a ficarem depois da catástrofe, os que ficarem terem essa memória que hoje escrevemos para o futuro para com ela aprender a corrigir - ou pelo menos reconhecer - o mal com que estamos a desabar. A Arte, no meio de tal instabilidade, como factor de uma outra instabilidade-inquietação sobre o apresentado como 'natural e como imutável pode retirar o lençol sobre os muitos esqueletos que ainda estão para vir nas mais ou menos óbvias distopias que se preparam para assaltar o quotidiano. É simultaneamente um grande desafio e uma evidência. Mas é também a sua única própria razão para ser e sobreviver. Uma Arte que sucumba à tentação de se situar na 'zona de conforto' do aplauso 'situacionista' é tão descartável como uma pastilha elástica e tão impermanente como uma bola de sabão.