A TSU não volta a ser única. Falta dizer quem paga
As reformas na segurança social fazem-se aos poucos. Mudanças radicais vêm quase sempre a reboque de remendos e acrescentos, que se acumulam e reforçam e, com o tempo, desfiguram o sistema e obrigam a repensá-lo. As ruturas são também, o mais das vezes, feitas pelos partidos de centro-esquerda, que têm pragmatismo que falta aos radicais e o capital político que falta à direita.
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As reformas na segurança social fazem-se aos poucos. Mudanças radicais vêm quase sempre a reboque de remendos e acrescentos, que se acumulam e reforçam e, com o tempo, desfiguram o sistema e obrigam a repensá-lo. As ruturas são também, o mais das vezes, feitas pelos partidos de centro-esquerda, que têm pragmatismo que falta aos radicais e o capital político que falta à direita.
A redução das contribuições sociais dos patrões tem tudo para ser um desses pequenos remendos, feitos sob pressão das circunstâncias, que abre o caminho a uma mudança maior em quem paga as reformas e os subsídios. E é por temerem que a coisa acabe mal para os trabalhadores que o Partido Comunista e o Bloco de Esquerda não querem ouvir falar na TSU, e que a “geringonça” treme.
O acordo de concertação social corta em 1.25 pontos percentuais a taxa social única paga pelos patrões, em compensação pelo aumento do salário mínimo para 557 euros. As empresas pagam TSU além do salário de cada trabalhador, e é por isso que uma coisa compensa, em parte, a outra. Do que se sabe, essa redução aplicar-se-á aos trabalhadores no salário mínimo, diminuindo progressivamente para aqueles com salários imediatamente acima. O Estado compensará a perda das receitas da segurança social, com receitas de outros impostos.
Não sendo original – Passos Coelho fez o mesmo, embora num grau menor, em 2015 – esta mudança é mais estrutural do que se tem feito crer. Em teoria, para financiar a segurança social, trabalhadores e patrões entregam à segurança social uma percentagem invariável – por isso, dita “única” - do valor do salário. Na realidade, empresas que empreguem desempregados de longa duração ou jovens difíceis de empregar, por exemplo, já não estão obrigadas a pagar a taxa normal da TSU. Acontece que a redução que o país hoje discute não é mais dirigida a grupos de risco, nem se limita a novos empregos, mas leva em conta o valor dos salários, concentrando-se nos mais baixos. Assim, a TSU dos patrões deixa de ser proporcional, e passa a ser, ligeiramente, progressiva.
O Governo disse que a medida é “transitória”, mas, se o passado é guia do futuro, ela será tudo menos isso. Com o tempo, será cada vez mais difícil reverter a redução da TSU, e a pressão para que esta se acentue e alargue a trabalhadores com salários médios vai crescer.
Os patrões distanciaram-se da promessa da esquerda de subir o salário mínimo para 600 euros nos próximos dois anos. Mesmo que o Governo resista a comprar o seu apoio com uma nova redução da TSU, é improvável que elimine a redução que existe hoje antes de 2019, pois estaria a aumentar custo do trabalho duas vezes. Além disso, em algum momento o ciclo económico vai inverter-se, e o desemprego, que tem estado a cair, vai aumentar. Repor a TSU à taxa original nesse período seria tão mau para o emprego, quanto a austeridade foi para a economia em recessão. No futuro, há ainda que contar com os efeitos no emprego e nos salários da inovação tecnológica, que se diz “skill-biased” – favorece trabalhadores mais qualificados, e acaba com os empregos dos outros. Até quando está uma empresa de táxis disposta a pagar a um taxista antes de investir num carro que se conduza sozinho? Quem o vai empregar depois, e com que salário?
A redução não é apenas difícil de reverter, mas tende a reforçar-se. O corte da TSU sobre os salários muito baixos tem um efeito distorcivo na distribuição na tabela salarial, pois dá um incentivo às empresas para empurrar e manter os trabalhadores com salários cobertos pela medida. A única forma de evitar isso é fazer com que a redução se estenda e diminua de forma muito progressiva até ao ponto onde o valor do salário não é o fator principal – ou pelo menos o único – para a empresa que está a contratar.
Portugal não seria o primeiro a seguir este caminho. Em França, desde os 1990s, reformas cumulativas tornaram a estrutura vertical das contribuições sociais brutalmente progressiva. Hoje a TSU dos patrões é zero ao nível do salário mínimo e só atinge a taxa normal nos salários duas vezes e meia o valor daquele. Esta política é, em grande medida, o reverso da moeda do elevado valor do salário mínimo francês – por relação com o salário médio – e da relutância dos políticos em travar a sua subida. Custa muito dinheiro, mas permitiu à França reduzir desemprego entre os menos qualificados, sem os excluir do apoio social e sem alargar o fosso entre salários. Outros países Europeus, e a Alemanha em particular, não podem dizer o mesmo.
Em França, discute-se hoje se as contribuições sociais progressivas obrigam a classe média a pagar demasiado pelo estado social – mais do que o sistema na sua versão original, com contribuições e subsídios proporcionais ao salário, obrigaria. Esse é um dos pesadelos da esquerda, porque a prazo poderia levar o eleitor médio a votar na direita que se propõe encolhê-lo.
Esse risco depende dos impostos que são usados para compensar a segurança social pela perda das receitas das contribuições dos patrões. Em França, uma longa lista de impostos e taxas está reservada, ou consignada, para segurança social. Inclui o IVA sobre o tabaco e o álcool, uma taxa sobre seguros de saúde privados e um imposto de solidariedade sobre as empresas, entre outros.
Em Portugal, o Governo disse apenas que o dinheiro virá do orçamento. Isso é dizer muito pouco. Expõe a medida à crítica vaga dos partidos de esquerda que são os “contribuintes” a subsidiar os patrões – ou, na versão da direita, a subsidiar a promessa de aumentar o salário mínimo – e, por isso mesmo, torna-a difícil de justificar.
Na campanha eleitoral, o PS tinha proposto que uma parte do imposto sobre os lucros das empresas, o IRC, substituísse uma parte TSU. Se fosse essa a solução, as empresas com lucros pagariam pela ajuda dada às empresas com trabalhadores com salários mais baixos. Passos Coelho pensou, em tempos, usar uma fatia do IVA. Nesse caso, a conta ficava para os consumidores.
Há tantas opções, quantos impostos. Mais tarde ou mais cedo, os partidos vão ter de escolher quem deve ajudar a pagar segurança social, ou em linguagem de especialistas, como se diversificam as suas fontes de financiamento. Essa revolução é inevitável, porque a TSU só por milagre volta a ser única.
Jornalista