A Universidade Feudal-Neoliberal
A universidade portuguesa continua como já era: irreformada, anquilosada, envelhecida.
Portugal deu, em poucos anos, um enorme salto na educação e na ciência. Quem olhar para os resultados do PISA ou para os números de novos doutorados poderá até pensar que tudo vai bem para Portugal na era do conhecimento. Tudo? Não. Bem no meio da paisagem, a universidade portuguesa continua como já era: irreformada, anquilosada, envelhecida.
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Portugal deu, em poucos anos, um enorme salto na educação e na ciência. Quem olhar para os resultados do PISA ou para os números de novos doutorados poderá até pensar que tudo vai bem para Portugal na era do conhecimento. Tudo? Não. Bem no meio da paisagem, a universidade portuguesa continua como já era: irreformada, anquilosada, envelhecida.
À primeira vista, isto pode parecer injusto. Então onde estão os doutorados, bolseiros e investigadores? Na periferia do sistema. É como se o poder político, por um lado descrente da sua capacidade para afrontar catedráticos, reitores e diretores, e por outro lado com vontade de apresentar resultados rapidamente, tivesse decidido esquecer as universidades e aplicar os seus esforços numa realidade paralela. E assim foram criados centros de investigação nas instituições universitárias, e esses centros foram povoados de bolseiros.
Isso, em si, não tem de ser uma coisa má: uma parte decisiva do nosso progresso em publicações, patentes e participação no debate científico internacional vem dos investigadores que estão em centros, como acontece noutras partes do mundo. Mas aquele passo essencial para o aumento de qualidade da nossa ciência era suposto ser também uma etapa na reforma do nosso ensino superior. Não foi.
Em resultado, coexistem hoje na universidade portuguesa dois mundos: o mundo neoliberal dos que permanecem bolseiros ou investigadores precários quando já estão bem adentrados na vida e o mundo feudal da universidade portuguesa como já era antes. Numa fase em que as universidades de todo o mundo se transformaram como nunca, nas universidades portuguesas aconteceu apenas uma coisa digna de nota: a fusão das universidades Clássica e Técnica de Lisboa, por António Sampaio da Nóvoa e António Cruz Serra. Os vícios mantiveram-se: abuso da precariedade de um lado complementado por uma burocracia rígida e formalista do outro e, claro, o velho pecado da endogamia — contrata-se quem já é da casa ou já fez favores à casta, em concursos de regras abstrusas que servem mais para eliminar candidatos inoportunos do que para ampliar o leque de escolha.
A chegada de um governo com um novo tipo de maioria parlamentar seria uma oportunidade para mudar este estado de coisas. Infelizmente pode ser uma oportunidade perdida. As propostas ministeriais em cima da mesa passam de facto os bolseiros para contratados, mas em contratos sucessivamente precários. Uma vez que o decreto-lei proposto pelo Governo é omisso em relação à necessidade de os júris serem internacionais e independentes, o problema da endogamia não é resolvido e pode até agravar-se. E depois temos o escândalo dos supostos professores convidados, que em Portugal são frequentemente bolseiros dando de graça — ou quase — aulas em cargas horárias desproporcionadas. Aquilo que o ministro considerou “normal em todo o mundo” — especialistas externos lecionando algumas cadeiras suplementares — não é o que se passa em Portugal, onde os professores convidados asseguram necessidades permanentes, muitas vezes no engodo de um dia poderem também entrar para o quadro num concurso feito à medida.
Isto significa que os dois mundos da universidade portuguesa estão em vias de uma convergência que não é boa para ninguém: em vez de um mundo neoliberal e outro feudal, teremos a universidade feudal-neoliberal. O resultado é mau para o país. É mau para os estudantes e para as suas famílias. É mau para a comparação nos rankings entre as universidades portuguesas e as estrangeiras. É mau para a atratividade do nosso ensino no mundo. E é mau investimento, porque significa desperdiçar uma proporção exagerada dos doutorados cujas carreiras apoiámos.
Ainda vamos a tempo de arrepiar caminho. Se queremos um país capaz de criar futuro é preciso fazer de uma vez por todas o debate sobre a renovação, abertura e rejuvenescimento do nosso ensino superior. Não é aceitável que esta maioria parlamentar passe ao lado da oportunidade de reformar profundamente a universidade portuguesa.