Fougueux: resolvido o enigma do navio desaparecido na batalha de Trafalgar

Uma tempestade pode ter consequências catastróficas em dias de batalha. Foi o que aconteceu em 1805 em Trafalgar. Apenas agora foram encontrados os últimos destroços do imponente navio francês Fougueux. E digamos que, mesmo assim, foi graças à matemática.

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O navio tinha 74 canhões Museu Nacional Marítimo, Greenwich, Londres

Em 1805, o Império Napoleónico estendia-se pela Europa. Vivia-se na época áurea de Napoleão, mas nesse ano houve um dissabor chamado batalha de Trafalgar. Mesmo em desvantagem numérica, as tropas inglesas venceram as forças navais francesas e espanholas. Esta derrota deixou as suas marcas e o Fougueux, um navio francês com 74 canhões, é também símbolo dela. Devido a uma tempestade nos dias seguintes, ninguém sabia exactamente onde tinha ficado submerso o grandioso navio. Uma equipa de cientistas da Universidade de Cádis, em Espanha, descobriu parte dos destroços da embarcação numa zona conhecida como Bajo de las Morenas e na baía de Cádis, onde decorreu a batalha de Trafalgar.

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Em 1805, o Império Napoleónico estendia-se pela Europa. Vivia-se na época áurea de Napoleão, mas nesse ano houve um dissabor chamado batalha de Trafalgar. Mesmo em desvantagem numérica, as tropas inglesas venceram as forças navais francesas e espanholas. Esta derrota deixou as suas marcas e o Fougueux, um navio francês com 74 canhões, é também símbolo dela. Devido a uma tempestade nos dias seguintes, ninguém sabia exactamente onde tinha ficado submerso o grandioso navio. Uma equipa de cientistas da Universidade de Cádis, em Espanha, descobriu parte dos destroços da embarcação numa zona conhecida como Bajo de las Morenas e na baía de Cádis, onde decorreu a batalha de Trafalgar.

Manhã de 21 de Outubro de 1805. Logo pelas 6h40 locais, as águas do cabo de Trafalgar, no Sudoeste de Espanha, começaram a ficar agitadas. Afinal, ia disputar-se uma batalha entre a Marinha britânica e a francesa e espanhola, que ficaria na história como a batalha de Trafalgar. O almirante britânico Horatio Nelson deu a ordem para que se preparasse a batalha e os britânicos formavam duas colunas.

As forças britânicas estavam em desvantagem em relação ao inimigo: 18 mil britânicos, com 2148 armas, confrontavam 30 mil franceses e espanhóis, com 2632 armas. Mas a superioridade francesa e espanhola não assustava os ingleses. O almirante Nelson tinha uma capacidade de motivar os homens que comandava que ficou conhecida como “o toque de Nelson”.

Simples e organizada é como se pode denominar a estratégia de Nelson. As embarcações britânicas iriam dividir-se em duas colunas, uma comandada por Nelson e a outra pelo seu amigo, o vice-almirante Cuthbert Collingwood. A coluna de Nelson iria atacar directamente a dianteira do inimigo, enquanto a de Collingwood iria em direcção à retaguarda.

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A tropa britânica formou duas colunas paralelas para atacar a força naval francesa e espanhola DR

Pelas 11h45, o almirante Nelson deu então a ordem para que a frota inglesa avançasse: “A Inglaterra espera que todos os homens façam o seu dever”, proclamava. Logo cinco minutos depois, Pierre-Charles Villeneuve, o comandante da frota francesa e espanhola, dava ordem para se atacar a frota inimiga, com o navio francês Fougueux. A batalha tinha começado.

A frota inglesa não se conteve e fez também os primeiros ataques ao navio espanhol Santa Anna. Este foi o primeiro de muitos navios destruídos pelos ingleses. Os inimigos vieram em linha oblíqua, como Nelson tinha suposto, e seguiram-se ataques ao Bucentaure, onde seguia Villeneuve. Ao longo da batalha, os franceses e ingleses deixaram demasiados espaços entre os navios, o que ajudou na vitória dos ingleses.

No final, contabilizaram-se 449 mortes britânicas e 1217 feridos. No lado dos franceses e espanhóis, as perdas foram pesadas: 4408 mortes, 2545 feridos e cerca de 20 mil presos. Quanto às embarcações, foram destruídos navios como o Agile, o Montblanc, o Redoutable e o Fougueux. Para agravar o cenário de destruição, houve uma tempestade nesse dia e nos dias seguintes no campo de batalha, que deixou à deriva muitos navios destroçados.

Até há bem pouco tempo, apenas se tinham encontrado 32 canhões e uma âncora do Fougueux. Mas onde estariam os restantes destroços de uma das mais imponentes embarcações da batalha de Trafalgar?

Do Agile, sabia-se que encalhou a 22 de Outubro em Torregorda (uma torre militar em Cádis) e que se tinha afundado a 25 de Outubro em Porto Real, uma vila na costa de Cádis. Do Montblanc também se sabe que foi capturado a 4 de Novembro pelo almirante britânico Strachan. Já o Redoutable foi capturado pelos ingleses e afundou-se no dia a seguir à batalha.

Do Fougueux é que não houve sinal durante muito tempo, apenas um relato do comandante do Redoutable, Jean-Jacques Lucas, pois o primeiro navio havia socorrido o segundo: “O Fougueux, que tinha combatido contra vários navios inimigos, foi abandonado sem ter arriado a bandeira. Estava já sem mastros e aparelhos e não era mais do que um casco ingovernável. ”

Tempestades opostas

Durante vários anos, o Centro de Arqueologia Subaquática da Andaluzia (Espanha) seguiu o rasto do navio inglório e encontrou um terço dos seus canhões. Mas, agora, um grupo de matemáticos e engenheiros químicos da Universidade de Cádis, coordenado por Manuel Bethencourt, conseguiu encontrar os restantes dois terços dos canhões e casco. E porquê matemáticos e engenheiros químicos? Porque foram os cálculos matemáticos que permitiram localizar o sítio onde estava o resto dos canhões do Fougueux.

Mas os cálculos, publicados recentemente na revista científica Archaeological and Anthropological Sciences, tiveram uma ajuda da natureza. Em Dezembro de 2009, Cádis viveu uma tempestade semelhante à que aconteceu durante a batalha de Trafalgar, com a mesma direcção e velocidades dos ventos, assim como as condições de maré idênticas. As tempestades terão começado com ventos de sul e passaram a ter ventos de norte. Durante os dias seguintes houve forte ondulação. “Foi um tempo invulgar, tempestades como esta apenas acontecem uma vez em centenas de anos”, afirma Manuel Bethencourt, em comunicado da Universidade de Cádis.

Estas informações foram complementadas com o trabalho do meteorologista britânico Dennis Wheeler, publicado em 1985 e 1995. Wheeler comparou tempestades recentes com a tempestade da batalha de Trafalgar, com o objectivo de reconstituir a tempestade histórica. O seu trabalho baseou-se em diários de bordo de navios ingleses que estavam em largo número no campo de batalha, e assim conseguiu reconstituir a tempestade a seguir à batalha. Dennis Wheeler também descreveu esta tempestade com ventos de forte intensidade, cujo pico foi atingido a 24 e 25 de Outubro.

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A pintura Batalha de Trafalgar, 21 de Outubro de 1805, Situação às 13 h Nicholas Pocock

Já dos documentos históricos que possam referir o Fougueux não se pode dizer o mesmo. “Não há documentos que indiquem o momento exacto em que o Fougueux encalhou na costa de Sancti Petri [ilhéu na província de Cádis]”, lê-se no artigo científico sobre o trabalho.

Apenas se sabe que os destroços do Fougueux se terão afundado provavelmente na tarde de 22 de Outubro de 1805. Mas nos registos históricos há apontamentos errados, como os que fez o vigilante da Torre Tavira (torre de vigia na cidade de Cádis) no seu diário, que escreveu que o Montblanc se tinha partido “aos bocados” na manhã de 25 de Outubro, quando na realidade foi o Fougueux. Ora, sabemos que o Montblanc tinha sido capturado uns dias depois de 25 de Outubro. Por isso, os autores do estudo concluíram: “Não encontrámos nas fontes históricas qualquer descrição ou referência ao resgate do resto do Fougueux, apesar da forte vigilância na área costeira.”

Resgatado pela matemática

Surgiu então a matemática a resgatar o navio naufragado. Para tal, foi usado um modelo de dispersão, mais exactamente um modelo que procura volumes tendo em conta as condições meteorológicas e oceanográficas. Desta forma, simularam-se as trajectórias das peças do navio a flutuar depois do naufrágio, levadas pelas correntes do oceano, pelo vento, pela turbulência, assim como a forma e a proporção dos objectos emersos e submersos, entre outros parâmetros.

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Investigadores em busca do Fougueux Universidade de Cádis

Mas os destroços não teriam sido encontrados sem a ajuda de um GPS subaquático, que foi usado numa área de 50 quilómetros quadrados entre Sancti Petri e Punta Poniente (na província de Cádis). Assim, encontraram-se canhões e âncoras do Fougueux a norte do local onde a batalha de Trafalgar tinha decorrido, espalhados por uma área de quase cinco quilómetros quadrados.

Os canhões e as âncoras encontraram-se aos poucos: primeiro, apenas um canhão; depois, 18 canhões e uma âncora; numa terceira fase, 22 canhões, uma âncora e outros elementos metálicos; e por fim, dois canhões, duas âncoras e o casco do navio. No total, encontraram-se 42 canhões e quatro âncoras.

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Ao todo, neste trabalho, foram encontrados 42 canhões Universidade de Cádis

Para se ter mesmo a certeza de que se tratava dos destroços do Fougueux fez-se ainda uma análise: compararam-se peças de cobre da segunda recolha arqueológica do Fougueux com peças de navios da mesma altura, como o francês Bucentaure e o espanhol Triunfante. Percebeu-se que as peças do Fougueux, construído em 1784, eram da mesma época do Bucentaure (construído em 1802) e do Triunfante (de 1753). Além disso, os 74 canhões e as cinco âncoras encontrados correspondiam ao tamanho e ao calibre de normas francesas (de 1765) para fabrico de artilharia.

Mais do que a descoberta, o modo como se desvendou o mistério do Fougueux pode servir de exemplo para outros trabalhos arqueológicos. “A arqueologia subaquática pode beneficiar da aplicação da modelação numérica. Pode ser usado para o estudo de áreas próximas em que tenha ocorrido previamente um estudo arqueológico ou uma prospecção”, lê-se no artigo. “A costa de Cádis é uma das áreas mais importantes para a arqueologia subaquática no mundo”, diz-nos ainda Manuel Bethencourt. Contudo, há um senão, acrescenta Manuel Bethencourt: “Esta metodologia foi usada numa região onde o padrão climático não mudou muito entre a altura do naufrágio e o presente.”

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A pintura A queda de Nelson, que mostra o momento em que o almirante Nelson levou um tiro Denis Dighton

E assim se resolveu um mistério que permanecia há mais de 200 anos, numa batalha que feriu o império de Napoleão e matou o almirante-herói inglês. Nelson foi ferido a tiro no navio Victory e acabou por morrer no próprio dia. Em sua honra ergueu-se uma estátua na Praça de Trafalgar, em Londres. Afinal, mesmo que o vencedor de uma batalha naval morra ou um dos navios considerados indestrutíveis se afunde, a história pode ter um final feliz – a do Fougueux teve uma mão da matemática.