Mário Soares (1924-2017), o homem que nunca desistiu

Mário Soares foi o homem, o político, o pensador, o fundador da democracia. Viu, viveu, fez viver e mudar. Poucos como ele ficarão nos livros da história. Uma história de alguém que nunca desistiu e que aqui se conta.

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Mário Soares foi Presidente da República entre 1986 e 1996 alfredo cunha
  1. A infindável vontade de influenciar
  2. O homem que nunca desistiu 
  3. Aquela última campanha
  4. Em Belém: força de bloqueio
  5. A eleição de uma geração
  6. PS, o Stradivarius de Soares
  7. A Europa: bluff em Genebra
  8. Sim, senhor primeiro-ministro (e o “horror” à Polónia)
  9. D, de descolonizar – o abraço de Lusaca
  10. Democracia. Moscovo entra na rima
  11. PREC. Greve à mesa de O Chocalho
  12. As pontes na fundação do PS
  13. Do início: “Que ninguém se resigne”

No sábado 23 de Julho de 2016, numa tarde de canícula, amparado pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e acompanhado pelo primeiro-ministro, António Costa, Mário Soares apareceu, com passo tímido, por entre duas portas da residência oficial de São Bento. Percorreu lentamente a curta distância que o separava de um alpendre. Sentado num cadeirão, de boné na cabeça, acompanhado pelos filhos João e Isabel e por netos e bisnetos, foi deste palco improvisado que assistiu às comemorações do 40.º aniversário da formação do I Governo constitucional liderado por si, o primeiro executivo saído de eleições livres. Foi uma oportunidade do país político, de correligionários e adversários, de amigos e antigos colaboradores, lhe prestarem em vida uma última homenagem.

Nos jardins de São Bento ouviram-se discursos sobre o início da caminhada democrática e constitucional da política portuguesa no último quartel do século XX. Mas o acto tinha outro simbolismo que o ditado pelo calendário. Boa parte da classe política ali estava: Ramalho Eanes, Passos Coelho, Costa e os ministros do actual Governo… E também correligionários: Manuel Alegre, António Arnaut e Rui Vilar. Amigos pessoais de outras áreas – Leonor Beleza, Proença de Carvalho, Ângelo Correia, Francisco Pinto Balsemão e Carlos Pimenta. Ex-colaboradores como Carlos Gaspar ou Joaquim Brandão. Admiradores do seu pensamento, como Eduardo Lourenço e André Freire, e da sua praxis, como o coronel Vasco Lourenço. E amigos cúmplices, como o padre Vitor Melícias.

As palavras mais proferidas nessa tarde foram “pontes”, “consensos” e “coragem”. A Soares chegavam algumas destas palavras nas explicações dos filhos João e Isabel, quando o ruído da zona abafava o som da megafonia. Foi o prazer de uma despedida em vida, a possibilidade de tirar algumas – poucas – fotos com Mário Soares, e o anúncio-convocatória para um ou outro jantar. A tranquilidade dos jardins deu intimidade e serenidade ao acto a que não compareceram Medeiros Ferreira e Almeida Santos, já falecidos, e Miguel Veiga, também já desaparecido, ouvidos pelo PÚBLICO neste trabalho.

A infindável vontade de influenciar

Apenas há três anos, com Soares em actividade incandescente e de verbo pronto, os epítetos que lhe eram dirigidos eram outros: crítico desabrido, nostálgico fora de tempo, idoso esquerdista ou, simplesmente radical, suscitadas pelas suas declarações sobre a actualidade política nacional e internacional. Quem foi apelidado de pai da democracia, o resistente à ditadura, o lutador do Verão quente de 1975 era severamente julgado por uns pela forma como analisava o Governo Passos Coelho, a função presidencial de Aníbal Cavaco Silva ou as lideranças no PS. Como se entrasse em contradição com o seu passado de homem de pontes, defensor de compromissos e de atitudes pragmáticas. As suas palavras eram duras. As apreciações contundentes. Mesmo violentas. Subjacentes tinham o mesmo empenho de sempre. A mesma irreprimível vontade de influenciar que marcou o seu percurso político. 

Em 2000, quatro anos depois de abandonar a Presidência, Soares iniciou uma colaboração regular com o PÚBLICO que, em Julho daquele ano, é estendida ao diário catalão La Vanguardia. A possibilidade de contar com artigos de opinião do ex-Presidente entusiasmou Lluis Foix, então director-adjunto do jornal de Barcelona. Foix, antigo correspondente em Londres e Washington, homem próximo da Opus Dei, conhecia e admirava Mário Soares. Na primeira página da edição de 3 de Julho era destacada a publicação do artigo inicial de uma colaboração que os catalães anunciavam com orgulho. Era sobre um tema de política internacional pouco comum na imprensa do outro lado da fronteira: as relações da União Europeia com África, nas páginas de um jornal que sempre olhou para além do umbigo catalão.

Outros artigos, poucos, se sucederam. Soares desinteressou-se. Treze anos depois, no escritório da sua Fundação, explicou a razão de ter abdicado da colaboração no principal jornal da Catalunha e um dos títulos mais prestigiados de Espanha: “Sabe, o La Vanguardia é pouco lido em Portugal.” A sua mensagem não chegava ao destinatário. A influência pretendida não era conseguida. O seu objectivo era influir e fazer política.

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Nuno Ferreira Santos

O homem que nunca desistiu 

“Mário Soares está para a política como Picasso para a arte, a política é a sua grande vocação e destino, fará política até ao último dia.” Quem assim o define é José Manuel dos Santos, seu assessor cultural nos dois mandatos presidenciais. Afinal, esta é uma área de consenso, desde que, nos anos 70 do século passado, Soares foi classificado como animal político. É essa a sua pele. A política é o seu habitat.

“Um improvisador de uma nota só, a nota Soares.” Assim o classifica Joaquim Aguiar, que foi seu assessor político em Belém. Mário Mesquita, fundador do PS, ex-deputado e antigo director do Diário de Notícias, aponta noutra direcção: “Um homem de cultura política, não é um especialista de áreas, tem como arma a intuição que é um elemento essencial.” José Medeiros Ferreira, ministro dos Negócios Estrangeiros no I Governo constitucional, destacava: “Mário Soares tem uma notável intuição política e é normalmente uma pessoa bem informada.”

Onde está intuição Carlos Gaspar vê um exercício mais elaborado que o mero acaso dos sentidos. “Em todos os momentos da sua vida sempre acertou na tendência dominante do seu tempo”, refere o antigo consultor da Casa Civil da Presidência: “Foi um intelectual que fez um partido e acertou sempre na mudança, que não é, sobretudo, uma mudança portuguesa, mas a do espirito do tempo.” Da queda do comunismo às vitórias sociais-democratas na Europa, dos processos democráticos na América Latina às transições democráticas na Europa do Leste. Em todas estas situações teve o passo certo no momento idóneo. “Vive dos sentidos, a maior parte das horas da sua vida foram felizes”, assegura Manuel dos Santos.

Recém-empossado o Governo de Passos Coelho, Soares gabou-lhe o estilo. “Elogiou-o pelo conhecimento indirecto que lhe foi comunicado por Luís Fontoura”, assegura o seu antigo assessor cultural. Depois, como o próprio confessa, foi a decepção. Depois veio a indignação expressa com desassombro, em voz alta. “O novo esquerdismo de Mário Soares é a nostalgia de uma nostalgia antiga à qual, aliás e por contradição, nunca ligou muito”, elabora Joaquim Aguiar: “A história andou mais depressa do que os políticos, agora é impossível voltar ao passado.”

Desactualizado quem sempre esteve na crista da onda? “Ele acha que a ideia que vai prevalecer não é a ideia dominante, sejam os swaps ou outra”, contrapõe Carlos Gaspar. “O radicalismo dele não é nostalgia, acha que em cada momento histórico há uma ideia forte que vai prevalecer.” Ou, como afirma Mário Ruivo, amigo desde 1944 dos tempos do MUD-juvenil [Movimento de Unidade Democrática que combateu a ditadura], Soares teve o condão de tomar a iniciativa: “Sempre assim foi nos momentos difíceis, na situação actual tem reafirmado o valor de uma democracia genuína.”

Deste modo, o essencial para o antigo Presidente da República sempre foi ter um rumo definido assente numa visão clara. Uma ideia, não um turbilhão. O que implica análise e selecção. E evita a dispersão. O slogan de lançamento do PS na vida política nacional após o 25 de Abril – “A Europa connosco” – é exemplo de sucesso de uma escolha que o levou à vitória nas primeiras eleições democráticas. E o confirmou como dirigente político.

“Ele foi ao Fórum Social Mundial de Porto Alegre com curiosidade, o que observou fê-lo mudar, percebeu o que ali se movimentava do ponto de vista de projectos políticos”, relata Manuel Carvalho da Silva. A expressão de uma dinâmica sociopolítica que levaria Lula da Silva à Presidência do Brasil. A consolidação de uma nova realidade, a dos países emergentes. “Mário Soares, a convite de Lula, foi para a cabeça de uma das manifestações e sentiu que havia um movimento organizado de resistência à onda do liberalismo”, prossegue o antigo secretário-geral da CGTP. “Tinha muita curiosidade em saber quem era este ou aquele, perguntava a mim e ao Boaventura Sousa Santos, a curiosidade dele era quase juvenil”, recorda Carvalho da Silva.

Um frenesim já detectado por Sérgio Sousa Pinto, que acompanhou Soares na lista do PS para o Parlamento Europeu entre 1999 e 2004. “Foi mais que atento e activo, tem uma capacidade crítica e uma curiosidade tremendas, nunca lhe vi paternalismo, ouve tudo, acha que os jovens são melhores que os velhos, põe-se sempre em plano de igualdade, é daí que advém a sua frescura”, refere. Dos trabalhos de eurodeputado e das tertúlias em Estrasburgo e Bruxelas foi publicado um livro – Diálogo de Gerações – e nasceu uma convicção. “Se Mário Soares se instalasse no seu estatuto e idade cristalizava, ele não se deixa acantonar, não aceita ruas, avenidas ou estátuas, não se deixa petrificar”, comenta Sousa Pinto.

“Não quer o seu nome em ruas porque acha que isso já é a morte”, observa José Manuel dos Santos. Mas o próprio Soares admitia como inevitável a inscrição do seu nome na toponímia. Há quem, com reserva de afecto, insista mesmo que “adoraria ter estátuas e o nome nas avenidas”. Uma ambivalência que advém de uma preocupação. “Tem uma obsessão com o que vai ser o seu lugar na História”, aponta Carlos Gaspar.

Aquela última campanha

Para o bem e para o mal, em boa medida esse lugar já está há muito definido. Décadas de vida política o atestam. Foi líder partidário, ministro, chefe de Governo, Presidente da República, vice-presidente da Internacional Socialista, conferencista, polemista... Num percurso que parece um compêndio de História, lutou contra o fascismo, celebrou a derrota do nazismo, viu o apogeu e queda do comunismo, a afirmação da social-democracia. Privou com sucessivas gerações de dirigentes. Na Europa e no Mundo. Teve reconhecimento. Viveu intensamente os acontecimentos do seu tempo.

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DR

Tudo isto recordou no jantar comemorativo dos seus 80 anos, em 7 de Dezembro de 2004, no pavilhão da FIL, em Lisboa. Dois mil convidados de um amplo espectro político e social, de múltiplas actividades, que trocaram cumplicidades  pelo afastamento, ouviram-no proclamar o fim do seu trajecto político. Falou “da mundialização selvagem, desregulada e sem ética, da desordem internacional e ecológica, do decréscimo do humanismo universalista e do consequente aumento da irracionalidade e do esoterismo...” Denunciou o desrespeito dos direitos humanos, o excesso de consumismo, o descontrolo da comunicação social, a criminalidade organizada e o dinheiro sujo de actividades ilícitas que invadiu o sistema financeiro.

Criticou a impunidade geral e a desumanidade crescente. Com o mesmo vigor com que, anos antes, erguera a sua voz contra a intervenção militar no Iraque, na sequência da cimeira das Lajes, em 16 de Março de 2003. Alguns dos que o acompanharam na noite do seu 80.º aniversário tinham apoiado a política de George W. Bush e ouviram o seu alerta: “Vamos mal! Estamos a assistir a um recuo civilizacional muito perigoso, que importa denunciar, por todas as formas, como primeira etapa para uma reacção eficaz.” Mas, em tom solene e definitivo, disse “Basta!”, afastando-se de novas batalhas – ou seja, da candidatura à Presidência da República.

Porém, em 31 de Agosto de 2005, no Hotel Altis, em Lisboa, revelou o manifesto eleitoral da sua terceira candidatura à Presidência da República. Soares escreveu que foi o agravamento da situação política nacional e da União Europeia que o tornou sensível às pressões de amigos que o queriam novamente em Belém. “Acompanhei a reflexão dele, na embaixada do Brasil tivemos uma conversa a sós sobre os cenários, para mim era muito importante que a esquerda ganhasse a Presidência da República, o que a própria esquerda então secundarizou, e o país está hoje a pagar uma factura importante por isso”, refere Manuel Carvalho da Silva. “Pela minha parte, havia mais uma postura de solidariedade para com ele do que saber se tinha condições para vencer”, anota o antigo dirigente sindical.

Para José Manuel dos Santos, Soares estava seguro que Cavaco Silva ia ser um desastre como Presidente. A pressão dos soaristas Vasco Vieira de Almeida, Dias da Cunha e Mário Ruivo fez o resto. “Mário Soares saiu do segundo mandato como uma espécie de rei, mas a ideia de poder voltar nunca o abandonou”, admite o seu antigo assessor cultural: “No entanto, quando, no jantar dos 80 anos, disse que basta de política, foi genuíno, achava que não tinha condições nem idade.”

Mário Ruivo tem outra versão: “Na nossa relação, cada um decide por si próprio, quando ele me anunciou que se ia candidatar, disse-lhe que estava solidário, hoje sabemos que teria sido muito importante a sua vitória, a evolução política do país estaria noutra linha.” O biólogo refuta a crítica, comum então, de que o candidato estava esgotado: “O factor idade era um pseudo-argumento, quando as memórias funcionam somos curiosos e temos uma rodagem esse problema não existe, Mário Soares está atento às pessoas e à sociedade.”

Ferro Rodrigues, antigo secretário-geral do PS, recorda como lhe foi comunicado o anúncio: “Foi no Verão de 2005, estava no Algarve de férias e ele convidou-me para a casa do Vau, disse-me que se ia candidatar.” O antigo dirigente socialista percebeu a oposição da família: “Eu estava a favor, achei que se ele avançasse Cavaco Silva podia perder, nunca pensei que ia haver a candidatura de Manuel Alegre.”

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Miguel Manso

Já Almeida Santos, presidente honorário do PS, não era optimista: “Disse-lhe que não concordava, mas que estava com ele, é evidente.” E explicou: “Há sempre um limite de idade para todas as coisas, foi um erro da parte dele ter-se candidatado, tinha um passado político perfeito e só podia piorá-lo, as condições objectivas indicavam que só podia piorar.” Se Almeida Santos admitiu que Soares “perdeu pela idade”, relativizou os danos: “A candidatura não o prejudicou muito, ele é mata-borrão, neutraliza tudo o que pode haver de mal.”

Raul Morodo, advogado e antigo embaixador de Espanha em Lisboa, amigo de longa data que Mário Soares trata por “irmão”, ainda hoje se mostra surpreendido com a terceira candidatura a Belém: “Ele viu-se forçado, não pensava, não acredito que pensasse que ia ganhar, mas a sua função na vida é estar em política, não é ser estranho às situações.”

Antes de anunciar a candidatura, Soares multiplicou-se em contactos. “Era então grão-mestre da Maçonaria, ele veio falar comigo mas já tinha decidido, estava ciente de que era o seu caminho e só procurava uma caução”, recorda António Reis. No seu ensaio autobiográfico – Um Político Assume-se – Mário Soares escreveu que, à esquerda, houve movimentações para o seu apoio. Refere uma reunião com Domingos Abrantes, dirigente do PCP, que recusou falar ao PÚBLICO, e de encontros com Francisco Louçã. “Falou comigo várias vezes, sempre convites por iniciativa dele, disse-me que tinha falado com o Domingos Abrantes, tentou criar uma rede de conversas”, precisa o ex-coordenador do Bloco de Esquerda.

A candidatura avançou, longe da velocidade de cruzeiro almejada pelos seus apoiantes. E com adversário no mesmo campo político: Manuel Alegre. Uma circunstância que levou ao rompimento de uma relação forjada após o 25 de Abril de 1974 e que só oito anos das presidenciais depois foi reatada. “Ele acha que se não tivesse havido a candidatura de Alegre teria ganho, opinião que não partilho”, afirma José Manuel dos Santos. “Com um candidato com 80 anos, a campanha parecia ser um apego ao poder, Manuel Alegre só funcionou porque Mário Soares não estava a funcionar.”

O envolvimento do PS na candidatura do seu fundador, como o próprio candidato reconhecerá, não foi linear. Com o Governo de José Sócrates muito questionado, a presença de ministros nos actos de campanha ameaçava ser mais um lastro que um apoio. “Sócrates nunca encarou a questão presidencial como devia ser encarada, para ele não era importante. Além do mais o facto de Alegre ser candidato afastava este da vida interna do PS”, observa Manuel dos Santos. “Manuel Alegre achava que Mário Soares não avançava e Soares considerou que se avançasse Alegre não avançaria”, afirma o antigo assessor em Belém. “A última candidatura foi mais uma questão de voluntarismo político que de intuição, foi um erro, deixou-se influenciar”, constata Alberto Arons de Carvalho, fundador e antigo dirigente do PS. “Mário Soares pode ter sido um instrumento de Sócrates para resolver a questão de Manuel Alegre, e que afinal não resolveu”, analisa Arons de Carvalho.

A vida interna do partido era, assim, um outro tabuleiro, cujas vicissitudes terão escapado ao candidato. De algum modo, Soares era um homem só. A sua família socialista estava dividida em duas candidaturas e o aparelho partidário não era célere e eficaz. “A surpresa foi negativa, não era aconselhável a divisão de votos em duas candidaturas, houve um erro, não me quero pronunciar qual dos dois – Soares ou Alegre – foi responsável, dessa responsabilidade peço reserva”, comentou Almeida Santos. “Mário Soares percebeu tarde que não ganhava e achei melhor demitir-me de director da campanha”, afirma Alfredo Barroso. “Estava em conflito com o PS, tinha criticado Sócrates pelo que deixara de ter acesso ao partido o que era indispensável, e Soares varreu-me da memória”, descreve o antigo chefe da Casa Civil da Presidência da República na década dos dois mandatos presidenciais e fundador do PS.

“Ficámos sem a experiência de um terceiro mandato de um presidente”, sintetizava Almeida Santos, então presidente honorário do PS. É impossível saber como Mário Soares teria actuado com o Governo de José Sócrates debilitado, uma crise económica aguda, uma ajuda externa diferente da vivida nos anos 70 e 80 do século passado quando era primeiro-ministro. Teria resistido o executivo minoritário socialista? Haveria outra solução para além das eleições que acabaram por dar a vitória a Passos Coelho? A posição governamental face aos credores e à Europa seria a mesma? Teria alguma mão “abanado o arbusto”, como se queixou Sócrates de Cavaco Silva?

Em Belém: força de bloqueio

José Manuel dos Santos recusa dividir os dez anos de Mário Soares em Belém, entre 1986 e 1996, num primeiro mandato discreto e num segundo interventivo. “A magistratura de influência foi usada desde o primeiro mandato”, salienta o ex-assessor. Consistia numa acção ampla: “Era tudo, desde as conversas em privado às presidências abertas, aos vetos, à recusa de dar posse a Fernando Nogueira [sucessor de Cavaco e rival de António Guterres nas eleições de 1 de Outubro de 1995] como vice-presidente e ministro sem pasta.” E recorda uma preocupação sempre presente do então Presidente na época de abundância dos fundos comunitários, do lançamento de obras públicas e de um inusitado bem-estar económico para os padrões nacionais: “O Presidente deu sinais de denúncia da corrupção que se ia instalando, do espirito ostensivo do dinheiro e do novo-riquismo, num pensamento claro.”

No entanto, Manuel dos Santos admite uma diferença de estilos: “No primeiro mandato ele sabia que tinha ganho por poucos votos a Freitas do Amaral [51,18% contra 48,8%] e tinha de se afirmar como Presidente de todos os portugueses.” Já no segundo, “quis distanciar-se e sair de Belém de outra maneira.” Uma diferença de atitude que o antigo colaborador sintetiza em dois actos distintos: “Soares é uma pessoa de símbolos e se na posse do primeiro mandato vai pôr uma coroa de flores à estátua de Luís de Camões, símbolo unificador da pátria, no segundo põe as flores na estátua de Antero de Quental [um dos fundadores, em 1875, do Partido Socialista Português que existiu até 1933], simbolizando o apreço pelos valores políticos a que esteve sempre ligado.”

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Com Álvaro Cunhal DR

As presidências abertas do segundo mandato foram consideradas pelo executivo do PSD como uma ingerência e desafio à sua autoridade. “Foram uma inovação”, contrapõe Mário Ruivo. Cavaco Silva classificou a acção presidencial como incentivadora das forças de bloqueio que queriam travar o labor governamental. Ficou célebre o “deixem-me trabalhar” do primeiro-ministro, em oposição ao que definia como pressão das denominadas forças de bloqueio. “O cargo de Presidente permitiu-lhe uma grande mobilidade política e física”, afirma Alfredo Barroso. Por isso, o chefe da Casa Civil reconhece que a presidência foi cómoda para Soares: “Em Belém não há constrangimentos, pode fazer política, tomar distâncias, aproximar-se e intervir.”

Foi o que fez na greve geral de 27 de Março de 1988, a primeira que uniu as duas centrais sindicais – a CGTP e a UGT. “Foi um acto único de um presidente da República, nunca um presidente se pronunciara ou teve uma atitude activa colocando-se ao lado dos trabalhadores num conflito laboral”, recorda Manuel Carvalho da Silva. “Fiz-lhe muitas críticas, mas ter-se pronunciado em termos de concordância com a greve foi muito positivo.” O antigo secretário-geral da CGTP refere que o que estava então em jogo era decisivo: “Foi travada uma revisão das leis laborais e salvaguardado o quadro que vigorou até ao ano 2000, evitou-se que o retrocesso fosse muito mais cedo com prejuízo para os trabalhadores e para o desenvolvimento do país.” Uma posição que Carvalho da Silva atribui não, apenas, ao conhecimento da situação social: “Mário Soares utilizou até às últimas consequências o seu magistério de influência, é um acto que demonstra a sua intuição.”

O que não agradou em São Bento. Cavaco terá recordado as palavras de Soares no primeiro encontro que tiveram na sede do PS, então na Rua da Emenda, após a sua eleição como líder do PSD no Congresso da Figueira da Foz, de 17 a 19 de Maio de 1985. “Disse-lhe coisas desagradáveis, entre as quais que não tinha biografia”, recorda Barroso: “De início, subestimou-o e depois dizia que Cavaco aprendeu depressa, ou seja, que já sabia lidar com ele. ”Em entrevista ao PÚBLICO (23 de Junho de 2013), Mário Soares relembrou a sua relação com Cavaco Silva: “Se quando fui eleito, tivesse substituído o primeiro-ministro teria tido dificuldades em unir o país, fui Presidente eleito por uma escassa maioria e não queria que o país ficasse dividido.” Um cuidado testemunhado por João de Deus Pinheiro, ministro dos Negócios Estrangeiros entre 1987 e 1992, que acompanhou o Presidente em inúmeras visitas de Estado. “Nunca disse mal do Governo no estrangeiro”, salienta o antigo chefe da diplomacia portuguesa e ex-comissário europeu.

O segundo mandato presidencial ocorreu quando na sociedade portuguesa se manifestavam os primeiros sinais de esgotamento da via seguida pelo executivo do PSD. Alfredo Barroso anota este facto como motivo das intervenções do Presidente. Se, no primeiro mandato o Presidente exerceu o seu veto por sete vezes, duas sobre decretos-lei do executivo e cinco em leis aprovadas na Assembleia da República, o segundo quinquénio foi diferente: 30 vetos, 23 a decretos-lei do Governo e os restantes sete a leis do Parlamento. E a presidência aberta da área metropolitana de Lisboa, de Janeiro a Fevereiro de 1993, marcou o início das hostilidades frontais com Cavaco, pondo em causa a intocabilidade do primeiro-ministro.

As observações do inquilino de Belém não foram, apenas, destinadas a quem governava. O congresso Portugal, Que Futuro?, foi uma iniciativa que teve vários destinatários: o Governo, após uma década de gestão, mas também espicaçar António Guterres, secretário-geral do PS na oposição, que viria a ganhar as eleições de 1 de Outubro de 1995 a Fernando Nogueira.

Noutros casos, a acção do Presidente, mais discreta que os discursos ou as visitas pelo país, teve outros destinatários. “O momento que mais marcou a minha aproximação com Mário Soares foi em 1992/93, o período de saída de um significativo número de dirigentes da CGTP de sensibilidades diversas desenhando-se um cenário de possíveis rupturas”, refere Manuel Carvalho da Silva. O líder que sucedeu a José Luís Judas prossegue: “Falei muitas vezes com Soares sobre a situação, a sequência dessas trocas de opinião está na base da ida de Álvaro Cunhal [secretário-geral do PCP, força importante da CGTP] a Belém.” Ou seja, o Presidente da República foi influente numa fase de instabilidade da situação na central sindical. Alfredo Barroso recorda esse encontro entre dois homens que “tinham uma relação de fascínio e de muita desconfiança que se atenua quando Soares vai para Presidente da República”. Segundo o antigo chefe da Casa Civil, a situação da CGTP foi abordada pelos dois num almoço no Palácio de Belém.

A eleição de uma geração

Quando, em 1985, decidiu avançar com a candidatura a Presidente da República, Mário Soares vivia um momento pouco auspicioso da sua vida política. A 24 de Fevereiro, estruturou-se, como partido, a ameaça eanista que há muito pairava sobre o PS. Foi criado o Partido Renovador Democrático (PRD), cujo primeiro líder, Hermínio Martinho, seria eleito a 15 de Junho, em Tomar. O Governo PS-PSD, liderado pelo dirigente socialista, não resistiu aos problemas internos do segundo partido. O vice-primeiro-ministro Carlos Mota Pinto demite-se, em Fevereiro, da presidência da Comissão Política e morre em 7 de Maio. Dez dias depois, Aníbal Cavaco Silva, antigo ministro das Finanças de Francisco Sá Carneiro, ganha o congresso "laranja" da Figueira da Foz. A nova orientação política do parceiro governamental leva à saída de 13 ministros e secretários de Estado do executivo e à inevitável demissão de Soares. As eleições antecipadas de 6 de Outubro são vencidas por Cavaco Silva, com o PS, cuja lista era encabeçada por Almeida Santos, a ficar a nove pontos. E menos de três pontos à frente do PRD.

Tudo indiciava, portanto, um virar de página na vida política nacional. No horizonte perfilava-se como irremediável a perda de influência dos socialistas. Um fim de ciclo. Na corrida presidencial, Maria de Lourdes Pintasilgo já estava no terreno como candidata, apoiada por sectores da esquerda, quando, a 27 de Junho, os socialistas decidiram apoiar Mário Soares a Belém. “Para alguns dirigentes do PS foi uma maneira amável de se verem livres de mim”, admitiu o próprio no seu ensaio autobiográfico. Contava, então, 13 anos de secretário-geral e, por três vezes, tinha sido primeiro-ministro. Os comunistas indicavam o seu dirigente Ângelo Veloso e, em 12 de Novembro, Salgado Zenha, anuncia a sua candidatura que viria a receber o apoio do PCP na primeira volta. Foi assim que acabou uma relação de amizade de 40 anos com Soares, e o único dueto que dirigiu o PS. Diogo Freitas do Amaral era o candidato da direita unida.

“Ninguém acreditava na minha candidatura, salvo o Joaquim Aguiar”, dirá, anos mais tarde, o candidato. “A ser eleito, Freitas do Amaral iria ser um presidente da República do PSD e do CDS, haveria a sobreposição de duas maiorias, a parlamentar e a presidencial, e a iniciativa do General Ramalho Eanes de formar um partido, contra a qual estive contra, e um candidato, Zenha, vindo do PS, favorecia um quadro de bases partidárias fraccionadas”, comenta Joaquim Aguiar, então assessor político da Casa Civil de Eanes.

“Era uma situação que desequilibrava o sistema político”, destaca. Foi o que comunicou numa conversa com Soares: “Disse-lhe que podia ganhar, bastava que Freitas do Amaral não ganhasse à primeira volta e conseguir o apoio do PCP na segunda, o que arrastaria os eleitorados de Zenha e Lourdes Pintasilgo.” Nestas contas, era fundamental que Pintasilgo não desistisse da primeira volta, para conseguir que, à esquerda, o rival de Freitas fosse Soares.

Parecia simples mas, na verdade, não era linear. É certo que entre os nomes que integravam o MASP [Movimento de Apoio de Soares a Presidente], para além de socialistas, estavam muitos independentes. E nomes como José Manuel Homem de Mello, patriarca da família Espírito Santo, e Miguel Veiga, o advogado portuense fundador e antigo vice-presidente do PSD. “Estava muito mais próximo politicamente do dr. Mário Soares do que de Freitas, não apenas do ponto de vista do legado político mas também sobre a forma de organização da sociedade, costumes e comportamentos”, revelou Veiga. No Expresso, um texto de Francisco Pinto Balsemão, Os verdadeiros sociais-democratas, distanciava outro fundador do PSD da candidatura de Freitas do Amaral. “O facto do apoio do PSD ter tido dissidências de personalidades importantes teve influência, todos os votos contavam”, reconhece Proença de Carvalho, então mandatário da campanha de Freitas. Entre os apoiantes, recorda José Manuel dos Santos, estava também o general António de Spínola.

Um apoio, cujo enquadramento é desenhado por Alfredo Barroso: “Como primeiro-ministro [de Julho de 1976 a Agosto de 1978], Soares quer que Spínola volte [fugiu depois da tentativa de golpe de Estado de 11 de Março] e propõe uma amnistia para o neutralizar.” Com o regresso do general do monóculo, em Agosto de 1976, mantém-se fluida a relação entre os dois. “Todos os chefes da Casa Militar da Presidência da República sempre foram escolhidos por sugestão de António Spínola”, acentua o antigo chefe da Casa Civil.

Apesar desta autêntica paleta de apoios, a campanha do MASP para as presidenciais de 26 de Janeiro de 1986 arranca sem força. “Os socialistas estavam atordoados com a dispersão dos votos da esquerda por quatro candidatos, um dos quais – eu próprio – muito marcado pela derrota do PS nas recentes eleições legislativas”, admitirá Mário Soares.

“Até aos incidentes da Marinha Grande [agressões ao candidato e comitiva à entrada da empresa vidreira Fábrica-Escola Irmãos Stephens] Soares fez uma campanha de arrependimento da sua acção governativa, como primeiro-ministro, então passou a ser a vítima”, analisa Joaquim Aguiar. No rescaldo da agressão, o candidato, que tentara a sedução com os rivais à esquerda, à excepção de Francisco Salgado Zenha, lançou uma das suas mais célebres palavras de ordem que marcou a campanha: “A Marinha Grande é do povo, não é de Moscovo.” Particularmente intenso, do ponto de vista emocional, foi o frente-a-frente televisivo com Salgado Zenha. “Houve contenção”, recorda Aguiar. 

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Adriano Miranda

Contudo, a análise fina de Joaquim Aguiar, um verdadeiro exercício de engenharia política, confirma-se. Contra todos, Soares passa à segunda volta para defrontar Freitas do Amaral: 25,4% contra 46,3%. A preocupação de Aguiar com a candidatura de Pintasilgo revelou-se também certa. A antiga primeira-ministra, que não desistiu e foi às urnas, teve pouco mais de 7%, e Zenha, com o apoio do PCP que retirou a candidatura de Ângelo Veloso e dos eanistas, registou 20,8%. O que permitiu ao candidato do MASP triunfar à esquerda. “Mário Soares fez uma campanha brilhante na primeira volta, colocou-se entre o centro/direita e o centro/esquerda, eliminando Zenha e Pintasilgo”, reconhece o mandatário de Freitas. Faltava o segundo andamento. Conseguir o apoio indispensável dos comunistas.

“A campanha mostrou que a derrota dos candidatos de direita (Freitas e Soares) e a vitória do único candidato da democracia em condições de vencer as eleições (Salgado Zenha) está inteiramente ao alcance do nosso povo”, dissera Álvaro Cunhal, quatro dias antes da primeira volta, num comício no Pavilhão de Desportos de Lisboa. “Na noite da primeira volta concluímos que tínhamos de votar em Soares, mesmo que tivéssemos que convocar um congresso extraordinário”, admite Carlos Brito, antigo dirigente do PCP. “Cunhal tinha muito sentido republicano, a dificuldade de relacionamento com Mário Soares não era suficiente para impedir o acordo.” No dia imediato à contagem dos votos, o director da campanha do MASP, Gomes Mota, e Jorge Sampaio, encontram-se no Hotel Altis, em Lisboa, com Carlos Brito e Octávio Pato. No XI Congresso extraordinário, os comunistas decidem o apoio: “Mantendo integralmente o seu juízo acerca de Mário Soares e da sua política, o PCP considera imperativo que os trabalhadores, democratas e patriotas, para derrotarem Freitas do Amaral, votem em Mário Soares.”

Uma reviravolta inesperada para a direita. “Na segunda volta, Soares radicalizou à esquerda, diabolizou Freitas do Amaral e, no minuto seguinte a ter ganho as eleições, mudou o discurso”, lembra Proença de Carvalho. “Afirmou querer ser o Presidente de todos os portugueses, foi muito táctico.” O que passou para a história dos comunistas como “engolir sapos” e vencer nas urnas com Soares, que foi Presidente improvável e contra todos.

PS, o Stradivarius de Soares

A vitória presidencial teve, a nível pessoal, um sabor amargo. A ruptura com Salgado Zenha, o fim do dueto que conduzia o PS, a quebra de uma relação de décadas e de uma amizade familiar. “O par só se desfaz na candidatura presidencial, Soares é um homem de compromissos, não queria a ruptura”, afirma Carlos Gaspar.

Não era a primeira vez que os dois socialistas se afastavam. Zenha, como os membros do ex-secretariado, apoiara a recandidatura de Eanes que, caso nunca visto, levou o secretário-geral do PS a suspender a liderança partidária. “Ramalho Eanes influenciou o ex-secretariado, o próprio Zenha, que muito criticara Eanes, acabou por ser influenciado pelo eanismo que pretendia tomar o PS de fora para dentro”, acentua Alfredo Barroso.

“O Zenha nunca foi substituído, mesmo saindo do partido nunca foi substituído”, recordou Almeida Santos. Prova de que, para Mário Soares, Salgado Zenha era insubstituível. “Eram praticamente dois irmãos e essa amizade tornou-se inimizade o que fez muito mal ao PS, aliás nas eleições legislativas de 1985 sendo eu candidato o partido dividiu-se entre o PS e o PRD inspirado por Eanes”, referiu o então presidente honorário dos socialistas.

“Mário Soares e Francisco Salgado Zenha completavam-se, mas não eram a mesma coisa, tinham tido posições diferentes na fundação do PS, Zenha no interior, no país, Soares no exterior, no exílio”, analisa Carlos Gaspar, ex-consultor de Belém. “Salgado Zenha defende a ruptura com o PCP bem antes de Soares que só a concretiza após o 11 de Março de 1975.” Foi em nome desta ruptura que Zenha foi o principal protagonista do comício no lisboeta Pavilhão dos Desportos contra a unicidade sindical de 16 de Janeiro de 1975. E constata Carlos Gaspar: “Salgado Zenha não foi substituído no partido, como se a relação de Soares com ele tivesse sido um período excepcional na vida do PS, Mário Soares passou então sempre a trabalhar com pessoas de outra geração.”

Mário Mesquita vê a ruptura como um processo lento: “Uma rivalidade que foi durante muitos anos escondida sob a amizade que entre os dois existia.” O fundador do PS sintetiza a repartição de tarefas, de acordo com as personalidades diferentes dos dois dirigentes: “Havia campos em que um tinha mais qualidades que o outro, Soares com boas relações com as pessoas, Zenha na argumentação jurídica.”

No I Governo constitucional, Salgado Zenha é preterido, assumindo a função de líder da bancada parlamentar. “Zenha sentiu-se afastado, como se Soares não quisesse a sua sombra”, admite António Reis. Mas foi com o apoio à recandidatura de Ramalho Eanes que se deu o cisma. “Eles não conseguem uma base de entendimento, a análise que Eanes faz dos princípios políticos é estruturada com base na sua visão de quadro das Forças Armadas e Soares é um homem de política partidária e ideologia, advogado de profissão, habituado a uma gestão das relações mais fluida ”, constata Mário Mesquita: “Aqui está a base da incapacidade de entendimento, sendo que havia também a questão da legitimidade do edifício do poder pós 25 de Abril, o confronto entre os resultados eleitorais e a legitimidade dos militares.”

Foi assim que ocorreu a separação de águas. “Mário Soares quer uma democracia civilista europeia e do outro lado há uma certa ambiguidade, a pretensão de manter o Conselho da Revolução ou chefes dos estados-maiores dependentes do Presidente da República”, sublinha José Manuel dos Santos, antigo assessor cultural em Belém. “Para Mário Soares, instaurar a democracia em Portugal equivale a correr com os militares da política”, sintetiza Carlos Gaspar. “Eanes é um homem militar, como Soares também quer tirar os militares da política porque sabe que a política destrói a instituição militar.” Joaquim Aguiar regista a diferença de personalidades: “Eanes é um espartano, a felicidade para Soares é estar sorridente, Eanes foi construtor do sistema sem mapa, Soares, pelo contrário, é um improvisador de uma nota só, a nota Soares.” O desentendimento estava servido. “O choque era inevitável”, sentencia Aguiar.

“Eanes entra dentro do PS, primeiro com Medeiros Ferreira, também com a tentativa de bloco central e depois com o PRD...”, explica Gaspar, que trabalhou na Presidência da República com Ramalho Eanes e Mário Soares. “Demiti-me de ministro dos Negócios Estrangeiros em Outubro de 1977, Soares estava convencido que era um golpe político, que haveria a demissão de outros ministros, que havia uma conspiração centrada em Belém”, referiu José Medeiros Ferreira: “Acabei por sair do PS em Outubro de 1978, com António Barreto, com quem fiz o manifesto reformador.”

Na origem da demissão está a política externa com Angola, na sequência do golpe, em 28 de Maio de 1977, de Nito Alves. “A figura de Mário Soares nas ex-colónias era polémica, a Internacional Socialista, de que o primeiro-ministro português era então vice-presidente, era considerada imperialista”, prosseguiu o mais jovem chefe da diplomacia portuguesa. Belém quer enviar um emissário a Luanda e o Palácio das Necessidades concorda. “Mário Soares chamou-me, anuncia-me que pensa mandar o Manuel Alegre a Angola, a visita foi realizada, percebi que alguma coisa se tinha quebrado”, recapitulou Medeiros Ferreira: “Devo a Soares ter sido secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e a mim próprio ter sido ministro.”

O final da década de 70 e princípio da 80 do século passado teve outras consequências devido à desconfiança do primeiro-ministro com Belém. “Eanes ataca o Governo socialista pela direita, atrai pessoas da esfera do PS para envenená-las contra Soares”, acusa Alfredo Barroso. “Ele encontrou no eanismo o motivo, eu na altura nem conhecia o general Eanes”, contrapõe Mário Mesquita, então director do Diário de Notícias: “Ele encaixava mal a crítica porque vinha de alguém que tinha empurrado para a frente, não era o conteúdo das palavras mas quem as dizia.”

Outro relato. “Sempre tive relações tensas com Mário Soares, houve a história do ex-secretariado e o apoio à candidatura de Eanes, depois ultrapassámos a questão”, revela António Reis. “O ex-secretariado distanciou-se não, apenas, pelo apoio à recandidatura de Ramalho Eanes, mas também por questões internas do partido, a exigência de uma maior democraticidade na elaboração das listas”, recorda Alberto Arons de Carvalho, o mais jovem fundador do PS: “Tenho a consciência de que devo muito a Soares, não foi para mim uma opção fácil estar contra ele.”

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Neste relacionamento há o que o tempo confirmou como segredos de polichinelo. Já Presidente da República, Mário Soares preferia António Guterres que considerava mais político a Vítor Constâncio. “No congresso Portugal, Que Futuro?, Soares meteu-se na vida interna do PS”, recorda Ferro Rodrigues: “A relação com Mário Soares tem de ser autónoma, senão ele não nos respeita.” A mesma autonomia manifestada por Jorge Sampaio levou Soares a pensar em outros nomes para o suceder em Belém, de Almeida Santos a Manuel Alegre. A afirmação da autonomia determinou o abandono da ideia de Sampaio receber das mãos de Soares a faixa de banda das três ordens – Avis, Santiago e Cristo. As ingerências de Soares na vida interna do PS continuaram.

É um poder de influência partidário de que o fundador não abdica. “Mário Soares chamava ao PS o seu Stradivarius", revela António Reis. Um instrumento único que não pode ser tocado por qualquer um. “Só perde o controlo do PS quando foi Presidente da República porque a coligação Jaime Gama-António Guterres-Jorge Sampaio não cede”, lembra Carlos Gaspar.

A Europa: bluff em Genebra

Adepto de um regime democrático homologável aos europeus que  vigoravam na Comunidade Económica Europeia (CEE), livre portanto da tutela militar pós revolucionária, a adesão de Portugal à CEE foi objectivo fundamental de Soares desde que regressou a Portugal do exílio parisiense. A Europa era, também, terreno de diferenciação entre os políticos portugueses que ensaiavam os primeiros passos em liberdade após 48 anos de ditadura. Mário Soares era, sem dúvida, o mais cosmopolita de todos. A expressão “Mon ami Mitterrand”, pronunciada por Soares sobre o seu companheiro socialista francês e mais tarde Presidente da República de França, entrou no anedotário, algo provinciano, da vox populi daqueles tempos. Aliás, foi na Alemanha, em reuniões com o SPD [partido social-democrata alemão] do seu mentor e amigo Willy Brandt, que o líder do PS recebeu a notícia dos militares na rua no 25 de Abril.

“Soares tem uma grande determinação sobre o que é essencial”, analisa Carlos Gaspar. Desde sempre, mesmo no turbilhão político-social dos anos de 1974 e 75, a Europa era a referência dos socialistas portugueses para um país que conhecera uma radical mudança de escala com o fim do Império colonial. O “orgulhosamente sós”, do ditador António Salazar, caíra há muito em desuso pela força da realidade. Ridicularizado pelas vagas de emigração, desconsiderado pelas elites, obsoleto pela crescente importância do turismo e definitivamente sepultado na revolta militar. A ideia-chave de Soares, o seu leitmotiv, fora sintetizado num dos slogans mais emblemáticos, e conseguidos, da propaganda socialista: “A Europa connosco”. Era, simultaneamente, vontade de pertença e precaução de resguardo perante as vicissitudes do processo revolucionário. E, sobretudo, uma ideia clara e uma meta precisa.

“Era o fim, à vista, de um longo caminho, iniciado no meu primeiro Governo, em 1976, mas que trazia na cabeça como um objectivo prioritário desde o meu regresso do exílio”, escreveu na sua autobiografia comentando a conclusão do processo negocial para a adesão à CEE, em 29 de Março de 1985. Foi só então que foram fechados os capítulos mais complexos, da agricultura às questões institucionais, dos assuntos sociais às pescas, passando pelos recursos próprios.

“No programa do I Governo constitucional (1976/1978) só se fala de adesão à CEE, afirmando-se que vai ser pedida a adesão plena”, recordava José Medeiros Ferreira. “Então, em Portugal, havia dois partidos de famílias europeias internacionais, o PS, na Internacional Socialista, e o CDS de Diogo Freitas do Amaral, na Democracia Cristã, ambos favoráveis à adesão.” Primeiro como secretário de Estado e depois como ministro dos Negócios Estrangeiros, Medeiros Ferreira comprovou a existência de receios na sociedade portuguesa. Se Portugal na CEE era uma meta tão divulgada que até foi estribilho de um êxito musical dos GNR, também suscitava dúvidas e resiliências.

“Havia o receio que a economia portuguesa não aguentasse o embate, houve, por isso, muitas resistências de empresários e economistas, o que se reflectiu na posição do PSD de então”, analisava o antigo chefe da diplomacia portuguesa: “Os sociais-democratas consideravam que a Europa não ia favorecer a entrada plena, o que quer dizer que a história da adesão do PSD ao mercado comum não foi linear, de início foram críticos.” Contudo, a atribulada vida política que Portugal vivia fez vir à tona a consequência de estabilidade da adesão, em contraste com um futuro de incertezas proposto à esquerda. “O pedido de adesão plena foi favorecido pelo período revolucionário e pelo apoio recebido das democracias europeias na normalização política do país”, reconhecia Medeiros Ferreira.

Assim, e apesar das desconfianças, a partir de Dezembro de 1976 Soares prepara uma ofensiva na Europa. Visitas consecutivas às capitais europeias decorrem em Fevereiro e Março de 1977.“Foi a rampa de lançamento do pedido de adesão”, confirmou o então ministro dos Negócios Estrangeiros. O primeiro acto de uma intensa actividade diplomática, enquanto em Lisboa passaram a ser comuns as presenças de altos dirigentes europeus. Foi, também, tempo de alguns bluffs. “Em 26 de Janeiro de 1984, numa conferência em Genebra, declarei que Portugal renunciaria a tornar-se membro da CEE se uma decisão sobre a sua adesão não fosse tomada até Junho”, recordou Soares. A pressão era, evidentemente, para Bruxelas: “Nesse caso, Portugal, país atlântico, estreitaria, significativamente, os seus laços económicos com os Estados Unidos.” Não seria uma alternativa, mas um remendo não desejado pelo próprio. Meses depois, em Outubro, o primeiro-ministro português convence o seu homólogo irlandês, Garret Fitzgerald, presidente em exercício das Comunidades, a assumir um documento segundo o qual reconhecia que nada impedia a adesão de Portugal. O mesmo conseguiu Mário Soares com o luxemburguês Gaston Thorn, então presidente da Comissão.

Não foi um caminho sem escolhos o que culminou, em 12 de Junho de 1985, com a assinatura, numa cerimónia idealizada pelo arquitecto João de Almeida, na Torre de Belém e no Mosteiro dos Jerónimos, do tratado de adesão. A assinatura, primeiro e de manhã em Lisboa, e horas depois, à tarde, no Palácio Real, em Madrid, da adesão de Portugal e Espanha à CEE, que elevou a 12 os parceiros comunitários, antecedeu, em poucos dias, a queda do IX Governo constitucional, o do Bloco Central, do PS e do PSD, de Mário Soares e Carlos Mota Pinto.

A agitada vida política interna laranja já levara Mota Pinto a demitir-se, em 5 de Fevereiro, da presidência da comissão política e a ser substituído por Rui Machete. No Congresso de 17 a 19 de Maio de 1985, dez dias depois da morte de Mota Pinto, Cavaco Silva chega ao poder no congresso do PSD da Figueira da Foz. Foram tempos de sobressalto no processo de adesão, a escassos dias da assinatura do tratado. “O PSD ameaçou não subscrever o tratado dias antes”, relata Mário Soares na sua autobiografia. A 12 de Junho foi Rui Machete quem, como vice-primeiro-ministro, assinou o Tratado de Adesão, depois do primeiro-ministro Soares e antes do ministro dos Negócios Estrangeiros, Jaime Gama, e de Ernâni Lopes, titular das Finanças. Um dia após, a nova orientação política do parceiro de coligação viria a anunciar o fim do executivo com a demissão de 13 ministros e secretários de Estado “laranja”. Depois de ter sido recebido pelo Presidente da República, Ramalho Eanes, em comunicação ao país Soares anunciou a sua inevitável demissão.

Sim, senhor primeiro-ministro (e o “horror” à Polónia)

Terminava, deste modo, aquele que terá sido o Governo mais importante liderado por Soares. No haver do IX Governo está, para além da assinatura do Tratado de Adesão à Comunidade Económica Europeia, a negociação com o Fundo Monetário Internacional, FMI, iniciada em Agosto de 1983 para o financiamento do país, e a lei de delimitação dos sectores, abrindo à iniciativa privada as actividades bancária, seguradora e cimenteira. Foi também tempo para a renovação do Acordo das Lajes, nos Açores, com os Estados Unidos, cujos fundos foram utilizados para a criação da Fundação Luso-Americana. Iniciativa daquele executivo foi ainda a criação do Conselho Permanente de Concertação Social e da Alta Autoridade contra a Corrupção, com Costa Brás como alto-comissário.

Na agenda governamental, por pressão de um grupo de deputados, entre os quais Maria Belo e Manuel Alegre, estava o projecto de lei de despenalização do aborto que consagrava a sua prática, em certas condições – violação, má formação do feto e perigo para a saúde da mãe. Na prática, a apresentação do projecto de lei resultou de uma jogada de antecipação dos socialistas. Dois anos antes, uma iniciativa dos grupos parlamentares do PCP e da UDP (força hoje integrada no Bloco de Esquerda) fora chumbada e, na iminência de uma nova proposta das mesmas bancadas, o PS apresentou um projecto de lei, seguindo a determinação do seu V Congresso. Houve uma pronta reacção através de uma nota do Episcopado da Igreja católica, com a qual, desde o 25 de Abril de 1974, Mário Soares mantinha relações tranquilas. “A lei tinha sido votada contra minha vontade no congresso do PS, não porque discordasse dela, mas pela sua inoportunidade política para o Governo” afirmará, mais tarde, Soares.

A iniciativa provocou celeuma no executivo do Bloco Central onde existiam ministros de forte obediência católica, como Ernâni Lopes. A Assembleia da República veio a aprovar, em 27 de Janeiro de 1985, o projecto de lei sobre a despenalização do aborto, num debate em que se destacaram a poetisa Natália Correia, então deputada independente do PSD, e a parlamentar comunista Maria Alda Nogueira.

“Acho que Mário Soares foi o melhor primeiro-ministro que tivemos”, comenta José Manuel dos Santos: “Em dois governos, cada um a durar apenas dois anos, 1976-78, e 1983-85, conseguiu tirar o país da bancarrota, fazer reformas contra os comunistas – como a reforma agrária com António Barreto – e lançar reformas sociais, com a entrada em vigor do passe social e a criação do Serviço Nacional de Saúde.”

A opinião do antigo assessor cultural não é partilhada por Carlos Gaspar. “Foi o melhor Presidente da República e o pior primeiro-ministro que tivemos”, assegura o ex-consultor político. “Tem dificuldades em coordenar equipas.” Já para Alfredo Barroso, a dicotomia Presidente/chefe de Governo merece outra ponderação. “É melhor Presidente da República, mas não foi um mau primeiro-ministro como se diz”, refere o antigo chefe da Casa Civil da Presidência da República: “O seu melhor Governo foi o do Bloco Central, Mota Pinto foi chave pois tinha uma estupenda relação com Soares, a questão do aborto foi bem ultrapassada, como a crise financeira, com a segunda intervenção do FMI.”

A lei de delimitação de sectores foi a porta para a mudança da realidade económica portuguesa, marcada pelas nacionalizações de vários sectores, entre os quais a banca e os seguros, em 14 de Março de 1975. Em boa parte para adequá-la às obrigações comunitárias e porque, também, não era aquele o figurino que Mário Soares pretendia para a economia portuguesa. Assim, em 12 de Março de 1985, está presente na criação, no Porto, do primeiro banco privado português, o Banco Português de Investimentos.

Como primeiro-ministro, Soares diligenciou para o regresso de alguns empresários e banqueiros que tinham ido para o estrangeiro. Insistiu junto de várias famílias. “Ele tinha um canal de ligação com os Mello, pois foi advogado de Cristina Mello, mulher de Champalimaud”, recorda Barroso. “Um dos homens com que ele falava era o Manuel José de Mello, que aliás o apoiou na sua primeira candidatura a Belém em 1985.” Alfredo Barroso junta outro caso: “Na visita ao Brasil, falou com os Espirito Santo e incentiva-os ao regresso para reanimar a economia portuguesa, foi o Governo do Bloco Central que abriu o país à banca privada, por um objectivo de interesse político.”

Em Espanha, foi também contactado Jardim Gonçalves: “Foi na primeira visita de Estado de Ramalho Eanes, num cocktail na embaixada portuguesa em Madrid, não esperava a abordagem.” O fundador do Millenium/BCP prossegue: “Quando foi primeiro-ministro queria recuperar o país, foi determinante para assinar a minha vinda de Espanha, é ele quem me nomeia para o Banco Português do Atlântico apesar de reservas de alguns dirigentes do PS.” Jardim Gonçalves sublinha: “Ele teve a coragem de me ir buscar, foi crucial e não tínhamos nenhuma relação pessoal, só saí de Espanha com o meu nome impresso no Diário da República.” Então, esta era a démarche possível. “Em cada momento ele fez o máximo, em 1977 a Constituição vedava a privados o sistema financeiro, ele trouxe para cá todas as pessoas que podiam gerir, eu convidei todos os que eram bons profissionais da banca”, recorda.

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Em campanha para as presidenciais de 1991 DR

Com a lei de delimitação dos sectores, voltou a ser contactado: “Foi no Governo do Bloco Central, em 1984, saiu um decreto que abria a banca ao sector privado, houve uma reunião com Ernâni Lopes [ministro das Finanças] com vários empresários na qual foi estimulada a criação de bancos.” O antigo banqueiro e o político mantem boa relação. “Mário Soares não alterou a relação comigo depois da confusão do banco [Millenium/BCP], estou no conselho fiscal da fundação Mário Soares, tem exibido toda a confiança em mim e os nossos encontros têm sido sempre em lugares públicos”, acentua Jardim Gonçalves.

Das três ocasiões em que foi primeiro-ministro, por duas vezes Soares liderou executivos de coligação. A experiência do Bloco Central, foi antecedida, de Janeiro a Agosto de 1978, por uma inusitada coligação entre o PS e o CDS de Freitas do Amaral. No executivo, os centristas tinham três pastas: Vítor Sá Machado, nos Negócios Estrangeiros, Rui Pena, na Reforma Administrativa, e Basílio Horta, no Comércio e Turismo. Eram tempos difíceis, na ressaca dos acontecimentos de 1974/75. Portugal recebia a primeira assistência financeira do FMI. “Não tínhamos dinheiro para importar comida, os nossos credores só vendiam comida a pronto pagamento, chegaram a estar prontas as senhas de racionamento, safámo-nos pelo buraco da agulha”, revela Basílio Horta. A penúria de bens importados era notória. O antigo ministro do Comércio e Turismo lembra um telefonema do primeiro-ministro: “A mulher tinha ido ao Último Figurino [loja da Baixa lisboeta] para lhe comprar uma gravata Guivenchy para o seu aniversário, mas não havia.” Então, perguntou-me: “O que é que anda a fazer? Você está a fazer deste país uma Polónia.” Não foi por este desabafo por telefone do Palácio de São Bento que o executivo caiu. “Se o Adelino Amaro da Costa estivesse no Governo, teria peso para a sua manutenção, mas foi um grande gabinete”, refere Basílio Horta.

D, de descolonizar – o abraço de Lusaca

Dos três “D” inscritos no programa do Movimento das Forças Armadas (MFA) para Portugal – Democratizar, Desenvolver e Descolonizar – o fim do Império colonial foi o que mais dividiu sectores das Forças Armadas. Assim, entre outros temas, a descolonização ocupou Mário Soares, ministro dos Negócios Estrangeiros do I Governo provisório. Um cargo à sua medida, dado o seu protagonismo internacional e, como o próprio admitiria mais tarde, porque não lhe provocava muito desgaste e, dada a agenda, lhe concedia mais visibilidade. Razões internas de peso.

“Não tinha dúvidas quanto à política que queria realizar, retomar as relações com a ONU e aceitar as suas recomendações, conceder o direito à autodeterminação e à independência das colónias que estavam em guerra com Portugal por via de negociações que conduzissem, de imediato, ao cessar-fogo e à paz”, refere. Na sua autobiografia sublinha, por diversas vezes, o que as crónicas dos anos quentes de 1974 e 1975 confirmaram: “Pensava que sem resolver o problema colonial não haveria democracia política possível nem desenvolvimento.”

Dos três “D” do MFA, a descolonização era pois o central para o cumprimento dos outros dois. Com este pensamento, no mesmo dia da sua posse como chefe da nova diplomacia portuguesa, Mário Soares partiu do Aeroporto da Portela para Dacar, a bordo do avião do Presidente senegalês Leopoldo Senghor, para encetar negociações com o líder do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde, PAIGC, Aristides Pereira. Na visita, Soares foi acompanhado por dois militares da confiança do general António de Spínola, Almeida Bruno e Manuel Monge. O que se tornaria hábito noutras missões com o mesmo propósito. Naquela mesma noite, Mário Soares e Aristides Pereira acordaram o cessar-fogo que, horas mais tarde, na Guiné, era celebrado, em confraternização, pela tropa portuguesa e os guerrilheiros do PAIGC.

Meses depois, a 6 de Junho de 1974, Mário Soares parte para Lusaca, onde, sob os auspícios de Kenneth Kaunda, Presidente da Zâmbia, se realiza o primeiro encontro com a Frente de Libertação de Moçambique, Frelimo, e com o seu líder, Samora Machel. À última hora, Spínola, entretanto nomeado Presidente da República, comunicou a presença, na comitiva, de um militar: Otelo Saraiva de Carvalho. “Fui chamado a Belém na véspera da partida, por volta das 21 e 30, e o general Spínola disse-me que ia acompanhar Mário Soares”, relata Otelo. “Perguntei quais eram as minhas funções e Spínola disse-me que ia representar o MFA. 'Você vai vigiar esse gajo, porque não tenho muita confiança nele. A missão que lhe dei é que ele tinha de vir de Lusaca com o cessar-fogo garantido'”, prossegue Otelo. O major que tinha dirigido as operações militares do 25 de Abril recorda também uma pergunta premonitória do ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal: “Perguntou-me se devia estender a mão ou dar um abraço a Machel.”

Para a história ficou o “abraço de Lusaca”, quando os dois homens entraram na mesma sala, sorriram, e Mário Soares tomou a iniciativa de ladear a enorme mesa e abraçar o dirigente da Frelimo. Um prelúdio de entendimento fácil, afinal não confirmado. “Samora disse que não fazia sentido um cessar-fogo sem ter garantias e perguntou se estávamos dispostos a aceitar a independência de Moçambique, sendo que o representante do povo moçambicano é a Frelimo”, lembra Otelo. O líder africano recordou a situação no terreno, que o militar português não desconhecia: “As vossas forças estão cansadas, nós continuamos a lutar pela independência.” Era o impasse. “Mário Soares forçava o cessar-fogo, eles recusavam”, descreve o jovem emissário de Spínola, moçambicano de nascimento. “Pedi a palavra como representante do MFA, e disse que a Frelimo tinha razão, que estávamos a perder tempo.” O ministro dos Negócios Estrangeiros ficou atónito. A reunião foi interrompida e antecipado o regresso a Lisboa. “Você está a contrariar a missão que me foi dada pelo Presidente da República”, avisou Soares.

O relato destes acontecimentos a Spínola levou a um choque com Otelo: “Disse-lhe que era a posição do MFA.” Contudo, o militar não se recorda de, como afirma Mário Soares, à saída daquela quente audiência de Belém ter tranquilizado o então ministro dos Negócios Estrangeiros com o desabafo: “Não faça caso... o velho já não manda nada.” Terá sido naquele dia que a proverbial desconfiança de António de Spínola sobre os intuitos de Mário Soares se transferiu para os militares vencedores da revolta. Anos mais tarde, Spínola fez mea culpa e isentou responsabilidades o então ministro dos Negócios Estrangeiros. Aliás, naquela oportunidade em Lusaca, Otelo foi visitado por uma delegação do MPLA: “Era liderada pelo comandante Iko Carreira, que queria saber o que o MFA pensava da situação em Angola, acho que falei a Mário Soares deste encontro.” 

Apesar das resistências de António de Spínola, o Conselho de Estado reconheceu, em 27 de Junho de 1974, o direito das colónias à autodeterminação e independência. A 9 de Agosto, a Junta de Salvação Nacional anuncia a proposta da descolonização de Angola e o território entrou numa espiral de violência. A 26 do mesmo mês, era assinada em Argel a declaração que reconhecia a independência da Guiné-Bissau e, dez dias depois, em Lusaca, foi fixada para 25 de Junho de 1975 a data de independência de Moçambique. Nestas conversações, o ministro dos Negócios Estrangeiros sempre foi acompanhado por Melo Antunes, da comissão coordenadora do MFA, e por Almeida Santos, ministro da Coordenação Interterritorial: “Eu era ministro civil da pasta, fui importante na Guiné, tivemos a seguir Moçambique e em Angola, com três movimentos de libertação [MPLA, UNITA e FNLA], foi mais complicado, mas tive um papel importante no texto, Melo Antunes teve também influência nos processos de Angola e Moçambique.”

Para Almeida Santos, que conhecia Soares desde 1949, da comissão de candidatura, em Coimbra, do general Norton de Matos, era a continuação de um trabalho enquanto membro proeminente do grupo dos democratas de Moçambique: “Tínhamos relações com a oposição do continente, sempre que chegava a Lisboa ia ao escritório de Salgado Zenha e de Mário Soares discutir o problema ultramarino.”

Dois dias após a manifestação silenciosa de 28 de Setembro de 1974, António de Spínola renuncia ao cargo de Presidente da República, sendo substituído pelo general Costa Gomes. “O caminho para a descolonização estava, aliás, aberto, de par em par desde que Spínola tinha desaparecido de cena”, reflectiu Soares. Já os comunistas, também presentes nos cinco primeiros governos provisórios, têm outra visão. “O PCP foi afastado por António de Spínola da descolonização a nível de Estado, sempre teve muitas dificuldades de acesso a esta questão, depois da saída de Spínola essa tendência manteve-se”, anota o antigo dirigente Carlos Brito.

A cimeira do Alvor, de 10 a 28 de Janeiro de 1975, que juntaria à mesma mesa no Hotel Penina, Portugal e os três movimentos de libertação angolanos, foi a última intervenção de Soares na descolonização como ministro dos Negócios Estrangeiros. Deixou a chefia da diplomacia portuguesa após o 11 de Março de 1975, passando a ministro sem pasta. “Mário Soares teve um papel inicial importante na descolonização, o episódio do abraço a Machel e as primeiras conversas com os líderes dos movimentos de libertação, mas deixou de ser ministro dos Negócios Estrangeiros e passou a ocupar-se do partido”, relatou Almeida Santos. “Na Guiné-Bissau confiou em mim, pouco em Angola.” Para Carlos Gaspar, consultor de Soares em Belém, uma preocupação norteou a acção do dirigente socialista nos processos de descolonização: “Afirma que é necessário acelerar ao máximo a descolonização para que os militares saiam do poder.”

Democracia. Moscovo entra na rima

O desejo deste regresso às casernas advém da meta que Mário Soares tinha bem clara para Portugal: a vigência de uma democracia ocidental, sem tutelas dos militares. “Soares é um paisano, sempre teve grandes dificuldades de relacionamento com os militares”, reconhece Alfredo Barroso. No entanto, como ministro dos Negócios Estrangeiros deu provas de um verdadeiro pragmatismo. A forma como o então chefe da diplomacia portuguesa se relacionou com Espanha é disso prova.

“Quando chegou a Revolução dos Cravos, os amigos de Don Juan de Borbón, banqueiros portugueses e gente espanhola, como Luís Maria Ansón, do seu Conselho Privado, queriam levá-lo para o Canadá por motivos de segurança”, recorda o advogado e diplomata Raul Morodo. No exílio do Estoril, o pai do actual monarca espanhol Juan Carlos estava tranquilo. Tinha amizades, o seu veleiro e estava perto de Espanha o que facilitava as visitas dos seus apoiantes e o acompanhamento da situação no seu país. “A sugestão do Canadá não lhe agradava nada”, garante Morodo. Por seu intermédio, os monárquicos espanhóis contactam com as novas autoridades portuguesas: “Houve um almoço no English Bar [restaurante à entrada de Cascais], de Mário Soares, Don Juan, o duque de Ormachuelo, o aristocrata que naquela semana acompanhava Don Juan, e eu próprio.” O objectivo de Soares era convencer o espanhol a continuar a residir no Estoril e, deste modo, evitar uma operação de má propaganda que a sua saída de Portugal acarretaria. “Deram-se logo muito bem e no fim o Governo português pôs um polícia à porta da Villa Giralda ”, sintetiza Raul Morodo.

Do mesmo modo, recorda Morodo, Mário Soares estava preocupado com uma possível aplicação do Pacto Ibérico [assinado em 17 de Março de 1939 por Salazar e Nicolau Franco, embaixador de Espanha em Lisboa e irmão de Franco, reconhecia as fronteiras dos dois países e implicava consultas para uma acção militar concertada]: “O então ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal manteve contactos sobre esta questão com Manuel Fraga Iribarne, na altura embaixador de Espanha em Londres.” Fraga Iribarne, falecido em 2012, um homem com carreira feita no regime franquista, tinha consciência da inevitabilidade da queda da ditadura espanhola. Não foi o único “aperturista” – defensor da abertura política em Espanha – contactado por Portugal.

“Contactei com Marcelino Oreja, que estava no Governo espanhol, para a libertação, depois do 25 de Abril, de gente da LUAR [Liga de Unidade e Acção Revolucionária, organização armada de oposição à ditadura liderada por Palma Inácio] que estava presa em Salamanca”, revela Morodo. Eram três os membros da LUAR – Joaquim Alberto, Gabriel Raimundo e José Horácio – que tinham sido presos em Espanha em Agosto de 1973, quando se preparavam para entrarem a salto, clandestinamente, em Portugal. “Fomos apanhados com pistolas e detonadores”, confirma Joaquim Alberto. Por intermédio do advogado Raul Morodo é posto termo a uma situação anacrónica: a prisão em Espanha de opositores quando a ditadura portuguesa já tinha caído.

“Foi Mário Soares, então ministro dos Negócios Estrangeiros, que a pedido de Palma Inácio falou com Morodo para ele nos defender”, afirma o ex-membro da LUAR. Não foi uma defesa de argumentos jurídicos, mas um trabalho de bastidores nos corredores do franquismo com Marcelino Oreja, da ala liberal do regime. “Em 30 de Maio de 1974 a polícia espanhola trouxe-nos até à fronteira, com a condição de não voltarmos a entrar em Espanha”, relata Joaquim Alberto: “No mesmo dia, os jornais espanhóis diziam que tínhamos fugido.” Uma forma das autoridades espanholas não perderem a face por terem acordado a libertação de três homens acusados dos crimes de posse de armas e de terem disparado contra os seus captores. “Essa última acusação era falsa”, assegura o antigo militante da LUAR.

Meses mais tarde, o que restava desta organização – Palma Inácio aderira ao PS – passou a integrar a constelação de siglas e entidades que protagonizaram a radicalização política. Do outro lado, estavam os socialistas, o PSD de Francisco Sá Carneiro e o CDS com Freitas do Amaral. Mas foi a liderança de Mário Soares que inverteu uma correlação de forças desequilibrada pela influência da esquerda nos meios castrenses. O que lhe valeu o cognome de “pai da democracia”. Foi o Verão Quente de 1975.

“O PCP tem uma actuação muito cautelosa para ampliar a base de apoio da democracia, só depois do 11 de Março de 1975 se pode falar de radicalização, a partir daí concordo”, refere o ex-dirigente comunista, Carlos Brito. “Em Agosto de 1975, na reunião do comité central em Alhandra, houve um recuo e aproximação ao PS, é certo que não seguido por todos os sectores do partido.” Foi o fim do entendimento alcançado pouco antes do 25 de Abril de 1974, numa reunião em Paris com Soares e Álvaro Cunhal, que estabeleceu objectivos para o fim da ditadura.

O 11 de Março, a tentativa de golpe de Estado do antigo Presidente da República António de Spínola, é o detonador do que passou para a História como o PREC, processo revolucionário em curso. “Houve uma tentativa de associar o PS ao 11 de Março”, sintetiza Alfredo Barroso. “Em grande medida, o PS tinha ligações fortes a Spínola e tentaram envolvê-lo no 11 de Março”, reconhece Vasco Lourenço, actual presidente da Associação 25 de Abril e um dos oficiais do MFA. “Julgo que no 11 de Março a acção spinolista não terá sido preparada em conjunto com o PS, mas a acção de massas podia ser do PS”, considera Otelo Saraiva de Carvalho: “Sei que Frank Carlucci [então embaixador norte-americano] refuta qualquer envolvimento dos Estados Unidos no 11 de Março, o que, agora, depois de ler outros documentos, considero como possível.”

Para os socialistas, a história é diferente. “Apoiámos o Spínola, porque precisávamos dele para as batalhas que travámos com o PCP, mas não estava à espera que o Spínola aderisse ao 11 de Março, tinha boa impressão dele”, explicou Almeida Santos. Foi um apoio táctico. Soares escreveu na sua autobiografia que, em Julho de 1974, o PS se opôs a eleições presidenciais antes das legislativas propostas pelo primeiro-ministro, Adelino da Palma Carlos, que significavam um reforço do poder de Spínola: “Palma Carlos convidou Almeida Santos e convidou-me a mim para irmos à sua casa no Restelo.” Não houve acordo: “Adverti o perigo desse projecto em relação à ideia que desde o começo foi a minha, construir uma democracia pluralista e pluripartidária, com dimensão social, de tipo ocidental e predominância parlamentar.”

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Adriano Miranda

Se o golpe fracassado potenciou a radicalização, já em Janeiro de 1975 o projecto de unicidade sindical que, para os socialistas reforçava ao papel da Intersindical, levara ao primeiro embate: O comício de 16 de Janeiro de 1975. “Foi uma bofetada elegante ao MFA que tinha aprovado a lei da unicidade sindical”, recordará mais tarde Soares. “Acabámos por cometer um erro ao criar a UGT, em vez de encontrar uma plataforma de entendimento com a CGTP”, considera Alfredo Barroso.

Não faltaram outras munições para o combate do Verão Quente. Foram os denominados casos. O caso República, a ocupação pela extrema-esquerda daquele jornal afecto ao PS, e a ocupação, pelas mesmas forças, da Rádio Renascença, a emissora católica portuguesa. “As relações com a Igreja foram muito facilitadas pelo cardeal António Ribeiro, já a renegociação da Concordata com o Vaticano [para aprovar o divórcio nos casamentos católicos] e com Zenha como ministro da Justiça fora fácil”, reconhece Alfredo Barroso. Nos últimos tempos da ditadura, os socialistas viram com simpatia as preocupações do cardeal patriarca de Lisboa com a situação do exilio de António Ferreira Gomes, bispo do Porto crítico de Salazar, e com os católicos progressistas que ocuparam, no fim de 1972, a capela do Rato permanecendo em vigília contra a guerra colonial e a ditadura. “Depois do caso República, com a Rádio Renascença não se podia transigir”, precisa o antigo chefe da Casa Civil do Presidente Soares.

Essa colaboração foi chave para os acontecimentos do Verão Quente. “Quando havia hostilidade à Igreja, houve encontros políticos de Mário Soares com o cardeal, encontros reservados, a maior parte no patriarcado”, recordou Almeida Santos. O entendimento tinha o beneplácito do Vaticano pois, numa das suas primeiras visitas como chefe da diplomacia, Soares visitou a Santa Sé e entrevistou-se com o secretário de Estado Agostino Casarolli. Foi tratada a revisão da Concordata e sempre houve uma boa relação entre os dois. “Antes da manifestação da Fonte Luminosa de 18 de Julho de 1975 houve encontros discretos com a hierarquia da Igreja”, revela Alfredo Barroso. “Articularam-se acções, mas houve casos que fugiram do controlo, com o MDLP [Movimento Democrático de Libertação de Portugal, de Spínola, quem cometeu atentados entre 5 de Maio de 1975 e 29 de Abril de 1976] a queimar sedes do PCP em apoio da Igreja e da extrema-direita católica.” Foram os tempos em que algumas palavras de ordem rimavam com o nome da capital soviética: “A República é do povo, não é de Moscovo” e a “Renascença é do povo não é de Moscovo”.

PREC. Greve à mesa de O Chocalho

A ocupação do jornal esteve na origem de reuniões plenárias do Conselho da Revolução com os socialistas e com o PCP, em Maio de 1975, antecedendo a saída do PS do executivo e a queda do IV Governo. “Foi quando Álvaro Cunhal disse que um voto em Trás-os-Montes não tinha o mesmo peso que um voto no Alentejo, porque os transmontanos não estavam esclarecidos e os alentejanos sim”, relata Vasco Lourenço.

Eram tempos de dicotomia. Até um Vasco – Vasco Lourenço – foi contraposto ao primeiro-ministro, general Vasco Gonçalves, e passou a ser reivindicado como o único. “Vasco só há um, o Lourenço e mais nenhum.” Palavra de ordem gritada na Alameda Afonso Henriques, na manifestação da Fonte Luminosa. Uma acção de massas dirigida pelo PS e que teve em Soares o orador inflamado que ameaçou parar o país. “Havia uma tentativa de, tal como em 28 de Setembro de 1974, de se fazerem barricadas pelo que teve lugar uma reunião de militares com o PS e do PCP, em que se acordou que os socialistas tinham toda a legitimidade para se manifestarem e que não se permitiriam barricadas civis”, recorda Vasco Lourenço: A segurança era assegurada por militares, através do Copcon (Comando Operacional do Continente) de Otelo Saraiva de Carvalho. Com a acção da Fonte Luminosa e, no mesmo dia 18 de Julho, uma manifestação no Porto, a rua deixou de pertencer, em exclusivo, aos apoiantes do PREC.

Tal como as forças que se opunham ao processo revolucionário em curso encontraram no Documento dos Nove, publicado na edição de 8 de Agosto do Jornal Novo, o antídoto militar contra os oficiais do PREC. O documento foi elaborado por Melo Antunes e contava com a assinatura de Franco Charais, Pezarat Correia, Vítor Alves, Costa Neves, Vítor Crespo, Canto e Castro, Sousa e Castro e Vasco Lourenço. “Fomos acusados de termos uma ligação preferencial ao PS, tínhamos alguma ligação preferencial, é verdade, mas não uma ligação estrutural”, admite Vasco Lourenço. “Havia capacidade de comunicação com os socialistas, mas não um elemento de ligação nem ligações políticas institucionais.” Foi então, segundo o presidente da Associação 25 de Abril, que Soares descobriu outros militares: “A ligação dele aos spinolistas derivava de não conhecer os militares, de desconhecer que havia outros militares com posições mais concordantes com o PS.”

Havia um histórico para este desconhecimento e motivos para a desconfiança. “Vim a saber que no I Congresso do PS [após o 25 de Abril] lá estavam o Martins Guerreiro e alguns dos seus a apoiarem o Manuel Serra [dirigente socialista que abandonou o partido e criou a Frente Socialista Popular – FSP]", revela Vasco Lourenço. “Ao congresso foram os spinolistas em força, pois Manuel Monge tinha relações com Edmundo Pedro e Manuel Alegre, e do meu lado estavam o Marques Júnior, o Salgueiro Maia e o Pita Alves.” Ecoavam fortemente as palavras que indignaram Mário Soares do que entendeu como uma ingerência do MFA na vida interna do seu partido. “Houve declarações de Rosa Coutinho [almirante, membro do Conselho da Revolução] a apoiar Manuel Serra e a dizer que era necessário um PS autenticamente de esquerda”, lembra Vasco Lourenço. “Nós, o núcleo fundamental do MFA, não entrámos na guerra, mas todos tentavam ter os seus militares.”

Soares passou a almoçar regularmente com o “grupo dos Nove” no Restaurante O Chocalho [hoje Santos à Mesa], junto à embaixada de França, em Lisboa. Casa fundada por um galego, Angel, e dois portugueses, Mamede e Manuel, oriundos do Mónaco de Caxias. “Habituaram-se a que eu aparecesse, sempre sozinho, mas sem avisar, assim passámos a acertar as nossas estratégias”, relatou o dirigente socialista. As refeições decorriam num improvisado reservado, no primeiro andar, a que se acedia pela escada do prédio através de uma porta da sala do rés-do-chão. Era o armazém, e as refeições decorriam entre prateleiras de víveres e garrafas, num constante sobe e desce dos empregados.

“O primeiro andar era para ser um salão de chá”, recorda ao PÚBLICO Maria Alves, empregada desde 1970. Conserva fotografias em que estão Costa Brás, Vasco Lourenço, Melo Antunes, Vítor Alves, Gomes Mota... “Às vezes, quando saíam, eram insultados por populares, gente que não sabia e diziam aquelas coisas desagradáveis”, relata.

Na Lisboa de então, todos estes encontros decorriam sob os olhares dos dirigentes da Confederação dos Agricultores de Portugal, cuja sede estava defronte, e dos analistas da embaixada de França. Quer a CAP quer os diplomatas tinham informação em primeira mão. Dos comensais militares Maria Alves lembra “que eram muito simples, não eram complicados”.

Foi à mesa de O Chocalho, numa tarde de Novembro de 1975, que Mário Soares foi confrontado com a ideia de greve do VI Governo provisório. “Quando almoçávamos normalmente, foi levantada a questão do Governo, fui eu que me lembrei da greve”, descreve Vasco Lourenço. “Telefonei ao Mário Soares a pedir-lhe para ele vir ter connosco.” A greve tinha um motivo. Nas palavras do primeiro-ministro de então, o almirante Pinheiro de Azevedo: “Estou farto de brincadeiras, já fui sequestrado por duas vezes, é uma coisa que me chateia, não gosto, pá.” Referência ao cerco à Assembleia da República, em 12 e 13 de Novembro de 1975, que sequestrou o Governo e os deputados.

As pontes na fundação do PS

Os episódios do Verão Quente, que concluiu em 25 de Novembro com a acção militar coordenada pelo então tenente-coronel Ramalho Eanes, tiveram um ponto alto. Se os meios de comunicação acompanharam todas as vicissitudes de um país que esteve à beira da guerra civil, o debate televisivo entre Mário Soares e Álvaro Cunhal foi o ponto alto. Soares e Cunhal conheciam-se muito antes do 25 de Abril. O dirigente comunista dava explicações, não podia ser professor pelas suas actividades políticas, no Colégio Moderno, o colégio da família Soares, antes de Mário Soares ter aderido ao PCP em finais de 1942.

“Sempre tolerante e de espírito aberto, o meu pai nunca perdia a ocasião para criticar – e ridicularizar – o que chamava os “meus camaradinhas”, refere Soares na sua autobiografia Um Político Assume-se. Em 1972, em Paris, Mário Soares e Cunhal encontraram-se numa cimeira da oposição. No debate televisivo de 1975, moderado por Joaquim Letria e José Carlos Megre, o comportamento dos dois reflectiu uma mútua desconfiança e a tensão da época.

“Se entre eles a relação fosse boa, apesar das diferenças seria atenuado o conflito, Cunhal pensava que Soares o queria levar à certa e Soares que Cunhal queria mandar nele”, refere Carlos Brito. “Era uma coisa visceral de ambas as partes, já no relatório do VI Congresso do PCP [Setembro de 1965 nos arredores de Kiev], Cunhal subestimou os socialistas em contraste com os velhos republicanos e os católicos progressistas.” Segundo o ex-dirigente comunista, “havia uma grande subjectividade nas análises, o que acontecia dos dois lados”.

O território da desconfiança adensou-se cinco dias após o 25 de Abril. Na chegada de Álvaro Cunhal, a 30 de Abril, ao aeroporto da Portela. O secretário-geral do PCP subiu para um blindado Chaimite e discursou aos seus apoiantes, tendo Soares, que o fora receber, sido excluído. Tratou-se para o dirigente dos socialistas de uma encenação clássica de outros tempos. “Estava na delegação do partido que foi receber Cunhal, creio que ninguém se deu conta do simbolismo da situação que lembrava a chegada de Lenine a Moscovo, também em Abril, mas de 1917”, admite Carlos Brito. “Mas foi uma coisa espontânea, foi um militar de apelido Casanova, que convidou Álvaro Cunhal a subir ao blindado.” Alfredo Barroso confirma a tensão entre os políticos: “Havia uma relação de fascínio entre os dois e também de muita desconfiança, que se atenuou quando Soares é eleito Presidente da República.” E dá um exemplo: “Soares é genuinamente um democrata, e percebe no I Governo provisório que Cunhal quer hegemonizar o controlo da revolução e estabelecer uma aliança com os militares”. 

A rota de colisão começara antes da Revolução dos Cravos com sucessivas desobediências de Soares na sua militância comunista a pôr em questão a política unitária do PCP, primeiro no MUD e MUD juvenil, e depois na candidatura presidencial de Norton de Matos e no Movimento Nacional Democrático. É a ruptura com os comunistas como pólo aglutinador que o levam ao afastamento no início da década de 50. Começou, então, o que o próprio definiu como “travessia do deserto”, na companhia de Manuel Mendes, Ramos da Costa, Piteira Santos, José Ribeiro dos Santos, Gustavo Soromenho e Raul Rego: “Deixei de acreditar que o comunismo podia ser compatível com a democracia pluralista de tipo ocidental, o que, para mim, era, sem sobra de dúvidas, o que queria para Portugal.”

Manifestação desse separar de águas na década 50 em que tirou o curso de Direito, após o de Letras e Filosofia, e em que nunca foi preso, foi a criação de um grupo informal de reflexão política, a Resistência Republicana e Socialista. Volta à intervenção política na candidatura presidencial de Humberto Delgado, como representante do Directório Democrata-Social, saído da candidatura frustrada de Quintão Meireles. Uma década mais tarde, participa, com Piteira Santos e Francisco Ramos da Costa, no Programa da Democratização da República e, em 1964, cria, em Genebra, com Ramos da Costa e Manuel Tito de Morais, a Acção Socialista Portuguesa (ASP). Passou da reflexão da Resistência Republicana e Socialista a uma organização para partidária. A ASP, em 1972, viria a ser aceite pela Internacional Socialista. Advogado de Humberto Delgado, assassinado pela PIDE (polícia política da ditadura) em 13 de Fevereiro de 1965, na localidade de Villanueva del Fresno, nos arredores de Badajoz, é preso por várias vezes e deportado para São Tomé e Príncipe.

O afastamento da política unitária dos comunistas volta a ser evidente, em 1969, com Marcello Caetano, como presidente do Conselho, com a formação da Comissão Eleitoral de Unidade Democrática (CEUD), em contraposição a CDE – Comissão Democrática Eleitoral. A CEUD apresenta as suas listas apenas em três distritos – Lisboa, Porto e Braga. No entanto, a sua mulher, Maria Barroso, é candidata pela CDE em Santarém. Finalmente, em Abril de 1973, em Bad-Munstereifel, na Alemanha Federal, é criado o PS que sucede à ASP.

“O núcleo de Lisboa da ASP considerou que não era o momento oportuno para a transformação em partido”, recorda Mário Mesquita: “A ASP não tinha uma estrutura suficientemente organizada para ser partido”. Motivos de segurança foram alegados. “A ASP eram 100 pessoas em todo o país que se conheciam, era uma estrutura semilegal em Portugal com uma rede clandestina no estrangeiro, e um partido com duas faces – exterior e interior – podia causar problemas”, prossegue o ex-director do Diário de Notícias: “É inegável que quem tinha razão para acelerar a formação do partido era Mário Soares”. Idêntica é a posição de Alberto Arons de Carvalho: “Ele tinha razão, jogava em acordos, compensações, com uma enorme intuição política.” Um ano antes, em 1972, após uma reunião de Soares com Cunhal, em Paris, para coordenar posições face ao fim da ditadura, o dirigente comunista já se apercebera das intenções do seu interlocutor. “Após o encontro, Álvaro Cunhal disse que os socialistas iam criar um partido”, relata Carlos Brito, que fez parte da delegação do PCP ao encontro parisiense.

Com a transformação em partido, o PS “pesca” noutras águas. Dissidentes do PCP, como Mário Sottomayor Cardia. Advogados laborais caso de Marcelo Curto. E gente oriunda de outras áreas, como António Reis: “O que nos unia a era a redacção da Seara Nova [revista da oposição], a adesão em bloco foi logo a seguir à fundação do PS, na primeira quinzena de Maio de 1973.” Estas entradas deram sangue novo ao grupo de Soares. “A nossa adesão contribuiu para evitar uma excessiva conexão do PS com a chamada social-democracia, dávamos uma certa caução de esquerda, e diferenciava o partido da ASP”, acentua António Reis. “Como bom animal político, Soares teve sempre a preocupação de lançar pontes para todos os lados.” Militantes de outras áreas, para além do republicanismo tradicional.

Do início: “Que ninguém se resigne”

E de outras forças do reviralho, como era depreciativamente apelidada a oposição à ditadura. Entre as quais, os maçons. “A relação da maçonaria com o PS vem do republicanismo, nunca foi determinante até porque a escola republicana era plural”, recorda António Reis, antigo grão-mestre do Grande Oriente Lusitano. “Havia a linha jacobina, a sergiana, que se contrabalançavam”, enumera. “Hoje, a influência da maçonaria no PS é residual e o republicanismo é mais ético, sempre foi um republicanismo socializante.” De uma amizade de longas décadas, Raul Morodo, o advogado e diplomata espanhol que encaminhou a investigação do assassinato de Humberto Delgado para o causídico Mariano Robles, lembra um episódio: “Mário Soares assimilava tudo o que fosse útil para combater a ditadura, uma vez, em Paris, fomos ver um grão-mestre da maçonaria.”

António Reis corrobora esta visão: “Soares sempre teve a preocupação da abrangência, do diálogo com vários sectores da militância contra a ditadura, o grande valor dele sempre foi a liberdade pelo que nunca se deixou aprisionar por escolas ou seitas, daí a sua tolerância.” Inclusivamente com aqueles de quem mais desconfiava, como os comunistas.

“No I Governo constitucional de que era primeiro-ministro, eu e Octávio Pato fomos jantar duas vezes a casa de Mário Soares”, revela Carlos Brito. Aliás, Soares foi o advogado escolhido por Pato, a quem conhecia desde os tempos do MUD, para o defender no Tribunal Plenário de Lisboa, em vez de recorrer aos advogados do PCP. “Quando, finalmente, o visitei em Caxias como seu advogado, perguntei-lhe porque me escolhera, riu-se e respondeu: 'Porque tenho confiança em ti e o que lá vai, lá vai'”, relatará na sua autobiografia.

A multiplicidade destes contactos tinha consequências políticas. Relembra Carlos Brito: “No primeiro natal do I Governo constitucional houve um encontro de urgência com o PS, a delegação do PCP era constituída por mim e pelo Veiga de Oliveira, para que votássemos a favor do Orçamento do Estado, chegámos a uma base de entendimento já que a nossa abstenção era suficiente.” Noutros casos, subsistia a amizade. “O meu pai [o historiador Francisco Barradas de Carvalho] era militante do PCP, por tradição, mas muito crítico, apreciava Enrico Berlinguer [líder comunista italiano fundador do eurocomunismo], mas não tinha a coragem de dar o passo”, refere Alberto Arons de Carvalho. “Considerava o PS conservador, mas tinha cumplicidade com Mário Soares de quem era, aliás, padrinho de casamento.”

O mesmo ocorreu com militares do 25 de Abril. “Com Mário Soares estive em desacordo, muitas vezes fui crítico das suas posições políticas, como a forma como acabaram com o Conselho da Revolução pois apanhámos por tabela a guerra com o Eanes, mas Soares nunca aceitou pisar a liberdade”, comenta o coronel Vasco Lourenço. Opinião diversa é de Otelo Saraiva de Carvalho: “Tenho uma relação distante, devo-lhe algumas atenções, quando nos encontramos em actos sociais falamos, mas é uma pessoa em quem eu não confio.”

No campo oposto está Jardim Gonçalves: “Para ele, a liberdade é uma atitude própria, é como respirar, nunca aceitou uma limitação ao apreço que sente pelas pessoas.” O banqueiro destaca outro aspecto: “Aprecio muito a forma como fala do pai e da mãe, como expressa os valores da família.” Por seu lado, Manuel Carvalho da Silva assinala: “Não sou uma pessoa próxima de Mário Soares, encontramo-nos com regularidade, temos uma boa relação e há amizade entre nós.” Medeiros Ferreira, que por diversas vezes cruzou o seu percurso político com o de Soares, algumas em choque, analisa: “Quando foi adversário foi um adversário de peso, mas soube sempre manter a cordialidade e a amizade.”

O socialista Álvaro Beleza tem outra experiência. “Estive, em 1989, com outros dirigentes associativos, entre os quais José Pedro Aguiar-Branco, em Praga, na Revolução de Veludo”, relata o médico. “Vaclav Havel convidou-nos para a sua tomada de posse como Presidente a 31 de Dezembro, mas não queria tomar posse num carro soviético.” Mário Soares, cuja presença fora sugerida por Beleza, desfiou os seus contactos: “Falou com o presidente da Renault Portugal, com o PDG da Renault França, e Havel tomou posse num Renault 21 com matrícula portuguesa.” O carro ainda existe e tem actualmente a matrícula ADO3044 da República Checa.

Solucionar problemas de forma atípica. Foi o que o então ministro dos Negócios Estrangeiros fez para permitir a tomada de posse de Francisco Pereira de Moura como ministro da Economia do I Governo provisório, a seguir ao 25 de Abril. “Francisco Pereira de Moura não usava gravata, Spínola dizia que ministro só com gravata e Soares intervém”, relata Carlos Gaspar. “Você não tem uma camisola de gola alta?”, perguntou a Pereira de Moura. Depois, ligou a Spínola e disse-lhe que uma coisa que estava na moda na Europa, até era de etiqueta, era a camisola de colle roullet.” Foi com esta indumentária que o ministro tomou posse, assinando o compromisso com uma vulgar esferográfica.

Não era fácil trabalhar com Mário Soares. Os seus antigos colaboradores confessam-no. “Não admite amadorismo e desleixos, às vezes é colérico”, aponta José Manuel dos Santos. Uma versão confirmada por outros assessores, que recordam a similitude de atitudes com Winston Churchill. “Ele pensa a andar de um lado para o outro”, narra Alfredo Barroso. E é de uma resistência política a toda a prova. “O Soares é como uma bola de borracha, quanto mais se lhe bate, mas salta, dizia Victor Cunha Rego”, recorda Joaquim Aguiar.

Sempre assim foi. O cientista Mário Ruivo manteve uma amizade de 70 anos com Mário Soares. “No período crítico da saída dele do PCP almoçávamos sempre com Barradas de Carvalho, Francisco Ramos da Costa, Jorge Reis, Manuel Titto de Morais e Piteira Santos”, revela. As conversas continuaram: “Quando jantamos, falamos do mundo exterior, nada tem que ver com a política mas sim a sociedade – o bicho que mais nos interessa é o bicho homem.” Tertúlias com um figurino próprio. “Dizer as coisas que agradam cabe aos cortesãos, a amizade é outra coisa”, acentua. E seguem o mesmo princípio desde os tempos da juventude. “Que ninguém se resigne”, é o lema.