Mário Soares e a história do século XX
Mário Soares marcou a história do século XX, o século das guerras e das revoluções, como nenhum outro português. O "25 de Abril" deu-lhe a oportunidade de demonstrar que era possível transformar uma revolução numa democracia. Esse feito improvável é inseparável da sua determinação política na transição revolucionária portuguesa e assinala uma viragem crucial, no início de uma vaga de democratização que alterou a balança ideológica internacional e antecipou o fim do comunismo.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Mário Soares marcou a história do século XX, o século das guerras e das revoluções, como nenhum outro português. O "25 de Abril" deu-lhe a oportunidade de demonstrar que era possível transformar uma revolução numa democracia. Esse feito improvável é inseparável da sua determinação política na transição revolucionária portuguesa e assinala uma viragem crucial, no início de uma vaga de democratização que alterou a balança ideológica internacional e antecipou o fim do comunismo.
Ironicamente, o próprio Mário Soares, como Willy Brandt e tantos entre os melhores da sua geração, começou por ser comunista. A sua escola política foi a II Guerra Mundial : Soares fez 17 anos no dia em que o Japão atacou Pearl Harbour e, quando a guerra acabou, tinha vinte anos e era militante do Partido Comunista Português. A luta decisiva contra o totalitarismo nazi prolongava-se na luta contra o regime salazarista, que decretou luto nacional pela morte de Hitler. O PCP era a força mais organizada da oposição, a União Soviética a principal responsável pela derrota do nazismo e o comunismo parecia ser a vaga do futuro.
A vitória aliada impos a restauração das democracias na Europa Ocidental, mas a ruptura das Nações Unidas garante a sobrevivência de Franco e Salazar, um erro das democracias que Soares nunca se cansou de denunciar. Soares está na prisão do Aljube quando Maria Barroso lhe consegue fazer chegar o jornal que anuncia a assinatura do Pacto do Atlântico Norte, que inclui Portugal como um dos fundadores da Aliança Atlântica. A Guerra Fria salva o regime autoritário e a polarização entre Washington e Moscovo acentua o fechamento do campo soviético. Soares, um homem de acção cujo temperamento libertário calha mal com o "centralismo democrático" e o puritanismo stalinista, vai ser expulso do Partido Comunista como "titista" e inicia uma longa travessia do deserto. Mas aprendeu uma lição : a política interna portuguesa é inseparável da política europeia e internacional.
O isolamento de Soares e da oposição democrática e republicana, sem relações externas e cercada pelo PCP e pelo regime salazarista, só começa a romper-se dez anos depois. Em 1956, a revolução húngara vai revelar a natureza do império soviético e a crise do Suez acelera a descolonização africana : os comunistas perdem a sua legitimidade revolucionária e o início das guerras coloniais marca o princípio do fim do regime autoritário, ostracizado nas Nações Unidas.
A tentativa falhada de liberalização marcelista confirma o declínio do regime. No exílio, em Paris, Soares cria um rede de relações políticas com a esquerda europeia e decide, com o apoio do Partido Social-Democrata alemão, fundar o Partido Socialista, reconhecido como membro da Internacional Socialista.
A revolução democrática
No dia 25 de Abril de 1974, à primeira notícia do golpe militar, Soares regressa a Portugal. O Secretário-Geral do PS toma o Sud Express para atravessar a Espanha, onde o regime franquista está perto do fim, chega a Santa Apolónia em apoteose e é nomeado Ministro dos Negócios Estrangeiros do I Governo Provisório.
A sua primeira missão é assegurar o reconhecimento do regime post-autoritário pelos aliados europeus - nenhum outro responsável político tem a sua credibilidade internacional. A segunda é estabelecer contactos com os dirigentes dos movimentos nacionalistas das colónias portuguesas e iniciar conversações para definir os termos da transferência de poderes. A terceira é institucionalizar uma democracia civil, o que pressupõe retirar do poder os militares, cuja saída de cena deve coincidir com o fim do processo de descolonização.
Porém, o golpe militar precipita um processo revolucionário, onde o Movimento das Forças Armadas consolida o seu poder e o PCP detem posições cada vez mais fortes : a crise do "28 de Setembro" confirma a deriva revolucionária.
Soares vai a Washington explicar a Henry Kissinger que nada está perdido. O Secretário de Estado norte-americano não está convencido : tal como Alvaro Cunhal, acha que em Lisboa se está a repetir o cenário da revolução bolchévik de 1917 e compara Soares a Kerensky, o chefe dos socialistas russos derrotado por Lenin. O Ministro português responde-lhe : "Mas eu não quero ser o Kerensky" ; e Kissinger replica : "O Kerensky também não". Depois da revolução, Kissinger recebe o novo Primeiro Ministro português e, perante os quadros superiores do Departamento de Estado, reconhece que Soares tinha razão e ele próprio se tinha enganado - a única instância em que Kissinger, nas suas memórias, reconhece ter-se enganado.
Com efeito, Soares mobiliza uma coligação impressionante para conter a tentativa de tomada do poder comunista. Na frente interna, faz alianças com os militares revolucionários que não querem submeter-se à linha cunhalista, arrasta os outros partidos democráticos, assim como facções da extrema-esquerda maoísta, ao mesmo tempo que enquadra a resistência da Igreja Católica. Na frente externa, tem ao seu lado Santiago Carrillo, Secretário-Geral do Partido Comunista de Espanha, e toda a Internacional Socialista : Brandt, Olaf Palme, François Mitterrand, Shimon Peres e Bruno Kreisky criam um Comité de Estocolmo para a defesa da democracia portuguesa e pressionam Leonid Brezhnev para deixar de apoiar a encenação bolchévik de Cunhal. Contra Kissinger, que quer fazer da revolução portuguesa um caso exemplar para vacinar as elites politicas em Itália e na Espanha contra a ameaça comunista, o Embaixador dos Estados Unidos em Lisboa, Frank Carlucci, é um seguidor entusiasta da linha soarista que consegue opor uma linha democrática de esquerda à tentativa de golpe comunista e travar a revolução.
O "25 de Novembro" é o momento da vitória. Na fórmula de André Malraux, pela primeira vez numa revolução do século XX os menchéviks ganharam aos bolchéviks, quando Soares demonstrou ser possível transformar uma revolução numa democracia constitucional. No mesmo sentido, Samuel Huntington reconhece no golpe militar do 25 de Abril de 1974 o ponto de partida improvável da "terceira vaga" de democratização que vai decidir a vitória ocidental na Guerra Fria.
O regresso à Europa
A transição portuguesa é uma dupla mudança do regime político e da natureza do Estado. Para Soares, a consolidação da democracia portuguesa exige a integração europeia de Portugal no fim do ciclo imperial. É essa a sua prioridade nos dez anos seguintes, durante os quais é três vezes primeiro-ministro.
Depois da vitória do PS nas eleições de 25 de Abril de 1976, Soares é Primeiro Ministro do I Governo Constitucional e, contra a posição dominante nas elites nacionais, vai impor a integração de Portugal nas Comunidades Europeias. O chefe do Governo socialista tem de romper com os mitos africanistas do nacionalismo português e, para tal, precisa de restaurar a centralidade dos vínculos europeus e ocidentais na definição da posição internacional de Portugal. A democracia portuguesa assume-se como membro pleno da NATO e, em 1977, num tour de force, Soares visita todas as capitais dos Estados membros e formaliza o pedido oficial de adesão de Portugal às Comunidades Europeias, antes da Espanha.
O regresso à Europa define o rumo da democracia portuguesa, cuja consolidação depende do sucesso da sua estratégia de integração europeia. Porém, a crise financeira nacional abre um período de instabilidade constitucional que leva Soares a demitir-se do cargo de Primeiro Ministro. Nos anos seguintes, com o apoio de Brandt e do Presidente Jimmy Carter, dirige as missões da Internacional Socialista na América Latina, onde o exemplo das transições democráticas em Portugal e na Espanha é o ponto de partida para uma nova etapa da vaga de democratização, que inclui a Venezuela, o Brasil, a Argentina e o Chile.
Em 1983, o PS volta a ganhar as eleições e Soares chefia o Governo do “Bloco central” para retomar a estratégia de integração europeia, paralisada pela negociação paralela da adesão de Portugal e da Espanha. Num segundo tour de force, o primeiro-ministro socialista consegue trazer a Lisboa todos os Chefes de Estado e de Governo da Comunidade Europeia - excepto a Grécia, mas incluindo a Rainha de Inglaterra e a Primeiro Ministro britânica. A sua pressão é decisiva e os acordos de adesão são assinados, no Mosteiro dos Jerónimos, no dia 12 de Junho de 1985. O ciclo europeu começa no mesmo lugar onde se iniciou o ciclo do império.
Mário Soares, com os seus ministros dos Negócios Estrangeiros, José Medeiros Ferreira e Jaime Gama, definiu a politica externa da democracia portuguesa. A dimensão europeia passa a ser o o eixo central da nova politica externa, completado pela dimensão atlântica - a aliança com os Estados Unidos e a NATO - e pelas relações com os países de língua portuguesa - o Brasil, ao lado dos novos Estados africanos. Portugal passa a ser reconhecido como um membro responsável da comunidade internacional e a ter relações com todos os Estados. O primeiro-ministro empenha-se particularmente na normalização das relações com a India, com Israel e com a China, reforça as relações políticas com a Alemanha, os Estados Unidos e a Espanha, negoceia uma nova Concordata com a Santa Sé e empenha-se em criar uma relação especial a democracia portuguesa e a democracia brasileira, condição prévia à construção de uma comunidade de língua portuguesa.
O fim da história
Portugal torna-se membro das Comunidades Europeias no dia 1 de Janeiro de 1986 e a consolidação da democracia fica completa logo a seguir com a eleição de Soares como Presidente da República.
Em Belém, o novo Presidente tem em cima da mesa as questões de Timor e de Macau. Com efeito, na sequência da visita do Presidente Ramalho Eanes à China no ano anterior, o início das conversações entre Lisboa e Pequim sobre o futuro de Macau está marcado para Junho de 1986. A negociação bilateral concentra-se em dois problemas principais : o primeiro refere-se à data da transferência de poderes que Pequim quer fazer coincidir a transição em Macau e em Hong Kong, mas Soares não aceita essa fórmula ; o segundo refere-se ao direito à nacionalidade portuguesa reconhecido a cem mil chineses residentes em Macau, que a China não quer aceitar mas Soares entende ser um direito intocável. Em ambos os casos, Portugal tem ganho de causa : nos termos da Declaração Conjunta sino-portuguesa, assinada em 1987, a transferência de soberania em Macau faz-se dois anos depois da colónia britânica e todos os chineses de Macau com direito à nacionalidade portuguesa continuam a poder ter os seus passaportes portugueses.
Paralelamente, nas Nações Unidas está preparado um instrumento diplomático que abre caminho à restauração das relações diplomáticas com a Indonésia com garantias sobre o respeito pela especificidade cultural dos Timorenses. Soares opõe-se à assinatura do memorandum de entendimento em Nova York e decide que Portugal deve manter a sua posição de princípio em defesa do direito de autodeterminação dos Timorenses e esperar pela mudança de regime político na Indonésia. Essa linha é preservada apesar das pressões externas, enquanto Soares toma iniciativas concretas para dar visibilidade à questão timorense, incluindo a apresentação da candidatura do novo administrador apostólico de Dili ao Prémio Nobel da Paz.
A eleição do Presidente Soares coincide com a chegada de Mikhail Gorbachev e a viragem estratégica da União Soviética. A primeira etapa do recuo soviético inclui Angola, onde Soares procura pôr fim ao isolamento político de Jonas Savimbi para acelerar a saída das tropas cubanas e obter um acordo entre a UNITA e o MPLA, mediado pela diplomacia portuguesa. A segunda etapa concentra-se na Europa de Leste, onde Soares é o único Chefe de Estado que toma posição a favor da reabilitação de Imre Nagy, cujos funerais oficiais em Budapest marcam o início da revolução europeia de 1989. A terceira etapa culmina com o fim do regime comunista russo, onde Soares pode reconhecer a etapa decisiva da "terceira vaga" de democratização que se inciou com a revolução portuguesa.
No "fim da história", as revoluções passaram a ser democráticas e essa transformação marca o fim pacífico da Guerra Fria e encerra o século XX, cuja história teria sido outra sem Mário Soares.