Amava a vida. E, portanto, a liberdade
Esteve sempre do lado onde estava a liberdade. É isso que lhe devemos. É essa a sua herança nestes tempos conturbados que vivemos.
A angústia de ter de preencher o espaço em branco a brilhar no ecrã persegue-me há já algum tempo. Como escrever à altura de um colosso político a quem o país deve as duas melhores coisas que lhe aconteceram e que se resumem a duas palavras que querem dizer tudo. Democracia e Europa.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
A angústia de ter de preencher o espaço em branco a brilhar no ecrã persegue-me há já algum tempo. Como escrever à altura de um colosso político a quem o país deve as duas melhores coisas que lhe aconteceram e que se resumem a duas palavras que querem dizer tudo. Democracia e Europa.
Como retratar quem andou sempre à frente do seu tempo, mesmo quando estava completamente sozinho na sua razão? Quem nunca, mas nunca, baixou a cabeça perante ninguém ou nenhum combate, que desprezava aqueles que se encolhiam perante as adversidades da História, que viam o mundo em formato pequeno, que estavam sempre prontos a desistir antes de o combate começar? Nunca confundiu o lado da barricada em que deveria estar. Foi sempre do lado da liberdade, fosse qual fosse o seu nome.
Acusaram-no de ser “amigo dos americanos”, nos dias conturbados do PREC. Talvez não soubessem que se reunia com Frank Carlucci, num zimbório no telhado da residência do embaixador americano em Lisboa, para garantir o apoio dos Estados Unidos, caso a ofensiva comunista pusesse em causa a democracia nascente e a pertença do seu país ao mundo livre. Quando, em 2006, almoçou com Carlucci nesse mesmo sítio, disse-me que sempre entrara pela porta da frente.
Chamaram-lhe direitista, quando anunciou que o socialismo ficaria uns tempos na gaveta, até o país conseguir pôr a economia de pé. “Não se trata agora de construir o socialismo. Trata-se de recuperar a economia deste país, para salvar a democracia portuguesa.” Dizer isto em 1978, na posse do seu segundo Governo (com o CDS), era visto como uma afronta por quase toda a esquerda, incluindo a sua. Mais uma vez, era ele que tinha razão. Tal como era ele o único líder democrático português que podia ligar a Willy Brant ou Helmut Schmidt e dizer que as divisas do Banco de Portugal estavam a acabar e que precisava rapidamente de um empréstimo para salvar a democracia.
Ele, que nunca deixou de acreditar que era possível salvar a democracia, quando o PCP e a União Soviética estavam na ofensiva, aqui e em quase todo o mundo. Que nunca se vergou às teses pessimistas de Henry Kissinger quanto ao futuro de Portugal do lado das democracias e não do lado da União Soviética. Kissinger convidou-o a ficar nos Estados Unidos e a dar aulas na universidade. Toda a gente sabe o que Soares lhe respondeu. O velho guru da política externa americana admitia que a queda de Portugal para o outro lado poderia servir de “vacina” aos outros países da Europa ocidental onde os comunistas tinham uma forte implantação. Sempre, mas sempre, criticou os que se rendiam à inevitabilidade ou que consideravam que o país era um caso perdido, pelo qual já nem valia a pena lutar.
Durante 30 anos combateu o fascismo, 13 vezes na cadeia, que não lhe tirava o sono, uma deportação, dois exílios. Até à madrugada desse dia que iniciou a terceira vaga da democratização do mundo, precisamente aqui. A liberdade estava-lhe no sangue e foi isso que fez com que raramente se enganasse sobre o seu lugar em cada combate. Venceu as primeiras eleições livres a 25 de Abril de 1975 para a Constituinte, que permitiram tirar pela primeira vez a fotografia da importância eleitoral de cada partido que emergiu da revolução. O PS venceu-as folgadamente. Seguiu-se-lhe o PPD/PSD. Álvaro Cunhal não aceitou o resultado das urnas (não passou dos 14%), transferindo a luta para a rua. Soares sabia que era preciso derrotá-lo também aí.
“Ele estava de olhos meio fechados, enquanto nós discutíamos onde devia realizar-se um grande comício para provar que o PS também era capaz de mobilizar o povo”, contou-me há muitos anos António Lopes Cardoso, então membro da direcção do PS. Uns diziam que podia ser no Coliseu, outros no Pavilhão dos Desportos. Todos à volta da mesa tinham receio de um fiasco. Soares levantou-se e limitou-se a dizer onde seria o comício: na Alameda. Fez-se um silêncio profundo. Não se enfrentava o PCP de outra maneira. Hoje sabemos o que aconteceu. Foi o ponto de viragem. A prova da rua que o PS precisava. Sempre soube exactamente o que queria. Naquela altura, sabia que era preciso garantir a democracia própria dos países livres. Sem qualquer concessão a tutelas militares ou a terceiro-mundismos românticos a que pouca gente resistiu. É isso que o país lhe deve em primeiro lugar. Foi nisso que sempre foi único.
Do lado da liberdade
No primeiro 4 de Julho passado depois dos Cravos, Vasco Gonçalves avisou os seus ministros de que não deviam ir à festa convocada pela embaixada americana. “Eu tenciono ir, se quiser, pode demitir-me.” Foi ele e um grupo muito restrito de gente. A maioria não conseguiu enfrentar o ambiente de perseguição criado pelo PCP. Quando, em 1983, François Mitterrand convocou os líderes da Internacional Socialista para um jantar, com a ideia de debaterem o pedido americano para colocar em território europeu mísseis de médio alcance, capazes de responder aos SS-20 que Moscovo colocara do lado de lá do muro, o assunto não era nada pacífico. O jovem Neil Kinnok, líder do Labour em véspera de eleições, declarou que não só era contra como tencionava, caso vencesse, desarmar unilateralmente o seu país. Soares não resistiu. “Então faço votos para que as perca.” Caiu o Carmo e a Trindade, com os nórdicos, mais pacifistas, a criticá-lo e Felipe González a tentar pôr água na fervura. “A reacção mais normal até foi a do próprio Kinnock”, contou ele muito mais tarde. Foi sempre assim. Nunca se calou.
Na democracia também se perde
Quando se candidatou em 1985, depois de aplicar um duro programa de austeridade e de levar o país até à Comunidade Europeia, a sua popularidade estava próxima do zero. Muita gente achava que o “leão moribundo” já fizera o suficiente pelo país para poder retirar-se. Qualquer um, à esquerda e à direita, lhe poderia ganhar. Os seus amigos tentavam convencê-lo de que não se devia sujeitar a uma humilhação que ensombraria o seu lugar na História. Um dia, um deles visitou-o ainda em São Bento, para convencê-lo a abandonar essa ideia. Quando esgotou os argumentos, Soares chamou-o para junto da janela do terceiro andar onde estavam. “Se você se atirasse daqui a baixo, o que acontecia?” Provavelmente, morria. “Pois é, eu acredito que apenas partiria uma perna.”
Tinha outro argumento, com o qual me respondeu quando fui falar com ele já à sede da campanha, no Saldanha, e resolvi, estupidez minha, voltar ao velho argumento. Levantou-se. Deu uma volta à secretária e disse-me: “Vocês são todos uns grandes democratas, mas não conseguem entender que, na democracia, alguém tem de perder.” Escreveu dois discursos para o dia da segunda volta, a 16 de Fevereiro, o da vitória e o da derrota, que conservou até hoje. No que nunca leu, a mensagem era só uma: “Não desistirei.” Nunca desistiu. Enfrentou o seu próprio partido em momentos difíceis, quando a clarificação da esquerda ainda estava por fazer e a tentação do eanismo pairava sobre o destino do PS e o lugar onde a esquerda devia ficar. A sua vitória na primeira volta das presidenciais sobre Salgado Zenha, apoiado por Eanes e bem visto pelo PCP, e Maria de Lourdes Pintasilgo, com a sua democracia participativa bem-intencionada mas bastante pouco europeia, resolveu o problema. Foi um combate tremendo.
Zenha era o seu “irmão”, o padrinho de Isabel, que se ocupava da sua família enquanto ele estava na cadeia ou no exílio. Mas há quase sempre um momento em que os “número dois” se cansam de o ser. Soares nunca escondeu a sua admiração por ele. “Era o único que tinha a coragem de me enfrentar abertamente.” Zenha dividia o PS ao meio. Tornava quase impossível a passagem de Soares à segunda volta. Soares venceu todos os debates televisivos, menos aquele que travou com Zenha. Estava abatido. Hesitante. Magoado. Zenha foi, como era sempre, muito mais frio. Era fácil derrubá-lo, pensavam os seus opositores, porque a dose de austeridade que teve de aplicar ao país durante dois anos atingira duramente as classes trabalhadoras, com o desemprego a subir e as bandeiras negras da fome constantemente hasteadas à porta do Palácio de São Bento. Resolveu de uma vez o destino da esquerda em Portugal. Venceu aquela que era a sua, social-democrata.
Na segunda volta, o debate televisivo com Freitas do Amaral foi igualmente decisivo. Soares era um adversário temível na televisão. Era como se estivesse em casa. No fim do debate, já na sala da maquilhagem, sentados lado a lado, vi Freitas do Amaral esticar a mão, tocar-lhe no braço e dizer apenas “obrigada”. Obrigada? Perguntei a Soares o que fora aquilo. “Não foi nada. Ele apenas me agradeceu o facto de eu não ter recordado que foi ele um dos que expulsaram o meu filho da universidade.” Não foi isso que impediu Soares de ser implacável.
A campanha não começou da melhor maneira, com a sua equipa desanimada e preparada para levar a cabo uma luta inglória. Soares não era recebido com a habitual simpatia. Até ao dia em que a sua comitiva parou na Marinha Grande para uma visita à Fábrica Stephens. Era uma vila com uma longa tradição de resistência ao fascismo onde o PCP sempre dominou. Os socialistas locais quiseram dissuadir Soares de fazer a visita, dizendo-lhe que lhe barrariam a entrada pela força. Fez, obviamente, o contrário. Agrediram-no com violência. Entrou na fábrica. As imagens correram o país. Foi a memória que voltou. A partir daí a campanha ganhou a dinâmica que a levaria até ao fim. Soares voltou a ser “fixe”.
Depois da eleição de Ramalho Eanes em 1980, teve de reconquistar o PS a pulso, sede a sede, militante a militante, por todo o país. Estava sozinho na sua oposição ao apoio socialista ao segundo mandato do Presidente. Apenas Sá Carneiro via Eanes da mesma maneira que ele. Teve obviamente razão. Eanes tratou de demonstrá-lo quando patrocinou o PRD, que tinha como objectivo acabar com o PS de Soares. Contou-me muito mais tarde que, na véspera da sua decisão de abandonar temporariamente o PS para não apoiar a candidatura do general, dormiu mal (coisa que raramente lhe acontecia, até no Aljube), acordou maldisposto sem saber porquê. Foi nesse preciso momento que decidiu suspender a sua militância socialista e anunciar que não apoiaria Eanes. A má disposição passou. Há coisas, como a liberdade ou a recusa em aceitar o que não se defende, que eram nele quase viscerais.
Cidadão do mundo
Conhecia meio mundo, incluindo muitos líderes políticos internacionais. Deixou de ter qualquer dúvida sobre Gorbatchov quando o visitou em Moscovo e falou longamente com ele. “Percebi que falámos a mesma linguagem.”
Em 1982, Willy Brandt, então presidente da IS, encarregou-o de uma missão sobre o Médio Oriente, para tentar perceber as perspectivas de paz. Conhecia muito bem Shimon Peres. Nunca tinha falado com Arafat, na altura fechado no seu bunker em Beirute, cidade dividida e em guerra. Ninguém o conseguiu dissuadir de visitar Arafat. Embarcou num cargueiro de bandeira cipriota em Nicósia (apenas descobriu que levava tanques de guerra no porão quando os viu desembarcar em Beirute), para chegar ao Líbano, onde o aguardava um funcionário da IS com um automóvel. Atravessou a linha de demarcação sob fogo permanente. Uma bala atravessou o pára-brisas e encaixou-se no assento de Bernardino Gomes (que faleceu recentemente e que o acompanhou quase sempre). Ninguém quebrou o pesado silêncio. Soares encontrou-se com o líder da OLP no seu bunker para tentar percebê-lo. Tinha histórias magníficas sobre muitos líderes mundiais, que adorava contar e que diziam mais sobre eles do que muitas páginas de análises.
Se esteve atento ao debate entre os comentadores nacionais sobre se Fidel era ou não um ditador, teria dado uma sonora gargalhada. Na década de 1980, numa cimeira ibero-americana que contou com a presença (e o longo discurso) de Fidel, disse a uma jornalista que o homem era um dinossauro em vias extinção. Foi um escândalo. Nunca lhe passou pela cabeça outra coisa.
Nunca perdia um bom combate
Nunca perdia um bom combate. Quem fez campanhas eleitorais com ele sabe que atravessava a rua para ir falar com quem o estivesse a insultar. Era disso que gostava mais, para além dos banhos de multidão e das almoçaradas. “Eu gosto das pessoas e percebo-as”, disse-me um dia, sobre a sua intuição política e a sua popularidade. Também nunca deixava cair um amigo, quando estava na mó de baixo. Foi assim com Ricardo Salgado ou com Sócrates, mas com muita outra gente desconhecida. Estava bem na rua ou na tasca, no mais selecto dos restaurantes, numa sala resguardada de um banco ou num palácio real.
Salvar a economia
Quando pegou no país em 1976, chefiando o primeiro Governo Constitucional, a economia estava de rastos e os cofres do Estado vazios. O 11 de Março e as nacionalizações tinham sido o último prego no caixão. Silva Lopes, então governador do Banco de Portugal, telefonou-lhe às três da manhã a dizer que o Estado não tinha divisas para importar fosse o que fosse, incluindo farinha de trigo para o pão. Disse-lhe para ir dormir, que era o que ele próprio ia continuar a fazer, que na manhã seguinte enfrentariam o problema. Telefonou ao então chanceler Helmut Schmidt. Não foi a única vez. Teve recorrer a um “grande empréstimo” financiado em parte pelos EUA e por alguns países europeus, para conseguir sair da crise. A moeda de troca foi aceitar a presença do FMI. Constâncio era na altura o seu ministro das Finanças.
Em 1983, com o desequilíbrio insustentável da balança com o exterior no fim do último governo da AD (aliança entre PSD, CDS e PPM), voltou a vencer as eleições e regressou ao governo para resolver mais uma crise. Fez uma campanha eleitoral a prometer austeridade. Antes, tinha-se entendido com Mota Pinto para a criação de um governo de coligação PS-PSD, a única maneira de enfrentar a crise financeira. Seria primeiro-ministro quem as ganhasse. Foi por isso que “pude dizer a verdade aos eleitores”. Teve em Mota Pinto um aliado que acabou por ser um amigo. Ambos enfrentaram uma crise tremenda, com enormes custos sociais, sem se deixarem pressionar pelos respectivos partidos. O caminho terminou em Junho de 1985, quando foi assinado o Tratado de Adesão à Comunidade Económica Europeia. No dia seguinte, Eanes demitiu o seu Governo. Sabia que estes dois anos lhe podiam ter custado as presidenciais. Não contou com a emergência de Cavaco Silva, que impossibilitou qualquer hipótese de acordo para as presidenciais. Não deixou de fazer o que era preciso. Quando Ernâni Lopes chegava com mais um corte no subsídio de Natal, perguntava-lhe: “Tem mesmo de ser?” Tinha mesmo de ser. As bandeiras negras dos operários da cintura industrial estavam todos os dias lá, à porta de São Bento. Hoje, a direita criou a sua própria narrativa sobre as duas grandes crises que Soares venceu. Diz que foi o PSD que sempre salvou o país da bancarrota, para o qual o PS o empurrou por duas vezes antes da última. Conseguem dizê-lo sem se rir. No Palácio de Belém iniciou um estilo de presidência novo, que passava pelas visitas ao país, a melhor forma de conhecer os problemas das pessoas reais. O seu estilo marcou os seus sucessores, à excepção de Cavaco Silva.
O último combate
No final da sua vida política, travou mais um combate que muita gente não percebeu. Contra o neoliberalismo ou, como ele dizia, a “economia de casino”, desligada da realidade, insensível a qualquer sentido de solidariedade social, dona dos mercados e, consequentemente, do mundo globalizado. Fê-lo bastante antes da crise financeira de 2008, que se abateu sobre as grandes economias ocidentais e deixou um mar de sofrimento, de dificuldades e de incertezas que ainda hoje perduram. Na altura, ninguém compreendeu muito bem a sua mensagem. Hoje, temos de reconhecer que tinha, em boa parte, razão. O que ele anunciou aconteceu. A economia estourou abrindo as portas à maior recessão desde a Grande Depressão de 1929. Não lia os dossiers (não era bem assim) e nada sabia de economia. Não precisava. Enfurecia-se com aqueles que diziam que não havia alternativa ao “pensamento único”. Avisava para a revolta das massas contra uma elite política que deixara de ter qualquer sentido ético (“dominada pelo dinheiro, sem princípios nem visão global”) ou qualquer capacidade para ouvir os seus problemas. Uma vez, em 2007, estava ele no Vau, José Sócrates pediu-lhe para ir almoçar com ele a São Bento. Estava eufórico, conta Soares. “Queria dizer-me que conseguiria reduzir o défice para um valor abaixo dos 3%.” Eu disse-lhe: “Oh homem, mas você ainda não percebeu o que aí vem? Daqui a pouco, vai ver que isso não interessa nada.” “Ele até ficou um pouco zangado comigo.” Vivemos hoje aquilo que ele previu.
Em 2011, num livro com uma longa entrevista que lhe fiz sobre a crise (Portugal Tem Saída!), insistia em que o caminho que a Europa estava a seguir levaria inexoravelmente à revolta das pessoas. Mais uma vez teve razão. Muitos de nós pensávamos que a sua viragem à esquerda não era compreensível. Não era disso que se tratava. Era da confiança das pessoas na democracia e na igualdade de oportunidades que desaparecia perante as regras dos mercados e a globalização desregulada e destinada a maximizar o lucro. Descobriu Obama muito cedo e acreditou profundamente nele. Viu-o ainda perder algumas batalhas. Não deixou de acreditar.
Mas enganam-se aqueles que dizem que ele não compreendeu a necessidade da austeridade, quando da crise da dívida e do euro. Nunca Soares deixou de dizer que a nossa pertença ao euro exigia sacrifícios, incluindo o resgate de 2011. Nessa entrevista, nem sequer criticava demasiado o programa da troika. Aceitava a ideia de que era preciso vivermos um pouco mais modestamente, mas lembrava aquilo que o país tinha ganho, da saúde à educação, passando pelo bem-estar geral das pessoas e o seu direito a uma vida digna. Pedro Passos Coelho, antes de constituir governo, foi visitá-lo à Fundação. Soares recebeu-o bem, mostrou-se compreensivo e até simpatizou com ele. Apenas algum tempo depois percebeu que a sua fé no neoliberalismo o ia levar a um caminho que nunca poderia apoiar. Ignorava as pessoas e o seu sofrimento em nome de uma ideia que já estava ultrapassada. É verdade que tomou algumas posições controversas. Apoiou líderes estrangeiros, como Chávez, que pouco tinham de democratas. Defendeu uma viragem à esquerda do PS pouco consentânea com a sua própria herança socialista. Talvez porque era um crítico implacável da “terceira via”. A sua segunda candidatura presidencial foi um erro, como muita gente lhe disse. Depois da derrota, bastou-lhe uma semana para digeri-la. Depois seguiu em frente.
A sua Europa está a desaparecer
Bateu-se incansavelmente pela Europa. Conseguiu assinar o Tratado de Adesão, em Junho de 1985, antes de ser demitido por Ramalho Eanes. Foi, por vezes, uma luta solitária, que muita gente considerou impossível, que muita gente temeu. É o segundo legado que lhe devemos. “A pertença a essa Europa verdadeira, que ficava para lá dos Pirenéus”, como dizia Eduardo Lourenço. Democrática, próspera e socialmente justa. Que serviria também para garantir a irreversibilidade da democracia. Não foram batalhas fáceis, como hoje à distância nos parecem. Nunca baixou a cabeça perante ninguém nem perante qualquer desafio. Tinha um orgulho enorme no país, na sua capacidade de regeneração. Desprezava toda a espécie de Velhos do Restelo. Quando esteve na moda a recuperação do papel de D. Carlos no desenvolvimento do país, em contraponto à I República, ficou indignado. “Como é que se pode defender um rei que chamava o país de piolheira?” Irritava-se com a intelectualidade que dizia mal da pátria e a condenava à mediocridade. Quando choviam as críticas pequeninas às suas visitas de Estado, acompanhado por comitivas que incluíam empresários, artistas, intelectuais, sindicalistas, políticos, respondia da mesma maneira: “Não me vou apresentar de chapéu na mão.”
A coragem
Tinha uma enorme coragem. Uma vez, no seu escritório da casa do Vau, enquanto gravava a última conversa antes de escrever uma pequena biografia, perguntei-lhe de onde vinha essa coragem. Começou a andar à volta da secretária, parou à sua frente. “Não sei bem. O que lhe posso dizer é que, se entrasse neste momento alguém por aquela porta com uma pistola apontada e me mandasse ir para debaixo da secretária, eu não iria.” “Isso, eu sei.” Era também a coragem que apreciava nos políticos.
Não desperdiçava um bom momento de conversa ou um bom restaurante. Tinha uma força anímica difícil de acompanhar. Dava-se bem com toda a gente. Mas não perdoava facilmente a quem o traía. Tinha enormes defeitos que eram o preço das suas qualidades únicas. Como quase todos os grandes líderes das democracias com quem conviveu ou que admirou. Churchill ou Brandt. Como eles, a História tinha um encontro marcado com ele ao qual não faltou e para o qual esteve à altura. Estar-lhe-emos eternamente gratos. Saiu de cena sem ver, porventura, os seus piores receios acontecerem. Não estará cá para combatê-los. Era o que faria. Acreditava nos homens de carne e osso. Na vida. E, portanto, na liberdade. Sophia foi talvez quem o descreveu melhor, numa simples frase. “Apoio a candidatura de Mário Soares à Presidência da República sabendo que, haja o que houver, ele estará sempre onde estiver a liberdade e onde estiver a coragem.”