O México é um grande canibal e isso também é Lisboa 2017

A Capital Ibero-Americana de Cultura começa com uma exposição do artista mexicano Demián Flores. Não é sobre indígenas bons e conquistadores maus, nem sobre o seu contrário, mas interroga-se sobre o que aconteceu ao paraíso.

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Não se sabe se o Códice Borbónico, uma das obras mais importantes da cultura mexicana, foi feito antes ou depois da conquista do império azteca iniciada por Hernán Cortés em 1519. Seja anterior ou posterior ao domínio colonial espanhol, está pintado num estilo pré-colombiano e, com os seus 14 metros de comprimento e as suas páginas de 40 centímetros, é considerado o códice mexicano mais bem executado. 

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Não se sabe se o Códice Borbónico, uma das obras mais importantes da cultura mexicana, foi feito antes ou depois da conquista do império azteca iniciada por Hernán Cortés em 1519. Seja anterior ou posterior ao domínio colonial espanhol, está pintado num estilo pré-colombiano e, com os seus 14 metros de comprimento e as suas páginas de 40 centímetros, é considerado o códice mexicano mais bem executado. 

Foi ao Códice Borbónico que o artista plástico mexicano Demián Flores, 45 anos, recorreu para conceber a exposição O Fim do Paraíso, que será inaugurada este sábado às 17h no Padrão dos Descobrimentos, marcando o arranque de Lisboa 2017 – Capital Ibero-Americana de Cultura. Vários elementos iconográficos do códice aparecem num grande mural que espalha a sua narrativa pelas paredes do piso inferior deste emblemático monumento de Belém (com cerca de 300 mil visitantes por ano, a grande maioria estrangeiros que chegam atraídos pelo miradouro). Estes símbolos aztecas fazem parte do Tonalpohuallo, o calendário religioso de 260 dias que constitui a primeira parte do famoso documento pré-colombiano (hoje guardado na Biblioteca da Assembleia Nacional Francesa, também conhecida como Palácio Bourbon – daí o seu nome). Com uma “semana” dividida em 13 dias, cada período do calendário está dedicado a uma divindade com os seus rituais, festas e castigos, num livro que também servia para prever o destino dos recém-nascidos. 

São esses deuses antigos ou símbolos de rituais que Demián Flores, como nos seus trabalhos anteriores, mistura com personagem ocidentais contemporâneas. Estas collages iconográficas produzem “híbridos”, explica a historiadora de arte Lluvia Sepulveda, mulher do artista, que acompanha a visita guiada para jornalistas. Como o mexicano de hoje, que é um “mestiço”, um híbrido ocidental-indígena. “Todos estamos misturados.”

“O México não pode ser visto sem o império, sem o colonialismo”, explica o artista. Mas Lluvia Sepulveda diz que esta exposição não quer falar dos “indígenas maus” e dos “conquistadores bons”, nem propor o contrário. “Os aztecas também eram sociedades conquistadoras e imperiais. Todas as figuras têm a ver com essa dualidade.” É isso que expressa um índio que carrega um crânio colocado sobre um tzompantil, o altar em que se empalavam as cabeças humanas dos inimigos sacrificados em honra do sol. “Os aztecas legitimaram a sua condição de povo conquistador através da religião e criaram uma cosmogonia para submeter os outros povos.”

A exposição O Fim do Paraíso vai também buscar a utopia ocidental do paraíso terrestre, repescado depois da descoberta da América, cruzando-o com o paraíso celeste prometido aos índios pela evangelização. É nos dois núcleos de gravuras que integram a exposição além do grande mural que melhor se compreende a destruição deste paraíso terrestre descrito logo no século XVI nas crónicas de Frei Bartolomeu de Las Casas. O frade dominicano que foi grande defensor dos indígenas escreve nos primeiros tempos da colonização que os habitantes da América parecem viver numa Idade de Ouro, tentando argumentar que hábitos bárbaros como o canibalismo não podem justificar uma colonização violenta. 

Passados 500 anos, defende Demián Flores, “esse paraíso acabou por ser sempre um estado fictício”. Mas o que é “falido”, acrescenta, “é o estado que nos governa”, porque o México não tem “um problema de identidade”. “O problema está num estado corrupto que dois anos depois ainda não consegue explicar como é que desapareceram 43 estudantes”, aponta, relembrando o massacre dos jovens de Iguala por elementos do cartel Guerreros Unidos, citado numa das séries de gravuras. “A antropofagia tem a ver com o que estamos a viver na América Latina com a violência do narcotráfico. O homem continua a comer o homem.” 

Se na primeira série de gravuras homens que representam o mito do Bom Selvagem aparecem com caras de soldados ou militares, na segunda já os militares são representados como pessoas normais. O artista explica que utiliza a paráfrase como uma forma irónica de reverter um significado. “A arte faz perguntas. Tem uma posição crítica e usa diferentes estratégias alegóricas. Às vezes, podem ser irónicas ou mesmo absurdas.” E o que Demián Flores diz é que nos devemos sempre interrogar sobre o significado de imagens que representam militares ou polícias.

“Demián cria uma ironia passado-presente, utopia-realidade, joga com o augúrio e o destino, com um paraíso que promete bonança mas que termina sendo uma realidade fatal, afectada pela decomposição social, pela morte e pela destruição do presente”, escreve a historiadora de arte num texto que acompanha a exposição. 

Este grande mural é na realidade uma impressão a preto e branco com um ou outro repinte. Com mais de 40 fragmentos, Demián Flores diz que é herdeiro do muralismo revolucionário do século XX e retoma conceitos como a democratização da imagem. Se lhe perguntamos por Diego Rivera, o artista contrapõe com José Orozco.  

Esta não é a primeira vez do artista mexicano em Portugal. Esteve cá em 2014, também pela mão de António Pinto Ribeiro, o coordenador-geral de Lisboa 2017, para integrar a exposição Artistas Comprometidos? Talvez, do programa Próximo Futuro da Fundação Gulbenkian.