Cruzeiro Seixas e Mário Cesariny em fuga do deserto
Artistas que se aproximam do desaparecimento num mundo que já não reconhecem, Mário Cesariny e Cruzeiro Seixas reencontram-se: Cruzeiro Seixas – As Cartas do Rei Artur, de Cláudia Rita Oliveira, e na reposição, versão restaurada, de Autografia, de Miguel Gonçalves Mendes.
No retrato que Miguel Gonçalves Mendes faz de Mário Cesariny em Autografia (em reposição na salas) há algo que o espectador não consegue afastar, fingir que não vê. São os braços no ar, as risadas irónicas, as sobrancelhas levantadas do artista. A sua eloquência, a sua inteligência cortante, o gosto pela conversa, o modo como interpela a máquina e quem filma. Mário Cesariny encena-se e ao seu espectáculo, um espectáculo de despedida. Cruzeiro Seixas – As Cartas do Rei Artur, de Cláudia Rita Oliveira, que estreia, tem outra respiração, mais suave, menos sincopada. Cruzeiro Seixas não conduz, deixa-se conduzir pelas suas memórias de desencontros, episódios, histórias. Vemo-lo de perfil, melancólico, a perscrutar o que está fora de campo. A ler as suas cartas. São temperamentos distintos que se revelam nos dois filmes. Temperamentos de dois artistas que marcaram a Lisboa do século XX.
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No retrato que Miguel Gonçalves Mendes faz de Mário Cesariny em Autografia (em reposição na salas) há algo que o espectador não consegue afastar, fingir que não vê. São os braços no ar, as risadas irónicas, as sobrancelhas levantadas do artista. A sua eloquência, a sua inteligência cortante, o gosto pela conversa, o modo como interpela a máquina e quem filma. Mário Cesariny encena-se e ao seu espectáculo, um espectáculo de despedida. Cruzeiro Seixas – As Cartas do Rei Artur, de Cláudia Rita Oliveira, que estreia, tem outra respiração, mais suave, menos sincopada. Cruzeiro Seixas não conduz, deixa-se conduzir pelas suas memórias de desencontros, episódios, histórias. Vemo-lo de perfil, melancólico, a perscrutar o que está fora de campo. A ler as suas cartas. São temperamentos distintos que se revelam nos dois filmes. Temperamentos de dois artistas que marcaram a Lisboa do século XX.
Autografia como Cruzeiro Seixas – As Cartas do Rei Artur podiam ser considerados documentos da história arte de portuguesa e são-no. Mas o que parece ter motivado Miguel Gonçalves Mendes e Cláudia Rita Oliveira foi menos o retrato destes dois homens como fabricadores (estando presentes, as menções a obras, a influências, a movimentos artísticos, ou outros artistas não são centrais) do que as suas narrativas e o modo como estas se construíram contra os constrangimentos e as circunstâncias de um contexto social e político. Cesariny e Cruzeiro Seixas são homens do seu tempo (o da segunda metade do século XX) que falam com o nosso (os primeiros espectadores são os cineastas). Nos relatos e nas imagens conta-se também um pouco da história de Portugal, de uma Lisboa entretanto desaparecida. Para tal, o método é o mesmo: colocar os artistas a recordar, a trabalhar a memória, portanto, a pensar e a falar. Memória, pensamento e discurso são os meios posto marcha numa colaboração entre artistas e os realizadores.
Duas personalidades
Mas os tons, os olhares são distintos. Cruzeiro Seixas – As Cartas do Rei Artur mostra um retrato de um homem tímido e lúcido. De alguém que à rebeldia romântica do artista, preferiu a discrição na sociedade, a estabilidade de uma vida. E o enquadramento do filme parece adequar-se à personalidade. Razoavelmente distante, sóbrio, acompanha os movimentos do corpo e dos olhares de Cruzeiro Seixas, os seus suspiros, as suas poses. Vela as suas recordações - as de “um não viver de que deixará documentos”, seguindo os ritmos que elas vão marcando.
Em Autografia, a grandeza do artista (e não apenas a do pintor) está sempre à espeita, mesmo quando mero eco de outros tempos. A câmara explora essa possibilidade, aproximando-se do rosto, da pele, do corpo, para capturar um modo apaixonado, artístico de viver. Vemo-lo evocada nas pinturas e nas esculturas que enchem as paredes, manifestando-se nas suas reflexões sobre o mundo (repare-se na indignação que provoca em Cesariny a execução de um preso no EUA), na consciência de que “um fogo muito grande que ardeu e ficaram as cinzas” (aguardando, sem o dizer, que alguém as ressuscite). A condição de artista não impede Cesariny, com algum desconforto, de recordar a sua vida familiar, os seus casos amorosos, a descoberta da sexualidade, a relação entre a pintura e a poesia, os seus tempos de aluno na António Arroio. Transcende a arte para, para falar da vida, abandona o palco, para tomar os bastidores.
Como Cruzeiro Seixas, Cesariny teme a morte, mas não tanto o esquecimento. Contra esse pouco haverá pouco fazer, pois, admite, nada é eterno. Entristece-o sim, e dolorosamente, o desaparecimento dos amigos, aqueles que não resistiram à ditadura de Salazar, a sua amada Lisboa, com os cafés e as ruas onde a sua poesia se fez. Lamento partilhado por Cruzeiro Seixas e que irmana os dois documentários, pois é também sobre o deserto e o desamparo que ameaça a velhice, mesmo quando esta (como é o caso) não abole o pensamento, que os dois filmes viajam. E nesse sentido, os dois falam connosco.
Amigos, amantes, companheiros de aventuras, Seixas e Cesariny receiam ambos a morte, mas insistem em amar a vida, como sempre amaram. Prefeririam alguém com quem conversar às homenagens institucionais e à cupidez útil do mundo da arte. Homem mundano, boémio (ao contrário de Cruzeiro Seixas mais reservado), Cesariny vê no amor e no acto amoroso um contacto com o sagrado, sem ficar contudo preso a uma dimensão mística. O amor, que nos seus poemas considera ser uma espécie de grito, acontece com outro: o amante ou a amante é espelho onde nos vemos: “Vejo o outro através de mim”, diz a dada altura. Homem que amou durante e apesar da ditadura, fugindo da sua repressão, Cesariny foi uma artista resistente que o 25 de Abril viria a libertar. Mas, sem encontrar a sua alma gémea, nunca se prendeu, foi homem do seu destino, como faz questão de frisar. Continuou a pintura e escrever, sem de arrepender das decisões, dos amantes abandonados, findado o engate, numa Lisboa que foi deixando de reconhecer e que declarará morta (Miguel Gonçalves Mendes parecer restituir esse lugar fantasmático ao artista, levando-o a lugares familiares, onde o declínio se avizinha).
Ao contrário de Cesariny, que admite ter gostado mais de si do que dos outros, Cruzeiro Seixas ter-se-á deixado hipnotizar por aquilo que não fez em termos artísticos e sentimentais, permanecendo numa espécie de exílio interior. Um e outro seguiriam percursos distintos. Em Autografia há contudo um elemento que fica de fora do filme de Cláudia Rita Oliveira. Personalidade genial, excessiva, Mário Cesariny revela-se numa fragilidade que contrasta com o pudor de Cruzeiro Seixas. Depois do artista, ele é o irmão que conforta e beija a irmã, que recorda com uma saudade magoada o pai violento. Vê-se mesmo tentado a perdoá-lo e recorda o sonho que se repete, aquele em tenta desculpar-se ao pai (“não foi o filho que este desejava”, desabafa num tom sério e irónica), mas em que nunca chegam a trocar palavras.
Não se trata de arrependimento, mas de uma estranha melancolia que desperta diante do envelhecimento da irmã, que abraça, beija e que sujeita a questões incómodas: a melancolia do pensamento quando este se aproxima do seu fim. Embora Cruzeiro Seixas se desvele menos em termos de discurso sobre a sua intimidade, também ele se confronta com o mesmo desfecho. E é à porta desse desfecho, mais ou menos distante, que os filmes se interrompem, permitindo aos dois artistas a fuga do esquecimento, agora que o deserto se aproxima. Cesariny voando sobre Lisboa, Cruzeiro dando vida, com as palavras, aos seus desenhos. Se não estiveram e não estão juntos na vida, estarão certamente na memória que os dois filmes guardam da arte que nos deixaram.