É ilegal, mas até o Estado pede cópia do cartão de cidadão
Lei proíbe reprodução há dez anos, mas escolas, institutos públicos, bancos e operadoras de telecomunicações insistem na prática. Protecção de Dados alerta para roubo de identidade. Alteração legislativa que prevê multa até 750 euros está por aprovar desde Junho.
Um banco envia uma carta aos clientes a pedir que actualizem os seus dados com a fotocópia do cartão de cidadão. Uma instituição pública exige que se anexe a digitalização do documento de identificação na candidatura pela Internet ao apoio à habitação.
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Um banco envia uma carta aos clientes a pedir que actualizem os seus dados com a fotocópia do cartão de cidadão. Uma instituição pública exige que se anexe a digitalização do documento de identificação na candidatura pela Internet ao apoio à habitação.
Há quase dez anos que qualquer uma destas situações deveria ter deixado de ser prática. Hoje existem formas de confirmar a identidade, presencialmente e à distância, que dispensam as reproduções digitais ou em papel, como os leitores de cartão de cidadão ou a assinatura digital. Os leitores são, aliás, vendidos a um custo entre os dez e os 20 euros, e o software está disponível para ser descarregado gratuitamente no site do Cartão de Cidadão.
Mas muitos desconhecem que a lei proíbe a reprodução do cartão de cidadão sem o consentimento do titular. E em poucas situações se apresenta de forma explícita uma alternativa a quem não quer entregar uma cópia do seu documento de identificação. Desde Junho que está no Parlamento, à espera de conclusão, uma proposta de alteração à legislação para aplicar uma multa a quem não cumprir a lei que vai de 250 até 750 euros.
"O consentimento tem de ser livre”
“O consentimento tem de ser livre”, sublinha Clara Guerra, porta-voz da Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD), e isso significa que a pessoa não pode ser forçada a fazê-lo por não ter alternativa (do tipo: “Ou deixa fotocopiar o cartão de cidadão, ou não abrimos uma conta no banco”).
Por enquanto, a dificuldade é mesmo garantir a aplicação da lei que contraria um hábito tão enraizado. Se até os serviços do Estado praticam esta “regra ilegal”, como é que se consegue acabar com o gesto de fotocopiar o cartão de cidadão em hotéis, escolas, centros de línguas, bancos, empresas de distribuição de electricidade e gás, operadoras telefónicas, só para dar alguns exemplos? Como mudar mentalidades, quando o próprio Estado viola a lei?
Quando se entrega o cartão de cidadão para alguém o reproduzir, está-se a divulgar mais dados do que o necessário — o que, por si só, é um risco. Trata-se de muita informação que fica disponível sem necessidade. Além disso, essa informação pode ser cruzada com outros elementos como moradas. Para que é que o banco precisa de saber o número de utente de saúde ou a altura de alguém?
Em causa, alerta a CNPD, está a multiplicação de dados, de números que são únicos e universais, permitindo uma conjugação que representa um perigo: a criação de falsas identidades e de usurpação de identidade. Com os números de identificação consegue-se ter na mão várias informações — e quanto “mais informação tenho, mais ainda consigo saber”, acrescenta Clara Guerra.
Do IHRU ao Millenium: faça o upload
Voltando ao início deste texto: o formulário online do Porta 65, programa do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) para apoio de renda a jovens, pede que se faça o upload da cópia do cartão de cidadão. Se o candidato quiser prosseguir sem dar esse passo, não consegue. Mesmo perguntando aos serviços, por email, qual é a alternativa, a resposta é que o documento é obrigatório. Já quando questionado o gabinete de imprensa do IHRU, a resposta é que o candidato pode “dirigir-se a um serviço de apoio à instrução das candidaturas”, mostrar o cartão a um técnico, que irá por sua vez elaborar um documento a confirmá-lo.
Se formos a instituições de ensino, a prática de pedir a “fotocópia do cartão de cidadão” no acto de inscrição ainda parece mais generalizada — por exemplo, na página do Agrupamento de Escolas de Venda de Pinheiro é expressamente pedida a fotocópia do cartão de cidadão para matrícula no ano lectivo 2016/17. Este não será caso único. As orientações dadas às escolas são para que cumpram a lei, mas o Ministério da Educação está “consciente de que há práticas e hábitos que não se alteram de imediato”, diz o gabinete de imprensa. Por isso, actua “sempre que é sinalizado algum caso de incumprimento”.
Estes estão longe de ser casos isolados. Se quisermos ter uma conta bancária, bancos como o Millenium BCP disponibilizam a opção de a abrir online, mas só se enviar a tal cópia do cartão de cidadão. Ao PÚBLICO o gabinete de comunicação do Millenium BCP responde “que o que a lei proíbe é apenas a reprodução do cartão de cidadão sem o consentimento do respectivo titular”. Nos casos em que não o queira fazer, pode deslocar-se a uma sucursal, bastando apresentar o seu documento de identificação.
Também a Caixa Geral de Depósitos começa por pedir ao potencial cliente uma cópia do cartão, de modo a fazer a ”completa e comprovada identificação de cada um dos titulares das contas”, como é exigido pelo Banco de Portugal. Mas, se a pessoa recusar, a instituição dá como alternativa a assinatura presencial de uma “declaração especificamente elaborada para esse fim”.
O Banco de Portugal tem recomendado “às instituições que solicitem outro documento idóneo (por exemplo, o passaporte) para a identificação do cliente, uma vez que a cópia do cartão de cidadão não esgota os meios de demonstração do cumprimento do dever de identificação”, esclarece o gabinete de imprensa do supervisor bancário.
Telemóveis: casos repetem-se nas operadoras
A história repete-se com as empresas de telemóveis, mas há nuances. Questionando os operadores sobre os documentos que são necessários para a celebração de contratos, as respostas mudam. A Nos foi a única a garantir explicitamente que não pede a cópia do cartão por não ser “permitido”, algo mais tarde reiterado pelo serviço de comunicação como sendo prática da empresa.
Na Meo, os serviços disseram que a carta de condução poderia servir de alternativa. Já na Vodafone foi dada a hipótese de riscar os dados pessoais que não eram necessários (como a filiação e a altura). Mas, oficialmente, o gabinete de comunicação desta empresa diz que sugerem aos clientes a apresentação da assinatura devidamente reconhecida por notário, advogado ou solicitador, ou então a assinatura electrónica – e acrescenta que as lojas já dispõem de leitores que permitem verificar a identidade de um cidadão.
Mas o que acontecerá em muitas das situações em que se está a tratar de burocracias pela Internet é acabar por enviar uma cópia do cartão de cidadão para evitar a deslocação a uma loja. Já dizia a ministra da Presidência e da Modernização Administrativa, Maria Manuel Leitão Marques, que há uns meses criticou publicamente esta “prática”: "Costumo dizer: eu até dou, mas dou porque quero, porque é proibido por lei."