É ilegal, mas até o Estado pede cópia do cartão de cidadão

Lei proíbe reprodução há dez anos, mas escolas, institutos públicos, bancos e operadoras de telecomunicações insistem na prática. Protecção de Dados alerta para roubo de identidade. Alteração legislativa que prevê multa até 750 euros está por aprovar desde Junho.

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A lei do Cartão de Cidadão tem quase 10 anos e desde então proíbe a reprodução do documento Enric Vives-Rubio

Um banco envia uma carta aos clientes a pedir que actualizem os seus dados com a fotocópia do cartão de cidadão. Uma instituição pública exige que se anexe a digitalização do documento de identificação na candidatura pela Internet ao apoio à habitação.

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Um banco envia uma carta aos clientes a pedir que actualizem os seus dados com a fotocópia do cartão de cidadão. Uma instituição pública exige que se anexe a digitalização do documento de identificação na candidatura pela Internet ao apoio à habitação.

Há quase dez anos que qualquer uma destas situações deveria ter deixado de ser prática. Hoje existem formas de confirmar a identidade, presencialmente e à distância, que dispensam as reproduções digitais ou em papel, como os leitores de cartão de cidadão ou a assinatura digital. Os leitores são, aliás, vendidos a um custo entre os dez e os 20 euros, e o software está disponível para ser descarregado gratuitamente no site do Cartão de Cidadão.   

Mas muitos desconhecem que a lei proíbe a reprodução do cartão de cidadão sem o consentimento do titular. E em poucas situações se apresenta de forma explícita uma alternativa a quem não quer entregar uma cópia do seu documento de identificação. Desde Junho que está no Parlamento, à espera de conclusão, uma proposta de alteração à legislação para aplicar uma multa a quem não cumprir a lei que vai de 250 até 750 euros.

"O consentimento tem de ser livre”

“O consentimento tem de ser livre”, sublinha Clara Guerra, porta-voz da Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD), e isso significa que a pessoa não pode ser forçada a fazê-lo por não ter alternativa (do tipo: “Ou deixa fotocopiar o cartão de cidadão, ou não abrimos uma conta no banco”).

Por enquanto, a dificuldade é mesmo garantir a aplicação da lei que contraria um hábito tão enraizado. Se até os serviços do Estado praticam esta “regra ilegal”, como é que se consegue acabar com o gesto de fotocopiar o cartão de cidadão em hotéis, escolas, centros de línguas, bancos, empresas de distribuição de electricidade e gás, operadoras telefónicas, só para dar alguns exemplos? Como mudar mentalidades, quando o próprio Estado viola a lei?

Quando se entrega o cartão de cidadão para alguém o reproduzir, está-se a divulgar mais dados do que o necessário —  o que, por si só, é um risco. Trata-se de muita informação que fica disponível sem necessidade. Além disso, essa informação pode ser cruzada com outros elementos como moradas. Para que é que o banco precisa de saber o número de utente de saúde ou a altura de alguém?

Em causa, alerta a CNPD, está a multiplicação de dados, de números que são únicos e universais, permitindo uma conjugação que representa um perigo: a criação de falsas identidades e de usurpação de identidade. Com os números de identificação consegue-se ter na mão várias informações — e quanto “mais informação tenho, mais ainda consigo saber”, acrescenta Clara Guerra.  

Do IHRU ao Millenium: faça o upload 

Voltando ao início deste texto: o formulário online do Porta 65, programa do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) para apoio de renda a jovens, pede que se faça o upload da cópia do cartão de cidadão. Se o candidato quiser prosseguir sem dar esse passo, não consegue. Mesmo perguntando aos serviços, por email, qual é a alternativa, a resposta é que o documento é obrigatório. Já quando questionado o gabinete de imprensa do IHRU, a resposta é que o candidato pode “dirigir-se a um serviço de apoio à instrução das candidaturas”, mostrar o cartão a um técnico, que irá por sua vez elaborar um documento a confirmá-lo.   

Se formos a instituições de ensino, a prática de pedir a “fotocópia do cartão de cidadão” no acto de inscrição ainda parece mais generalizada —  por exemplo, na página do Agrupamento de Escolas de Venda de Pinheiro é expressamente pedida a fotocópia do cartão de cidadão para matrícula no ano lectivo 2016/17. Este não será caso único. As orientações dadas às escolas são para que cumpram a lei, mas o Ministério da Educação está “consciente de que há práticas e hábitos que não se alteram de imediato”, diz o gabinete de imprensa. Por isso, actua “sempre que é sinalizado algum caso de incumprimento”. 

Estes estão longe de ser casos isolados. Se quisermos ter uma conta bancária, bancos como o Millenium BCP disponibilizam a opção de a abrir online, mas só se enviar a tal cópia do cartão de cidadão. Ao PÚBLICO o gabinete de comunicação do Millenium BCP responde “que o que a lei proíbe é apenas a reprodução do cartão de cidadão sem o consentimento do respectivo titular”. Nos casos em que não o queira fazer, pode deslocar-se a uma sucursal, bastando apresentar o seu documento de identificação.

Também a Caixa Geral de Depósitos começa por pedir ao potencial cliente uma cópia do cartão, de modo a fazer a ”completa e comprovada identificação de cada um dos titulares das contas”, como é exigido pelo Banco de Portugal. Mas, se a pessoa recusar, a  instituição dá como alternativa a assinatura presencial de uma “declaração especificamente elaborada para esse fim”.

O Banco de Portugal tem recomendado “às instituições que solicitem outro documento idóneo (por exemplo, o passaporte) para a identificação do cliente, uma vez que a cópia do cartão de cidadão não esgota os meios de demonstração do cumprimento do dever de identificação”, esclarece o gabinete de imprensa do supervisor bancário.

Telemóveis: casos repetem-se nas operadoras

A história repete-se com as empresas de telemóveis, mas há nuances. Questionando os operadores sobre os documentos que são necessários para a celebração de contratos, as respostas mudam. A Nos foi a única a garantir explicitamente que não pede a cópia do cartão por não ser “permitido”, algo mais tarde reiterado pelo serviço de comunicação como sendo prática da empresa.

Na Meo, os serviços disseram que a carta de condução poderia servir de alternativa. Já na Vodafone foi dada a hipótese de riscar os dados pessoais que não eram necessários (como a filiação e a altura). Mas, oficialmente, o gabinete de comunicação desta empresa diz que sugerem aos clientes a apresentação da assinatura devidamente reconhecida por notário, advogado ou solicitador, ou então a assinatura electrónica – e acrescenta que as lojas já dispõem de leitores que permitem verificar a identidade de um cidadão.

Mas o que acontecerá em muitas das situações em que se está a tratar de burocracias pela Internet é acabar por enviar uma cópia do cartão de cidadão para evitar a deslocação a uma loja. Já dizia a ministra da Presidência e da Modernização Administrativa, Maria Manuel Leitão Marques, que há uns meses criticou publicamente esta “prática”: "Costumo dizer: eu até dou, mas dou porque quero, porque é proibido por lei."