Timor está nestas casas
Ruy Cinatti escreveu muita poesia com Timor na cabeça, mas também fez no território vários levantamentos em que se serviu dos seus conhecimentos de agrónomo e meteorologista.Arquitectura Timorense é um desses trabalhos em que se redescobre o tanto que o ligava àquela terra.
Nasceu em Londres, perdeu a mãe aos dois anos e teve sempre uma relação distante com o pai, que preferia que tivesse escolhido a Marinha e que nunca o quis poeta. Mas foi sobretudo a poesia que o prendeu. A poesia e Timor. Foi a esse território então sob administração portuguesa que Ruy Cinatti chegou pela primeira vez em 1946, com o curso de Agronomia que haveria de levar oito anos a fazer ainda por completar e funções a desempenhar como secretário do governador, um cargo cheio de rotinas e papelada que não lhe interessavam (mais tarde haveria de ser chefe dos serviços agronómicos).
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Nasceu em Londres, perdeu a mãe aos dois anos e teve sempre uma relação distante com o pai, que preferia que tivesse escolhido a Marinha e que nunca o quis poeta. Mas foi sobretudo a poesia que o prendeu. A poesia e Timor. Foi a esse território então sob administração portuguesa que Ruy Cinatti chegou pela primeira vez em 1946, com o curso de Agronomia que haveria de levar oito anos a fazer ainda por completar e funções a desempenhar como secretário do governador, um cargo cheio de rotinas e papelada que não lhe interessavam (mais tarde haveria de ser chefe dos serviços agronómicos).
Foi numa das suas estadias em Timor que este engenheiro agrónomo e meteorologista começou a desenvolver, com os arquitectos Leopoldo de Almeida e António de Sousa Mendes, os trabalhos de campo que haveriam de dar origem ao livro que o Museu Nacional de Etnologia (MNE) e o Instituto Camões reeditaram no final do Verão – Arquitectura Timorense – e que tem na pequena exposição Arquitectura Timorense: Miniaturas do Mundo (até 17 de Fevereiro) um complemento que o evoca através de plantas, revistas, desenhos, maquetas, fotografias e outros objectos saídos da colecção do MNE, muitos deles deixados pelo próprio Cinatti e outros pelo almirante Sarmento Rodrigues.
Integrados numa missão promovida pela Junta de Investigação do Ultramar, os três autores foram para o terreno em 1958 com o objectivo de fazer um levantamento do “habitat nativo” de Timor, das suas tipologias e métodos de construção. Cinatti, no entanto, seria obrigado a regressar a Londres pouco tempo depois para estudar na Universidade de Oxford onde se doutorou em Antropologia Social e Etnografia, em 1961. Foi precisamente nesse ano que o livro, já com Leopoldo de Almeida como grande impulsionador, é dado por terminado.
O volume, que agora se reeditou em 330 páginas que incluem vários documentos inéditos, só teria lançamento em 1987, fazendo parte do programa da homenagem que o MNE dedicou a Cinatti, um ano depois da sua morte. E continua a ser uma obra de referência para o estudo da arquitectura vernacular deste pequeno país asiático que foi português durante quase 500 anos (o seu título “colonial” esteve para ser, aliás, “A Habitação no Timor Português”).
Com uma concepção “clássica”, que combina arquitectura, geografia humana e antropologia, o livro concentra-se nos processos de construção e na longevidade destas casas – algo que dependia da madeira e dos produtos vegetais usados e dos lugares em que eram construídas (topografia, clima) – e nas vivências familiares e comunitárias a elas associadas, explica Paulo Costa, director do MNE desde Março de 2015, que herdou este projecto de reedição do seu antecessor, Joaquim Pais de Brito, um antropólogo que chegou a conhecer Cinatti (1915-1986).
Trinta anos na gaveta
Por que razão esteve Arquitectura Timorense quase 30 anos à espera de ser publicado? E o que podemos nele encontrar?
A resposta à primeira pergunta é incerta e à segunda é dada pelo próprio autor de O Livro do Nómada Meu Amigo logo na introdução.
O objectivo, explica Cinatti, é fazer uma compilação das formas de construção nativa timorense, lançando sobre elas um olhar meticuloso que não ignora – não pode fazê-lo – os contextos sociais, económicos e culturais que lhes dão origem. O que querem o engenheiro-poeta e a sua equipa é mostrar as mais variadas habitações espalhadas pelo território e por ele condicionadas, falando, através delas, das pessoas, da religião, dos rituais e das lendas que marcam as comunidades e que encontram reflexo, por exemplo, nos altos relevos de colunas e traves de madeira das casas, construídas e reconstruídas por várias gerações de uma mesma família.
A este caderno de encargos base junta-se também uma outra vertente utilitária – perceber de que forma os métodos de construção tradicionais, em que Cinatti reconhece uma enorme sustentabilidade que já encontrara na forma como os timorenses cultivavam os campos no máximo respeito pela natureza, podiam ser usados na criação de núcleos habitacionais maiores, uma exigência do desenvolvimento industrial da ilha, “facto inevitável e natural” nos anos que se seguiriam, escreve.
“Falamos num contexto colonial, de que Cinatti era, aliás, muito crítico, e por isso não podemos dissociar estes trabalhos dos objectivos do colonizador, que não eram puramente científicos. Como sempre, é preciso contextualizar”, diz Paulo Costa. Reconhece, no entanto, que a missão que dá origem a este livro não levantou a mesma polémica de outros projectos da Junta de Investigação do Ultramar, como o da equipa de Jorge Dias no planalto Maconde. “Este é um estudo para o desenvolvimento, feito a pensar na criação de cidades, mas feito por um Cinatti que admirava profundamente o povo timorense, que chegou a fazer pactos de sangue com chefes locais e a ser vigiado pela PIDE [a polícia política do Estado Novo].”
De notar que, dez anos antes, em 1949, a Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais já lhe encomendara um estudo sobre a flora, a madeira e outros recursos do território.
“Mas Cinatti faz tudo isto com um respeito profundo pelas pessoas, com um desejo de conhecimento das práticas sociais que acompanham o trabalho dos campos, a construção das casas. E isto é ainda mais importante, porque a casa é aqui um microcosmo, a ligação entre o mundo visível e o sobrenatural”, explica o antropólogo ao apontar para uma das maquetas no centro da exposição, ligação directa a um livro que divide o território em sete regiões e outras tantas tipologias de habitação (Bobonaro, Maubisse, Baucau, Viqueque, Suai, Ocussi e Lautem, esta última palco das construções mais icónicas e espectaculares). E para ilustrar esta ligação entre o profano e o divino exemplifica: “É junto do telhado que são guardados os objectos sagrados, que só são usados em momentos especiais. Este movimento de elevação não é apenas de ordem prática, não é como quando, em nossas casas, arrumamos o faqueiro das festas na última prateleira.”
Um espírito errático
Ruy Cinatti, que chegou a ser funcionário do Museu de Etnologia, teve uns últimos anos de vida conturbados, diz Paulo Costa: “Estava perdido, a situação em Timor afligia-o. Andava pelas ruas do Bairro Alto a distribuir poemas a alertar para aquilo tudo.” “Aquilo tudo” que deixava Cinatti angustiado dizia respeito à violenta ocupação militar indonésia, a partir de 1975.
Pais de Brito conheceu-o no final dos anos 1970, início dos 80, precisamente nessa sua “circulação febril” pela cidade, com as suas “brochuras tipo almanaque Borda d’Água cheias de poemas que ele usava para inquietar as consciências” em relação à situação que se vivia no território.
“O seu amor pelos timorenses é muito intenso, muito verdadeiro, e atravessa sobretudo toda a sua poesia, mas também os textos mais científicos e documentais, como este da Arquitectura…”, explica o antropólogo. “Cinatti é incapaz de ler os timorenses sem ler a paisagem em que vivem e os rituais nela inscritos, sem falar da terra, do arvoredo, da montanha. E isto é ainda mais importante, se tivermos em conta que ele construiu muito de si próprio a partir daquele povo.”
O poeta-antropólogo era, garante, uma “figura errática”, “indisciplinada”, com uma espécie de “fulgor permanente” que o impedia de estar sentado à secretária. Os atrasos de décadas no lançamento de Arquitectura Timorense, defende Pais de Brito, dever-se-ão muito provavelmente à sua incapacidade de se manter concentrado num só projecto e ao facto de ter estado pouco tempo no terreno com a dupla de arquitectos que co-assinam a obra, Leopoldo de Almeida (1932-1996) e António de Sousa Mendes (1921-).
“Muitas das fotografias do livro terão sido tiradas pelo Cinatti, mas não sabemos quais ao certo, porque ele não é suficientemente organizado para deixar essa e outras indicações. Mas sabemos que tem a preocupação de mostrar as casas e os espaços com as pessoas. É através delas, dos seus rituais, das suas actividades económicas, que ele mostra os seus usos, que explica a própria casa, os lugares.”
Para Joaquim Pais de Brito a presente edição tem um papel mais relevante do que a original, mesmo que a primeira tenha saído durante a ocupação, um período dramático em que as autoridades de Jacarta procuraram impor uma descaracterização sistemática de Timor e dos timorenses.
Transportando o leitor para os “anos fundadores” do inquérito à arquitectura regional, no final dos anos 1950, esta obra remete todos os que nela pegarem para uma paisagem e um modo de vida que sofreram grandes transformações e que hoje gozam de uma atenção renovada por parte dos antropólogos timorenses e até australianos que trabalham no terreno, explica o antigo director do museu de etnologia.
“Este livro é como um espelho enevoado a devolver o passado às novas gerações. Devolve as casas, objecto de uma destruição maciça durante a ocupação, mas devolve também os modos de habitar, a lógica de construção, os rituais associados à comunidade, os significados de pinturas e outros elementos figurativos. Explica por que razão os chefes locais punham os seus nomes nas casas e porque há traves de madeira com seios de mulheres representados”, acrescenta. “É que a casa em Timor não é só o espaço em que se vive – é um elemento altamente identitário em que se partilham paixões, crenças, uma ligação especial à natureza e ao sagrado, que em muitos casos se confundem.”
Pais de Brito acredita que esta nova edição vai circular muito em Timor e que pode desencadear novos projectos de investigação que procurem identificar que funções das casas tradicionais foram transferidas para as actuais, que são radicalmente diferentes e que, por exemplo, já não vêem os seus espaços distribuídos em função do género e da idade dos seus ocupantes.
“Quem folheia o livro percebe que a casa reflecte uma identidade construída na intimidade de um espaço, na proximidade física das pessoas, nos sons, nos cheiros… O seu valor é, claro, documental, mas também é simbólico – mostra um Timor que já não existe e pode dar azo a reflexões interessantes sobre o que o país é hoje, sobre o que permanece desse passado.”
“Timor foi para mim a poesia personificada durante os anos que lá permaneci”, escreveu Cinatti, aqui citado no jornal Tribuna de Macau. “Timor serviu-me poeticamente para um ajuste de contas entre mim e o mundo e entre o meu ser autêntico e o de todos os semelhantes”, acrescentou o autor de livros como Paisagens Timorenses com Vultos (1974) e Timor-Amor (1974), que agora volta a estar ao alcance de novos e velhos leitores através desta revisitação a Arquitectura Timorense promovida pelo MNE e pelo Camões, mas sobretudo pela monumental edição que a Assírio e Alvim consagra à sua obra poética (já saiu o primeiro volume, com o que publicou em vida), organizada por Luis Manuel Gaspar e com contributos de Peter Stilwell e Joana Matos Frias, dois estudiosos da obra deste autor, cujas anteriores publicações, incluindo antologias, na sua maioria desapareceu há muito do mercado.
Stilwell conhecia Cinatti desde criança e foi responsável pela organização de boa parte do espólio que o poeta deixou quando morreu, confinado em seis arcas que este padre e reitor da Universidade de São José, em Macau, abriu como quem sabe que vai encontrar um tesouro.
É o investigador quem conta ao jornal macaense que o amigo se debatia com as questões do colonialismo, que muitas vezes se manifestou contra a forma como a administração portuguesa tratava os timorenses e que, sem abdicar do rigor científico dos seus conhecimentos em agronomia e meteorologia, sempre compreendeu que, para intervir naquele território, era importante conhecer as crenças e os mitos do seu povo. Era fundamental perceber, por exemplo, porque é que as pessoas se recusavam a cortar as árvores da montanha quando lhes era dito que desmatassem para plantar café.
As novidades em relação ao valioso “acervo Cinatti” não ficarão por aqui. Em 2017, promete o director do MNE, dar-se-á continuidade ao trabalho com a Cinemateca Portuguesa para o tratamento e futura edição dos filmes que o poeta-antropólogo fez em Timor.