Pela primeira vez os EUA têm dois Presidentes ao mesmo tempo

O homem que vai para Washington para fazer tudo ao contrário, está a interferir em questões internacionais, desafiando a tradição política norte-americana e a autoridade de Barack Obama.

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Obama e Trump encontraram-se apenas uma vez, na Casa Branca, a 10 de Novembro KEVIN LAMARQUE/REUTERS

Donald Trump só entra na Casa Branca a 20 de Janeiro, mas para todos os efeitos já começou a governar. Numa postura que rompe com as convenções e décadas de tradição política norte-americana – e possivelmente também com a Constituição –, o Presidente eleito sempre com o dedo no Twitter tem anunciado decisões, promovido contactos e exercido a sua influência em matérias internacionais, esquecendo ou ignorando que os Estados Unidos da América têm um Presidente em funções… que é Barack Obama.

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Donald Trump só entra na Casa Branca a 20 de Janeiro, mas para todos os efeitos já começou a governar. Numa postura que rompe com as convenções e décadas de tradição política norte-americana – e possivelmente também com a Constituição –, o Presidente eleito sempre com o dedo no Twitter tem anunciado decisões, promovido contactos e exercido a sua influência em matérias internacionais, esquecendo ou ignorando que os Estados Unidos da América têm um Presidente em funções… que é Barack Obama.

O magnata do imobiliário e estrela da reality tv que concorreu à Casa Branca em nome do Partido Republicano avisou, ao longo da sua inusitada campanha eleitoral, que tencionava pôr fim ao rigor do politicamente correcto em Washington e fazer “tudo ao contrário” e como lhe apetecesse. Provou-o mal venceu a eleição, quando organizou uma série de comícios de agradecimento aos seus apoiantes.

E a partir daí foi sempre a inovar. “A presidência de Donald Trump assenta na premissa de quebra com as convenções. Trump parece disposto a romper o impasse, desafiar a História e abraçar a espontaneidade e originalidade. Mas também a alimentar o conflito e a controvérsia”, escreveu o director do Miller Center of Public Affairs da Universidade da Virginia, Bill Antholis.

Originalidades e controvérsias têm sido uma constante do “universo Trump” nas sete semanas que decorreram desde a votação presidencial. Desde logo, nas escolhas do Presidente eleito para a sua futura Administração: a maioria não tem experiência política, diplomática nem desempenhou cargos públicos. Vários dos nomeados não têm a confirmação garantida no Senado, onde os republicanos dispõem de maioria – inédito.

Também sem precedentes é o nível de potenciais conflitos de interesse que Trump leva para a Casa Branca. O assunto é de tal maneira delicado que a sua equipa de advogados ainda está a estudar a melhor maneira de afastar o futuro Presidente dos seus negócios – tendo em conta que o milionário nunca disponibilizou a sua declaração de rendimentos e património, todo o processo está a decorrer sem escrutínio público. O Presidente eleito também vai testar o limite das leis anti-nepotismo, se recorrer aos filhos como conselheiros "informais" da Casa Branca.

Mas a principal novidade deste período de transição tem sido o envolvimento activo de Trump na política interna e externa, em desrespeito da regra (implícita no texto constitucional) de que só há um Presidente em funções, a tomar decisões e a falar em nome dos Estados Unidos. A ubiquidade de Trump já levou o porta-voz da Casa Branca para questões de Segurança Nacional, Tommy Vietor, a lembrar que “só o Presidente tem autoridade para conduzir a política externa dos EUA”.

“É muito confuso”, comentou Stephen Hess, da Brookings Institution, questionado pela NBC News sobre o “ruído” que Trump introduz com as suas declarações inflamadas e desconcertantes. “O Presidente eleito não tem poder para fazer nenhuma destas coisas. E muitas das sugestões que está a dar agora podem mudar significativamente depois de tomar posse e conhecer a realidade do governo”, acrescentou.

Interferência inédita na ONU

Porventura a acção mais gravosa aconteceu na semana passada, quando Donald Trump decidiu interferir directamente na condução da política externa norte-americana apesar de não ter mandato para isso. Instado por “responsáveis” do Governo de Israel, o Presidente eleito usou a sua influência para tentar travar uma iniciativa em curso no Conselho de Segurança da ONU, em contramão com as orientações da Administração Obama: depois de um recado no Twitter a exigir o veto americano a uma resolução a condenar a expansão de colonatos judaicos em território disputado da Cisjordânia e Jerusalém Oriental, Trump logrou, num telefonema com o autocrático Presidente do Egipto, que este retirasse a proposta e adiasse a votação – iludindo assim a anunciada abstenção dos EUA.

Numa só penada, Trump dispôs-se a agir em nome de um líder estrangeiros e colocou em causa a política oficial do governo dos EUA e o seu papel de intermediário na resolução de um dos mais longos e complexos conflitos internacionais – assegurando, ainda antes de tomar posse, que o impasse negocial em que caiu o processo de paz israelo-palestiniano vai prolongar-se.

Braço-de-ferro com a China

Aqueles que começavam a digerir a surpresa e o choque com a eleição de Donald Trump voltaram a deitar as mãos à cabeça quando o milionário decidiu dar conta de uma conversa telefónica com a Presidente de Taiwan, um passo em falso diplomático que abria a porta para um embate político com a China. Fiel ao seu estilo, Trump respondeu ao furor deitando mais gasolina na fogueira: “Não percebo porque temos de respeitar a política de uma China”, escreveu no Twitter

Um segundo incidente diplomático aconteceu poucos dias mais tarde, quando Pequim “apreendeu” um drone submarino norte-americano no mar do Sul da China. Trump resolveu intrometer-se no assunto com tiradas retóricas no Twitter ao mesmo tempo que o Pentágono negociava a devolução do aparelho: primeiro, classificou o episódio como “um acto sem precedentes” e logo a seguir desvalorizou o incidente, revertendo a posição e dizendo até que a Marinha chinesa podia ficar com o aparelho.

E não é só no campo político que Trump promete lançar a confusão e afrontar Pequim. A equipa económica do Presidente eleito foi escolhida a dedo para travar uma guerra comercial com a China, com o potencial de precipitar uma vaga de proteccionismo a nível global.

Tiro de partida na corrida às armas

O Twitter é o canal privilegiado de comunicação do futuro Presidente, que terá de aprender dentro de semanas a viver sem partilhar todos os seus pensamentos em 140 caracteres com o resto do mundo. Foi, naturalmente, na rede social que anunciou a sua intenção de “reforçar e expandir” as capacidades nucleares dos EUA, dando o tiro de partida numa nova corrida às armas. Para conter o pânico, a equipa de transição fez sair um esclarecimento indicando que estava a referir-se à modernização do arsenal americano. Seria “a reviravolta política mais perigosa desde o fim da Guerra Fria”, alertou o director do Centro para o Controlo de Armas e Não-Proliferação, John Tierney, exigindo que Trump “se retrate imediatamente para salvaguardar a segurança internacional”. A resposta: “Que haja uma nova corrida às armas. Vamos ultrapassá-los a cada passo e superá-los a todos”, prometeu Trump na MSNBC.

Elogios a Putin continuam

Também na relação com a Rússia e o seu Presidente Vladimir Putin, o futuro Presidente dos EUA anda a apregoar uma mensagem radicalmente diferente da de Barack Obama, que munido das informações das agências de serviços secretos e espionagem americanas prometeu retaliar contra a interferência de Moscovo nas eleições presidenciais de Novembro. Trump, que não tem poupado os elogios a Putin, já veio desdizer o Presidente e as agências de informação norte-americanas, questionando as conclusões dos seus inquéritos à pirataria informática do regime russo – tal como Putin, a quem agradeceu o “muito simpático” cartão de Natal.