J. Cole: sombrio e luminoso em igual medida

A introspecção como motor para mais um belo disco de J. Cole.

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Em J. Cole repousa algum do melhor hip-hop americano contemporâneo

Pré-anunciado num repente e lançado pouco tempo depois, o sucessor do aclamado 2014 Forest Hills Drive (2014) prova que em J. Cole repousa algum do melhor hip-hop americano contemporâneo, valendo o seu nome, simultaneamente, como garantia de um futuro risonho contra prognósticos mais agoirentos. For Whom The Bell Tolls — título emprestado da obra de Hemingway (Por Quem os Sinos de Dobram) — inicia o disco em toada chuvosa e angustiada, canção magnificamente orquestrada (a percussão e a trompa em primeiro plano, o baixo a marcar o tom global e o violino um pouco depois) com a tremelicante voz de Cole, ora cantada, ora rappada, a ecoar no mais fundo de nós (e dele, claro, numa desarmante demonstração de vulnerabilidade…): “Ain’t no way to live, do I wanna die? / I don’t know…!”. Esta é a interrogação capital que dá mote e perpassa o disco, toda uma reflexão em torno da existência e do desejo de viver, sobretudo daquilo que fortalece este último: o amor (que pode ser exprimido num gesto tão prosaico como tratar da roupa de casa, como se ouve na funky Foldin Clothes), a partilha, uma nova vida (a recém-nascida filha de Cole, de quem são, provavelmente, os Your Eyez do título do álbum).

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Pré-anunciado num repente e lançado pouco tempo depois, o sucessor do aclamado 2014 Forest Hills Drive (2014) prova que em J. Cole repousa algum do melhor hip-hop americano contemporâneo, valendo o seu nome, simultaneamente, como garantia de um futuro risonho contra prognósticos mais agoirentos. For Whom The Bell Tolls — título emprestado da obra de Hemingway (Por Quem os Sinos de Dobram) — inicia o disco em toada chuvosa e angustiada, canção magnificamente orquestrada (a percussão e a trompa em primeiro plano, o baixo a marcar o tom global e o violino um pouco depois) com a tremelicante voz de Cole, ora cantada, ora rappada, a ecoar no mais fundo de nós (e dele, claro, numa desarmante demonstração de vulnerabilidade…): “Ain’t no way to live, do I wanna die? / I don’t know…!”. Esta é a interrogação capital que dá mote e perpassa o disco, toda uma reflexão em torno da existência e do desejo de viver, sobretudo daquilo que fortalece este último: o amor (que pode ser exprimido num gesto tão prosaico como tratar da roupa de casa, como se ouve na funky Foldin Clothes), a partilha, uma nova vida (a recém-nascida filha de Cole, de quem são, provavelmente, os Your Eyez do título do álbum).

A resposta-superação virá na lindíssima She’s Mine Pt. 1, talvez o melhor momento do álbum (uma das melhores canções de 2016, daquelas que nem apanhamos a letra nas primeiras audições, tão enlevados que estamos) e no qual Cole, cantando para a mulher e para a filha (numa bela ilustração de como as mesmas palavras podem servir uma só ideia de amor), diz ao mundo, agora sereno e calorosamente, I never felt so alive… (reiterando-o na Pt. 2 que surge umas faixas depois). Tudo exprimido sem artifício nem lamechice, antes envolto numa voz honesta, ponderada, madura. Tem-se dito que o álbum pode ser visto, de outro prisma, como a “carta” de um falecido amigo de Cole (na vida real) para a filha e que o rapper seria o “mediador” dessa passagem de testemunho (há várias referências a essa possibilidade, como as palavras da menina no fantástico e jazzístico instrumental que é Ville Mentality ou os versos de 4 Your Eyez Only). Verdade ou não, o que é interessante retirar daí é a forma como as vidas de todos nós, nas suas alegrias e angústias, se reflectem de umas para as outras e o modo como Cole, nesse vaivém, se revela um comovente contador de histórias.

Neste trajecto “da morte para a vida”, Cole vai-se notabilizando pelo refinamento das marcas que fizeram dele um dos mais proeminentes rappers da sua geração: o excelente gosto na parte instrumental (composição, orquestração, arranjos); a introspecção e o auto-questionamento permanente (o amor, Deus e a noção de pecado, os demónios interiores, a fama, tudo tópicos audíveis em Change); a capacidade de cruzar, fluidamente, essa “interioridade” com um olhar crítico sobre o “exterior” social (o racismo, o consumismo, as desigualdades, o machismo); o talento em doses iguais na escrita e na interpretação (há, indiscutivelmente, um “flow J. Cole”, e não raras vezes se ouvem rappers a segui-lo); enfim, a voz melodiosa de que se serve para cantar (nos refrões e não só). Se o recrudescimento do rap politicamente orientado para a defesa da causa negra é uma realidade (algo visível no movimento Black Lives Matter), Neighbors é a ilustração perfeita do preconceito com recurso a um episódio real e absolutamente caricato: em Março, Cole arrendou uma casa onde montou o estúdio para se dedicar ao álbum, mas os vizinhos, suspeitando de que se tratava de um ponto de produção e venda de droga, denunciaram o espaço às autoridades, que enviaram uma SWAT team para fazer uma rusga (não deixa de haver ironia quando no refrão se ouve I guess the neighbors think I’m sellin’ dope, pois dope, no calão americano, significa tanto droga como algo forte e poderoso, ou seja, como a própria música que Cole está a vender…).

No fundo, é o mesmo olhar desconfiado que tem motivado polícias a pararem, em tom intimidatório e achincalhante, dezenas de viaturas de afro-americanos, muitas das vezes com o ominoso final que se conhece (não só o assassínio das vítimas, também a absolvição dos autores). Mas ao contrário do que por vezes acontece no hip-hop, em que o olhar crítico não convive com o reconhecimento de culpas no cartório, Cole não deixa de apontar o dedo para o próprio ghetto e suas dinâmicas em 4 Your Eyez Only, longa dissertação que fecha o álbum, desde logo na desmistificação daquilo que é um real nigga (termo que também se ouve em destaque no refrão de Immortal, um beat que lembra a linha musical de Drake). Como se sabe, a “autenticidade” é toda uma questão (prática e não teórica) para a (sobre)vivência nos mais problemáticos blocks americanos, algo que sempre passou para o hip-hop no sentido da necessidade de manter a “genuinidade” em face da fama e da pressão da indústria (autenticidade, portanto, social num primeiro momento, e artística num segundo).

Eis, então, a lição de Cole: “Your daddy was a real nigga, not ‘cause he was hard / Not because he lived a life of crime and sat behind some bars / Not because he screamed “Fuck the law” / (…) Your daddy was a real nigga cause he loved you”. Enquanto no back office do álbum abundam produtores, instrumentistas (embora o próprio Cole toque baixo e guitarra em algumas canções) e back vocals, as colaborações propriamente ditas são nenhumas, opção que, singular num tempo em que os artistas atafulham os seus álbuns de convidados (grande parte das vezes para mascarar a sua carência criativa), já vem do seu álbum anterior. Não deixa de ser irónico (e aliviante!) que, num tempo em que o trap ocupou grande parte do espaço mediático e, com isso, de tipos a falar de drogas (e agora já não é só a cannabis, a cocaína e as pastilhas também já entram no cardápio…), dinheiro e armas (embora, claro, existam excepções), continue a ser em artistas apegados a um rap que poderíamos chamar, à falta de melhor palavra, de mais “tradicional”, ao menos num sentido programático (musicalmente, as nuances já são muitas), que todos pousem os olhos na hora de enunciar os nomes mais importantes da actualidade: Joey Badass, Bishop Nehru, Lamar, Chance the Rapper e, claro, J. Cole. Longa vida aos miúdos.