Só no Natal os sem-abrigo podem decidir onde vão jantar

Dias 16, 17, 18, 21, 23, 24 de Dezembro são dias em que há solicitações ao mesmo tempo e há que optar. Os sítios, datas e hora onde podem comer nesta altura do ano circulam de boca a boca.

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O que Paulo Jorge está hoje a sentir não é normal para quem vive na rua: está indeciso. “Não sei se fiz bem em vir comer aqui hoje.” Isto porque, ao mesmo tempo, podem estar a servir numa outra festa de Natal dirigida a pessoas sem abrigo uma refeição mais do seu agrado. Croquetes, por exemplo. Paulo adora croquetes.

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O que Paulo Jorge está hoje a sentir não é normal para quem vive na rua: está indeciso. “Não sei se fiz bem em vir comer aqui hoje.” Isto porque, ao mesmo tempo, podem estar a servir numa outra festa de Natal dirigida a pessoas sem abrigo uma refeição mais do seu agrado. Croquetes, por exemplo. Paulo adora croquetes.

Esta é a época do ano em que às pessoas sem abrigo é proporcionado o luxo da escolha. Por exemplo, Paulo pode decidir se fica até à noite nesta festa de Natal (que se prolonga por três dias), onde ao almoço comeu bacalhau à Brás e uma maçã como sobremesa, ou ir jantar a outra festa de Natal, de outra organização não governamental. Afinal, o bacalhau estava “muito salgado”. E “de maçãs ando eu farto”. Durante a tarde Paulo ainda tem tempo para decidir.

Para os sem-abrigo, a agenda de Natal começa vários dias antes do Natal: “O +Vida convida-o para o nosso jantar de Natal nas nossas instalações”. “É com muito prazer que o convidamos para um jantar de Natal no próximo dia 23”, lê-se em apenas dois dos pequenos convites que Paulo Jorge tem guardado no bolso interior do kispo.

A 16, 17, 18, 21, 23 e 24 de Dezembro acontecem festas e jantares, algumas ao mesmo tempo, e há que optar. Os sítios, datas e hora onde podem comer nesta altura do ano circulam de boca em boca, mas os menus não são disponibilizados. Aos pormenores logísticos é preciso juntar uma espécie de “sabedoria de Natais passados”. Quando há almoços e jantares sobrepostos, há um deles, mais experimentado, que aconselha os outros em relação à escolha mais acertada.

E, de todos as refeições natalícias disponibilizadas pelas várias entidades, há uma em que não há dúvida. A escolha está feita à partida. “Come-se mesmo bem”. Chamam-lhe “o almoço da Catedral”, é organizado por uma igreja evangélica. “É espectacular. Tem tudo. Até café de saco”, diz Paulo Jorge, cujos últimos trabalhos que conseguiu foi em cozinhas de restaurantes.

Estamos a falar de refeições. Mas na última sexta-feira, quando conhecemos Paulo Jorge, de 39 anos, este ainda recebeu de presente dois cabazes de Natal, até ofereceu um deles a um idoso de 73 anos que passa dificuldades. Nesta altura do ano pode ser também ele a oferecer.

Depois, além das instituições que convidam para festas, há o que Paulo chama os “grupos particulares”. São grupos de amigos, colegas de trabalho que se juntam para ir uma noite por outra ajudar os sem-abrigo com comida. Alguns fazem-no durante todo o ano, mas há mais generosidade e qualidade no Natal. “Há um grupo particular que distribui leitão assado, rissóis e croquetes” na Gare do Oriente (Lisboa), diz Paulo Jorge.

O problema destas iniciativas informais é a imprevisibilidade. Costumam vir, mas não é obrigatório, não é como as instituições que estão todos os dias na rua, mas que trazem menus algo repetitivos, ironiza, “salsicha e massa e massa e salsicha.” É o menu não-natalício. No resto do ano não há escolha. Depois, há um pequeno pico no fim de ano. E volta tudo ao normal. “Depois do Natal passam-se meses sem eu comer um bife”, comenta na festa da Comunidade Vida e Paz, junto a um dos espaços mais concorridos, o da distribuição de roupa usada e nova. Tira-se senha e espera-se.

Também a oferta de vestuário abunda por esta altura, comenta Alfredo Abreu, o presidente da rede de voluntariado Serve the City, que organiza jantares quinzenais todo o ano para pessoas em situação de vulnerabilidade. “Há pessoas que acabam o Natal com sete casacos. Que depois não têm onde guardar. Alguns acabam por vendê-los na feira da Ladra.”

Lembra a última ideia solidária de que ouviu falar, uma corda de roupa na Avenida da Liberdade para que as pessoas deixem agasalhos que já não se usam. “É a última gracinha.” Não há como não ser irónico, não é por mal. Alfredo Abreu percebe, é uma altura em que “parece que nos tornamos mais sensíveis. Pensamos: família, calor, prenda, avós. Ficamos chateados por haver pessoas que não têm esse património”. Por que é que as pessoas sem abrigo são “os alvos preferidos”? Talvez porque “a degradação é visível, vemos pessoas a dormir no vão de escada, com a barba crescida.” E “isso toca, é bom sinal”.

“Se eu quisesse fazer aqui festas de Natal todos os dias de Dezembro, não teria dificuldades em arranjar apoios”, diz ainda Alfredo Abreu. É mais difícil consegui-los fora deste mês. “Nós não fazemos jantares de Natal”, continua. A única diferença do jantar desta noite em que falamos com Alfredo é a animação de um coro gospel. De resto, é igual aos que se repetem de 15 em 15 dias e onde, à mesma mesa, se sentam voluntários e pessoas em situação de vulnerabilidade, todos com um autocolante com o primeiro nome. “Desafio-a a ir à mesa e distinguir os voluntários dos não- voluntários.” A ideia é essa.

As motivações para que muitos queiram ajudar estas pessoas com afinco especial nesta época são muitas, vão “dos sentimentos de culpa aos de pena e de injustiça”. Mas o que parece bom não o é necessariamente, explica o responsável. “Chega o Natal e estas pessoas parecem umas baratas tontas. É uma balbúrdia. O stress que é para ir a tudo...”

Dar roupa e comida é muitas vezes um pretexto para as instituições que trabalham no terreno em permanência se abeirarem deles e os tentarem tirar da rua. A filosofia das intervenções nesta área é tentar ir além das necessidades imediatas, de matar a fome e proteger do frio. Um exemplo: na Festa de Natal da Comunidade Vida e Paz, que se repetiu este ano pelo 28.º ano, além da refeição e da roupa, há um espaço saúde (onde se fazem rastreios de doenças, se dão vacinas ou se mede a tensão), há uma zona para tratar da documentação e outra (o Espaço Diálogo) para quem quer sair da rua e pretende, por exemplo, ir para um centro de acolhimento.

O herói e o miserável

Parece contra-intuitivo, mas muitas das pessoas que estão na rua não o estão apenas por falta de emprego, ou por causa da crise, explica Alfredo Abreu. Têm outras necessidades que a entrega de comida e roupa concentrada numa altura do ano não resolve, até piora, porque reforça neles próprios “a sua imagem de miseráveis”.

“Há muitos que querem ficar na rua. Uma boa parte das pessoas está na rua por problemas do foro emocional. Carregam ira, culpa, rejeição. Zangaram-se com alguém importante na sua vida, irmãos, mulher, filhos. Por mais roupa, comida, alojamento que se dê, o seu mundo interior continua turbulento.” Alfredo Abreu conta o caso de um sem-abrigo de há 20 anos, que faz questão de estar na rua, porque quer morrer na rua para que os irmãos se sintam culpabilizados pela sua morte. “O problema é que tem uma saúde de ferro...”

O que os jantares comunitários do Serve the City fazem é juntar pessoas em situação de vulnerabilidade, como os sem-abrigo, mas também idosos solitários ou famílias carenciadas, com voluntários que estão ali para conversar com eles, para os ouvir. O que as pessoas muitas vezes precisam é de tempo, de afecto, de alento, que as tratem como tratariam outra pessoa, de forma digna, explica. “Há pessoas que não mudam porque não lhes dão a energia para mudar.”

A organização de almoços e jantares só porque é Natal, o que faz, sobretudo, é ajudar quem dá e deixar quem recebe no mesmo sítio. “Um dá, o outro recebe. Um é o herói, o cidadão abnegado, o outro é um miserável, apenas o objecto da minha pena.”

Alfredo Abreu aconselha que esta generosidade seja canalizada de forma mais regular para instituições que trabalham com esta comunidade todo o ano, que todo o ano precisam de voluntários. “Há equipas de rua da Comunidade Vida e Paz 365 dias por ano”, diz.

Nos jantares do Serve the City cultivam essa ideia de que aos sem-abrigo não lhes cabe apenas receber. No final da refeição, que decorre na Cantina do Instituto Superior Técnico, em Lisboa, há vários livros, com temas que vão da pintura impressionista ao maravilhoso mundo dos gatos. “É oferta?”, pergunta um senhor. A voluntária responde que não, aqueles livros têm de ser devolvidos depois da leitura. Vê-se que fica contrariado: “Pensei que fosse oferta...” Mas acaba por levar um Lobo Antunes de empréstimo. “A taxa de devoluções de livros está a aumentar”, diz Alfredo Abreu.

“A dádiva maior é dar ao outro a possibilidade de ele me dar de volta, não ficar preso às dádivas dos outros”, continua. Quando Alfredo acaba esta frase, surge Mateus. Parece combinado, mas não foi. De blazer escuro e aprumado, cabelo penteadíssimo, Mateus abeira-se de Alfredo e diz-lhe que quer falar com ele. Quer dizer-lhe que já não está a viver na rua, voltou a casa e vive com a mulher e a filha. “Queria muito oferecer-lhe um lanchinho...”

Só Lisboa terá 600 pessoas sem-abrigo

Só na cidade de Lisboa estima-se que existam cerca de 600 pessoas sem-abrigo, de acordo com o levantamento mais recente coordenado pela Santa Casa da Miseri­córdia de Lisboa (2015), refere o Programa Municipal para a Pessoa Sem-Abrigo 2016-2018 . 

Em termos nacionais, não há balanços recentes. O que se sabe é que pelo menos 4420 cidadãos viveram em 2013 em jardins, estações de metro ou camionagem, paragens de autocarro, estacionamentos, passeios, viadutos, pontes e abrigos de emergência. Este foi o número de pessoas acompanhadas no âmbito da Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo, coordenada pelo Instituto de Segurança Social.

Já o Censos 2011 dava conta de 696 pessoas em situação de sem-abrigo no território nacional: 241 em Lisboa, 218 na região Norte, 113 no Algarve, 66 no Centro do país, 25 no Alentejo, 22 na Madeira e 11 nos Açores.