Os cais soterrados de Lisboa contam como a cidade roubou terreno ao rio
Dois homens tinham um plano para mudar a Lisboa ribeirinha, projectando uma revolução urbanística. O terramoto acelerou o sonho, que acabou por ser implementado por quem ficou com a fama: o Marquês de Pombal.
Há muita História soterrada por baixo de Lisboa. Que conta diversas estórias. Como a de um secretário de Estado que em 1742 considerou que se deveria mudar a frente ribeirinha, contemplando nesses planos a sua devolução aos lisboetas, para que dela fruíssem. São dele muitos dos planos mais tarde implementados pelo Marquês de Pombal na reconstrução de Lisboa. Episódios da vida de uma cidade agora revelados por Alexandra de Carvalho Antunes que, na sua obra Cais da Pedra e Cais Real. Planos Joaninos para a Marinha de Lisboa, conjuga texto com imagens de arquivo e documentação de importantes personagens da época joanina, para descrever os cais anteriores ao terramoto.
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Há muita História soterrada por baixo de Lisboa. Que conta diversas estórias. Como a de um secretário de Estado que em 1742 considerou que se deveria mudar a frente ribeirinha, contemplando nesses planos a sua devolução aos lisboetas, para que dela fruíssem. São dele muitos dos planos mais tarde implementados pelo Marquês de Pombal na reconstrução de Lisboa. Episódios da vida de uma cidade agora revelados por Alexandra de Carvalho Antunes que, na sua obra Cais da Pedra e Cais Real. Planos Joaninos para a Marinha de Lisboa, conjuga texto com imagens de arquivo e documentação de importantes personagens da época joanina, para descrever os cais anteriores ao terramoto.
A investigadora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e do GeoBioTec da Universidade de Aveiro, doutora em Arquitectura e mestre em Arte, Património e Restauro, está a preparar uma monografia sobre o Cais das Colunas, à qual esta primeira obra sobre os cais da cidade serve de introdução. “É uma parte da investigação que me permitiu perceber como é que o Cais das Colunas aparece e qual foi e é agora a sua importância”, esclarece. Começou a pesquisa há sete anos e dela fazem parte os artigos já publicados pela autora em vários jornais e revistas. Alexandra integrou a equipa que em 1996/97 foi responsável pela desmontagem parcial do cais das Colunas, para permitir a construção do túnel do metropolitano, e também esteve envolvida, em 2008, na devolução dos cerca de 1500 blocos de cantaria ao seu lugar de origem, no Terreiro do Paço. A participação no projecto, e o volume de informação adquirida, despertaram-lhe o interesse pelo passado deste pedaço da cidade defronte do rio, dos embarcadouros e muralhas que nele existiriam, e que estão agora soterrados pelo tempo. E permitiu-lhe esclarecer alguns mal-entendidos.
“A expressão ‘cais da pedra’ na verdade significa um cais construído em pedra. Ou seja, não é um termo específico para aquele cais, mas para vários”, explicou. “E a expressão ‘cais’, que agora entendemos como cais embarcadouro, significava uma grande muralha. Chamava-se cais tanto ao embarcadouro, que fazia parte da grande muralha, como à muralha no seu todo”. O primeiro local a receber a designação de “cais da pedra” de que há registo, no Terreiro do Paço, foi mandado construir por D. Manuel I e depois terminado por D. João III. Na dinastia filipina foi construído outro cais da pedra e já no reinado de D. João V, em 1742, ruiu o cais homónimo que estava junto à Alfândega do Jardim do Tabaco.
Um homem visionário
“Vemos o cais das Colunas como um monumento muito notável, mas um cais era projectado para ser funcional: as pessoas precisavam de sair daqui e ir para ali. Não havia caminho-de-ferro, quase não havia caminhos de todo, e era essa a razão pela qual se construíam os cais, para serem funcionais”, alertou a investigadora, que também esclareceu a autoria do plano para a beira-rio: “Alguns pormenores dos planos que atribuímos ao Marquês de Pombal e a D. José são, na verdade, resultado do aprimoramento de projectos definidos no fim do reinado de D. João V por Carlos Mardel, o homem que desenhou parte deles. Também António Guedes Pereira, o secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar em 1742, foi um homem extremamente importante, porque foi ele quem, uns anos antes do terramoto, impulsionou a definição de um grande projecto para a zona ribeirinha de Lisboa. Depois, em parte, esse plano foi aplicado pelo Marquês de Pombal”. Esse projecto constituía a construção de um cais que ia de Xabregas a Belém.
“Este secretário de Estado, pelos vistos um homem de grande visão, percebeu, embora não tenha sido ele a avançar com o projecto, que tinha de se fazer uma grande alteração à margem ribeirinha. Foi ele que pediu ao Senado da Câmara, em 1742, a elaboração de um projecto completo para a Marinha de Lisboa”. Nesse projecto estavam também identificados os principais problemas que era preciso resolver: “as dificuldades de acostagem das embarcações, para o desembarque de pessoas e de bens; os problemas do contrabando, porque não havia margens regularizadas – e quem tivesse o conhecimento de como se podia fazer entrar ou sair mercadoria sem pagar, conseguia fazê-lo –, e também a questão da segurança das embarcações quando havia tempestades”. Além disto, a visão progressista de António Guedes Pereira estendia-se ao usufruto público pela população comum, naquela altura tão subestimada: “Estávamos ainda no fim da primeira metade do século XVIII, o século das luzes, mas o prazer da margem e da paisagem era para alguns, não para todos”, avisa a investigadora. “Este projecto previa, assim, que se criasse uma alameda ao longo deste novo aterro que se iria fazer para regularizar a margem do Tejo, para todos poderem passear ali, como fazemos agora nos paredões e à beira-rio”.
E hoje continuamos a caminhar sobre o passado
Quem hoje passeia à beira-rio, pode não conhecer uma grande parte da história que fica sob o piso em que se caminha. Mas é uma parte da história que Alexandra de Carvalho Antunes acredita que não ficará enterrada para sempre. “Fui a uma destas visitas organizadas pela Empresa Municipal de Mobilidade e Estacionamento de Lisboa (EMEL) e vi que vai ficar um pedaço do que se descobriu no campo das Cebolas à mostra”. No campo em questão vai ser construído um novo parque de estacionamento, de apenas um piso, e parte da muralha fernandina ficará exposta, à vista de quem passa. “É um pedaço simbólico, porque não é o todo, mas acho que é importante ser publicado, para as pessoas saberem o que foi descoberto e onde está”, afirma a investigadora. Quanto ao cais real, em Belém, semelhante ao cais das Colunas, e construído antes do terramoto e desaparecido em finais do século XIX, acredita que parte dos blocos e das pedras tenham sido removidos e reutilizados, mas “se algum dia houver escavações em profundidade, ainda aparecerão pelo menos vestígios das fundações desse cais, de certeza”. E embora admita que as obras “nunca são feitas da melhor maneira”, acrescenta: “Se pensarmos que os aterros, quando foram feitos, estavam a sepultar vestígios, isso também não foi correcto. O próprio Terreiro do Paço tinha outros dois embarcadouros ao lado do cais das Colunas, que desapareceram, mas estão lá vestígios, que têm sido estudados. Se continuarmos a mexer na faixa ribeirinha, vamos continuar a encontrar memórias físicas deste passado, porque está tudo em aterro. Ganhou-se território ao rio e parte do que existia ainda está lá”.
Mas mantém algumas reservas em afirmar se revolver no passado será positivo ou negativo: “Não sei se é mais grave o que estamos a fazer agora, de estarmos a recuar ao passado, adulterando-o parcialmente, ou se foi pior aquela vontade de no passado sepultar tudo e avançar porque o que lá estava ‘já não servia para nada’. Não sei o que é pior. Mas sei que cada vez há mais consciência e respeito pelo passado e pelo património portugueses”.
Por agora, o livro Cais da Pedra e Cais Real. Planos Joaninos para a Marinha de Lisboa apenas está à venda na loja online da editora Canto Redondo, por 16,90 euros e com oferta de portes.
Quanto mais se escava, mais se descobre
Sempre que se escava na zona ribeirinha, são reveladas novas pistas sobre o passado. Os exemplos sucedem-se. Em 2012 duas embarcações seiscentistas surgiram durante as obras para a construção da nova sede da EDP, no Aterro da Boavista. No ano seguinte, Escavações arqueológicas na Praça D. Luís, no Cais do Sodré, Lisboa, revelaram um fundeadouro romano com mais de 2000 anos.
Em meados de Outubro, os trabalhos de escavação em curso na área do Miradouro Sophia de Mello Breyner Andresen, na Graça, para a instalação de um funicular que faria a ligação à Mouraria, revelaram a presença no local de um troço de muralha pertencente à "Cerca Fernandina” de Lisboa. Poucos dias depois, duas embarcações do século XIX foram descobertas no Campo das Cebolas, durante as obras de construção do parque de estacionamento referido por Alexandra de Carvalho Antunes.
Algum tempo depois, nos trabalhos destinados à instalação de um elevador de ligação ao Campo das Cebolas, descobriu-se a existência de um cemitério com perto de 70 cadáveres que poderá remontar à segunda metade do século XII. E a 11 de Dezembro, terminou uma obra particular na Boavista onde foram encontrados vestígios da antiga fábrica metalúrgica Vulcano e Colares, cuja actividade no local remonta a meados do século XIX, bem como da praia da Boavista, “preexistente à construção do aterro do mesmo nome para conquistar terreno ao rio”.
Texto editado por Ana Fernandes