Star Wars: Peter Cushing, morto há 20 anos, precisa outra vez de um agente?
Contém spoiler sobre Rogue One. O novo filme do franchise recupera digitalmente uma personagem e suscita o debate sobre actores imortais, actores que se digitalizam para serem "à prova de futuro" e sobre ética em Hollywood. Resistir é inútil, mas é bem feito?
No final de Rogue One: Uma história Star Wars, há espectadores que atravessaram um vale e outros que ficaram atolados nele. Uma personagem do filme de 1977 regressa para Rogue One, mas o actor que a interpretava já morreu. Peter Cushing volta em versão digital no filme e a sua imagem vive no chamado “uncanny valley”, aquele espaço em que gostamos de ou odiamos um rosto que parece humano, mas na verdade não é. Mais de 20 anos sobre a sua morte, o actor precisa de um agente? Um filme que ele nem sabia que ia existir serve para debater o futuro da sua profissão e do cinema digital.
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No final de Rogue One: Uma história Star Wars, há espectadores que atravessaram um vale e outros que ficaram atolados nele. Uma personagem do filme de 1977 regressa para Rogue One, mas o actor que a interpretava já morreu. Peter Cushing volta em versão digital no filme e a sua imagem vive no chamado “uncanny valley”, aquele espaço em que gostamos de ou odiamos um rosto que parece humano, mas na verdade não é. Mais de 20 anos sobre a sua morte, o actor precisa de um agente? Um filme que ele nem sabia que ia existir serve para debater o futuro da sua profissão e do cinema digital.
No primeiro filme Star Wars, A New Hope, de 1977, Carrie Fisher vocifera: “Reconheci o seu fedor nauseabundo quando fui trazida a bordo.” Isto é dito quando a sua princesa Leia se encontra com o vilão Governador Tarkin, interpretado pelo veterano britânico Peter Cushing. Ela é prisioneira rebelde, ele o dirigente do Império fascizante. “Encantadora até ao fim”, responde Cushing, com os vincos do rosto esquálido a agravar a ameaça na sua voz. Quarenta anos depois, Cushing é o actor que “faz” pela primeira vez um papel secundário de peso num filme que não rodou e que nasce depois da sua morte. Tudo graças a uma combinação de acção real e CGI (imagens geradas por computador, efeitos digitais) – e sem qualquer cheiro.
Milhões de pessoas já viram Rogue One, a história passada imediatamente antes dos acontecimentos do filme de 1977 – em Portugal fez 68 mil espectadores nos primeiros quatro dias de exibição e no mundo acumulou mais de 340 milhões de euros na bilheteira –, e muitos verão o filme nas próximas semanas. A participação de Tarkin/Cushing já era referida há mais de um ano e foi parte de alguns anúncios ao filme, mas a Lucasfilm, produtora, e a Disney, estúdio, não falam sobre o caso Peter Cushing até Janeiro, para deixar mais espectadores verem o filme. Mas o debate já está lançado na imprensa e entre os fãs.
Grand Moff Tarkin, que muitos defendem ser o verdadeiro vilão deste novo filme, trouxe para o primeiro plano o conceito da estética uncanny valley – em português o “vale da estranheza” –, que define a reacção gradual de empatia e/ou repulsa quando somos confrontados com uma réplica quase perfeita do humano, mas que não o é. Aplica-se à robótica, à ilustração, aos efeitos visuais fotorrealistas.
Este é, como diz a Hollywood Reporter, o Santo Graal dos efeitos visuais: criar um ser humano gerado por computador que seja credível. Quando se recria um rosto digitalmente, o mais importante é “capturar a velocidade de movimento dos olhos – as reacções subtis – e também o formato da boca”, explicava Joe Letteri, supervisor de efeitos da Weta (O Senhor dos Anéis), em 2015 à Hollywood Reporter, falando sobre Velocidade Furiosa 7, onde o rosto de Paul Walker foi recriado para algumas cenas do filme após a sua morte durante a rodagem. “São pequenos detalhes, mas, se não conseguirmos fazê-los bem, a sensação é de que há algo falso na actuação.”
O que Rogue One faz durante minutos com Tarkin e o rosto há muito desaparecido de Peter Cushing é “impressionante”, escreve a Variety. “Tarkin parece bastante vivo”, diz o Washington Post; é “um novo exemplo impressionante do potencial de criação de personagens humanas geradas por computador”, defende a Hollywood Reporter e os efeitos são “arrebatadores”, escreve o Guardian. Este jornal também escreve que este ressuscitar de um actor desaparecido é uma “indignidade digital”. “Pilhagem de sepultura”, escreveu o crítico David Edelstein na revista New York.
Joyce Broughton, gestora do legado de Cushing que trabalhou com ele 35 anos, ficou emocionada quando viu o filme em Los Angeles. Os espectadores gritaram de entusiasmo, tal como os críticos em Nova Iorque arfaram em sobressalto. Muitos fãs ficaram encantados com as maravilhas da técnica; outros ficaram chocados com os limites da ética. “Não posso dizer mais nada", disse Broughton, que se declarou "muito perturbada” – e porque assinou um contrato de confidencialidade com a Disney e a Lucasfilm, que garantem ter autorização para usar a imagem de Cushing (não se sabe se ou quanto dinheiro houve envolvido).
Foi John Knoll, supervisor dos efeitos visuais do filme (e co-criador do Photoshop), que convenceu o realizador Gareth Edwards de que seria possível recriar o rosto de Cushing, em vez de encontrar um actor parecido. Foi um “tudo ou nada” de aposta no digital. O corpo e o rosto alongado do actor britânico Guy Henry transformaram-se, na pós-produção na Industrial Light & Magic, no de Cushing e de Grand Moff Tarkin. Algumas partes, como as pernas, foram recriadas a partir dos muitos filmes de terror de Cushing, porque em 1977 Lucas só o filmou dos joelhos para cima – o actor recusou as botas dos figurinos e filmou de pantufas. Henry “faz uma grande interpretação e recebe zero de crédito por ela”, reconhece Edwards ao RadioTimes. É Guy Henry, ainda assim, que está creditado na ficha de Rogue One no IMDB.
O tipo de técnica usada não é, obviamente, inédito. O caso mais recente de “actores imortais” é o de Paul Walker, mas nas mesmas circunstâncias estiveram Brandon Lee em O Corvo e Oliver Reed em O Gladiador. Mas de Zelig, de Woody Allen, a Forrest Gump, de Robert Zemeckis, rostos antigos foram recriados e ressuscitados digitalmente para breves aparições em filmes. Brad Pitt, Robert Downey Jr., Jeff Bridges ou Anthony Hopkins rejuvenesceram digitalmente em Benjamin Button, Capitão América: Guerra Civil, Tron: O Legado ou Westworld. Até Tupac Shakur, o rapper assassinado nos anos 1990, actuou em holograma no festival de Coachella em 2012. Contudo, o caso Rogue One não trata de truques para colocar actores em situações impossíveis no reino da acção ou da fantasia, nem de aparições fugazes. Tal como Fred Astaire ou Audrey Hepburn já fizeram publicidade para produtos que nunca viram em vida, o rosto de Cushing retoma um papel que não sabia que iria ser repescado para um filme que nunca soube que ia existir e diz falas que nunca estudou.
Actores à prova de futuro
Richard W. Taylor, realizador e ex-presidente da Visual Effects Society, lembra que quando criou uma das primeiras personagens geradas por computador, para a curta de 1981 Adam Powers, the Juggler, começou a questionar-se, segundo disse à Variety: “Arranjamos-lhe um agente?” Poderão, por exemplo, actores que recusem regressar a um papel ver-se repentinamente no ecrã graças à possibilidade de simular os seus rostos, questiona-se o sector. Mas “se os gestores do legado de Cushing consentiram, fim de questão ética”, diz o crítico da New Yorker Richard Brody. “A verdadeira questão é da arte” – ver uma Jacqueline Kennedy digital, em vez de Natalie Portman no filme Jackie, mas também o estimular da imaginação na era do digital. “Resistir a este tipo de ‘progresso’ é inútil”, reconhece David Ehrlich, do IndieWire, mas são as escolhas dos autores que definirão se é ou não proveitoso.
Além das questões éticas surgem as questões legais. O uso da imagem ou da recriação digital de um actor “tem um valor económico evidente e deve ser assim tratado”, frisa o sindicato dos actores dos EUA. A presidente da Lucasfilm, Kathleen Kennedy, garantiu ao Telegraph que o uso desta tecnologia foi acompanhado por “conversa e escrutínio constante”. Em vários estados dos EUA, a lei não permite o uso da imagem de actores sem a sua autorização durante décadas ou mesmo para sempre após a sua morte. No Reino Unido ou em Portugal, não há legislação específica para estes casos. Uma solução é a que terá Robin Williams escolhido antes da sua morte – terá protegido contratualmente os direitos da sua imagem contra usos indesejados até 2039.
Os direitos de imagem e publicidade pós-morte têm de ser negociados junto dos herdeiros, mas já “há todo um novo fenómeno em que actores famosos estão a ir ‘scanar-se’ para dar rendimento perpétuo às suas famílias e aos seus legados, para que possam ser recriados em filmes no futuro”, diz Richard W. Taylor. Isto evoca o filme O Congresso (2013), em que a actriz Robin Wright faz exactamente isso. Outro perito, Mike McGee, da empresa de efeitos visuais Framestore, reitera: “Muitos actores, jovens e velhos, estão a digitalizar o seu corpo e rosto para que a sua imagem seja à prova de futuro, para permitir que tecnologias futuras os recriem.”
Nos Óscares de 2017, Rogue One está na shortlist para nomeações de Melhores Efeitos Visuais e, além de pelas batalhas espaciais, terá de ser avaliado pela forma como conseguiu ou não ultrapassar o uncanny valley. O actor nunca participará neste debate, mas quatro anos antes da sua morte Cushing disse numa entrevista: “Tudo morre. Mas o que é que acontece outra vez na Primavera seguinte? Tudo ganha vida outra vez.”
Notícia corrigida a 27 de Dezembro - o filme é finalista das nomeações aos Óscares de 2017 e não nomeado