Alepo: o nosso combate!
As reações à tragédia na Síria são um sintoma perigoso de como a narrativa democrática e humanista tem hoje dificuldade em mobilizar os espíritos.
É perturbante que Vladimir Putin seja visto, por muitos, como o seu líder no combate contra o islamismo radical. Com o atentado de Berlim, consideram ainda mais que têm razão. Mas nada me parece mais imprudente do que embarcar na aventura russo-iraniana na Síria, potenciadora de todos os extremismos.
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É perturbante que Vladimir Putin seja visto, por muitos, como o seu líder no combate contra o islamismo radical. Com o atentado de Berlim, consideram ainda mais que têm razão. Mas nada me parece mais imprudente do que embarcar na aventura russo-iraniana na Síria, potenciadora de todos os extremismos.
As reações à tragédia de Alepo são um sintoma perigoso de como a narrativa democrática e humanista tem hoje dificuldade em mobilizar os espíritos.
Nas redes sociais, onde se sente o pulsar das sociedades, domina o negacionismo dos crimes contra a humanidade cometidos em Alepo, prevalece a defesa da soberania como princípio absoluto, numa clara secundarização dos direitos humanos e em rutura com o consenso fundador da União Europeia
Quando se apela à solidariedade com as vítimas civis dos bombardeamentos indiscriminados, o que se ouve como resposta são frias considerações geopolíticas antiamericanas e anti-islâmicas, acrescidas de uma enorme desconfiança relativamente às elites “ocidentais“. Só isso pode explicar que a cobertura da CNN sobre Alepo, de uma enorme seriedade profissional, seja considerada por alguns mera propaganda, enquanto a da televisão russa RT seja vista como séria, apenas porque é a contra-narrativa.
O discurso niilista é repetido por neonacionalistas, de direita ou de esquerda. Em França, esta visão é defendida por Marine Le Pen mas também por Jean-Luc Mélenchon, candidato da frente de esquerda, que leva o seu cinismo ao ponto de afirmar que é natural que haja mortos em Alepo porque os “há em todos os bombardeamentos”, como aconteceu na libertação da França na II Guerra Mundial.
Parece fácil descartar a vida ou morte dos sírios perante a convicção de que os muçulmanos são uma ameaça e que seria difícil distinguir entre quem combate pela liberdade e os extremistas do Daesh. A complexidade enorme das guerras na Síria faz com que muitos acreditem que Putin libertou Alepo do Daesh, quando este já tinha sido derrotado, pelo Exército Sírio Livre, em 2013, quando tentou conquistar a cidade. A cidade antiga de Alepo, património da humanidade, era controlada desde 2012 pelo Exército Sírio Livre, com cerca de 8000 combatentes. Não eram os 300 combatentes da Frente al-Nusra, afiliada da Al-Qaeda, que mudavam a natureza da resistência e a sua relação intima com os habitantes, que desde 2011 apoiaram esmagadoramente a revolução democrática.
Muitos são os que pensam que os Estados Unidos ainda são a potência hegemónica que tudo determina e que, como fez no Iraque, está na Síria a tentar derrubar um regime nacionalista. Mas a tragédia de Alepo é a demonstração clara do declínio dos Estados Unidos e da União Europeia, e sintoma de um mundo sem ordem. Desde o desastre franco-britânico da guerra do Suez, em 1956, que os Estados Unidos, para o bem e para o mal, foram o ordenador do Médio Oriente. O facto de não quererem um envolvimento muito maior na Síria, marca o fim de uma era.
A ordem que se seguiu à Queda do Muro morreu na Síria, mas não por uma vitória da Rússia. A Rússia não tem dimensão económica (o PIB russo é sensivelmente metade do PIB francês) para poder pesar significativamente na ordem mundial, que se move inexoravelmente para a Ásia, onde a Índia e a China têm mais de um terço da população mundial e terão, em breve, um peso económico semelhante. A Rússia nem sequer tinha capacidade para derrotar os fragmentados rebeldes sírios, sendo absolutamente determinante a intervenção do Irão em socorro de Assad.
O ataque a Alepo contou com a aviação russa e de Assad, mas também com as milícias xiitas iraquianas (o principal contingente, cerca de 20 mil homens) e o Hezbollah libanês, enquadrados pelo exército iraniano. O Irão – não a Rússia ou os Estados Unidos – é hoje o principal ator no Médio Oriente. A Turquia, ator importante da região, acabou por se aproximar da Rússia e do Irão, depois da fracassada tentativa de golpe de Estado.
Mesmo assim, Putin tem capacidade para causar enormes danos e fazer perigar a paz e a democracia e não só pelo seu belicismo, mas sobretudo pela aliança com os neonacionalistas, que vêem nele um parceiro que pode prestar bons serviços. Foi assim com Trump e com o apoio declarado a Marine Le Pen. A 12 de Dezembro o partido de extrema-direita austríaco, FPO, assinou um acordo de cooperação com Putin, onde se afirma que “trabalharão para reforçar a educação patriótica das jovens gerações“. O que espanta é que ainda haja quem se considere progressista e enalteça simultaneamente os feitos de Putin.
Os cidadãos europeus não podem contar que os enfraquecidos dirigentes dos Estados da União sejam capazes de travar o combate ideológico contra o populismo neonacionalista – é uma batalha que têm que travar com as suas mãos. Os que recusam a retórica dos populistas na Europa não são em menor número do que os que a defendem, só que sofrem os efeitos de uma crise de liderança de elites hoje desmoralizadas, num combate fundamental que podem ganhar.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico.